segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Contencioso de urgência: a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) prevê no seu título IV os processos urgentes, que se dividem nas categorias de impugnações (contencioso eleitoral e pré-contratual) e de intimações (para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões e para a protecção de direitos, liberdades e garantias), vejam-se os artigos 97.º a 111.º do Código. Como refere o Professor Viera de Andrade, trata-se de processos urgentes principias que se distinguem quer dos processos principais não urgentes, quer dos processos cautelares, pois que o tipo de questões que a eles estão associadas exigem que se obtenha uma resolução definitiva do mérito da causa num espaço de tempo curto, caracterizam-se pela celeridade ou prioridade, tal como decorre do artigo 36.º do CPTA.
Não obstante o enquadramento geral supra, neste post dedicar-me-ei apenas à análise de um dos processos urgentes - a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. A escolha por este processo prende-se apenas com a importância dos direitos em causa.

£ Contexto

A criação do processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, tem na sua génese a necessidade que há muito se fazia sentir de instituir no nosso ordenamento jurídico, a figura do recurso de amparo – destinado a condenar comportamentos, por parte da Administração, lesivos de direitos fundamentais. Pressupõe a existência de um tribunal superior com competência de revisão circunscrita à apreciação deste tipo de situações.
Em Portugal, a primeira tentativa de introdução desta figura ocorre aquando da revisão constitucional de 1989, no entanto, a pretensão não se afigurou vitoriosa. Mais tarde, na revisão de 1997, ocorre uma segunda tentativa que embora não tenha surtido os efeitos inteiramente pretendidos, apresentou alguns avanços com o aditamento do número 5 ao artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), o qual prescreve: “Para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” Este preceito vem atribuir ao legislador um espaço de manobra para a criação de tais procedimentos.
Nesta medida, à data da revisão, olhando para o ordenamento jurídico português, era no contencioso administrativo que se afigura premente introduzir um procedimento capaz de tutelar de forma célere e eficaz eventuais violações dos direitos, liberdades e garantias praticadas por parte da Administração. É então, neste contexto, que surge a criação do processo urgente de imitação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, especificamente regulado nos artigos 109.º a 111.º do CPTA.


£ Caracterização e Regime

Como acima referi, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias encontra-se prevista no CPTA nos artigos 109.º a 111.º.

Olhando para o regime, cumpre discutir as seguintes questões:

 I - O âmbito de intervenção do processo de intimação

Sendo certo que se trata de um processo bem mais abrangente que a determinação que resulta do artigo 20.º/5 da CRP, ainda assim se coloca a questão de saber se abrange apenas os direitos, liberdades e garantidas previstos na Constituição, bem como os de natureza análoga, visto que nos termos do artigo 17.º da CRP, o regime daqueles se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga, ou se pode ainda estender-se à protecção de situações subjectivas que resultam de concretizações legislativas de direitos fundamentais. Questão que tem dividido a doutrina.
Para o Professor Viera de Andrade, “a utilização desta acção deve (…) limitar-se às situações em esteja em causa directa e imediatamente o exercício do próprio direito, liberdade ou garantia ou direito análogo.”, assim verificamos que o Professor não admite a extensão do âmbito de aplicação do processo de intimação, circunscrevendo-o à protecção de direitos, liberdades ou garantias previstos na Constituição, incluindo naturalmente os de natureza análoga. Também Carla Amado Gomes apresenta algumas hesitações no que respeita ao alargamento do processo de intimação a direitos que não decorram do texto constitucional. Considera que a abrangência da Lei Fundamental e as respectivas revisões a que está sujeita levam a que surgindo um direito de origem legal este venha a ser constitucionalizado e aí a questão deixa de se colocar; para além disto, correr-se-ia o risco de “reduzir a operacionalidade do meio, por afogamento dos tribunais” em consequência do vasto alcance que a intimação poderia revestir; por fim, a Constituição no elenco dos seus direitos fundamentais tende a esgotar aqueles que são reconhecidos pela sociedade. Com fundamente nestes argumentos segue a mesma linha de pensamento do Professor Vieira de Andrade.

Em sentido contrário e portanto admitindo a extensão, sobretudo no domínio de direitos sociais, está o Professor Jorge Reis Novais e também parece estar o Professor Mário Aroso de Almeida, bem como alguma jurisprudência[1]. Na minha opinião, a razão está com estes professores, na medida em que, actualmente as actuações lesivas por parte da Administração são cada vez mais frequentes. Para além disto, e como todos bem sabemos, numa relação entre a Administração e um particular, este é sempre a parte mais fraca. Como tal, deve adoptar-se uma perspectiva cada vez mais abrangente, isto é, que vise acautelar um maior número de direitos dos particulares. Estas razões afiguram-se suficientes para defender o alargamento do âmbito destes processos de intimação a outros direitos que não decorram do texto constitucional.

II- Pressupostos

O número 1 do artigo 109.º estabelece os pressupostos que devem estar verificados para a concessão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, trata-se de requisitos mínimos indispensáveis para que se possa recorrer a este processo urgente.

Exige-se:

1     - Necessidade de urgência na decisão, sem qual se deverá recorrer a uma acção administrativa normal- comum ou especial- pois que é este o meio normal de defesa dos direitos fundamentais. Como refere o Professor Viera de Andrade o grau de urgência dependerá das circunstâncias do caso, sendo que em regra, bastará que haja perigo de lesão séria dos direitos, liberdades e garantias;

2    - Esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia e que a conduta positiva ou negativa exigida se revele apta a assegurar esse exercício. O preenchimento deste pressuposto requer a verificação de dois aspectos, primeiro: a existência de uma situação jurídica individualizada respeitante a um direito, liberdade e garantia; e em segundo: a ocorrência, in casu, de uma ameaça ou violação desses direitos, que só possa ser reparada mediante o processo urgente de intimação;

3   - A indispensabilidade da intimação, por não ser possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar, nos termos do artigo 131.º do CPTA. Tal como refere o Professor Mário Aroso de Almeida estamos perante um pressuposto específico do processo de intimação, dele decorre o carácter subsidiário deste meio processual face ao decretamento provisório de qualquer providência cautelar, prevista no artigo acima citado. Para o Professor e também para Carla Amado Gomes (embora encare a subsidiariedade de uma forma muito mais ampla do que aquela que resulta da letra la lei. Com fundamento nos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da proporcionalidade entende que, à semelhança daquilo que ocorre em processo civil, se deva exigir, em contencioso administrativo, uma adequação entre o interesse e a via utilizada – “(…) não depende apenas da impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de qualquer providência, antes tem também como pressuposto a inexistência de qualquer outro meio processual de defesa de direitos, liberdades e garantias.”) estamos perante um pressuposto processual negativo, isto porque, requisito só está verificado se não for possível ou suficiente recorrer a uma providência cautelar.

Na análise deste requisito o Professor Viera de Andrade, alia a indispensabilidade com a necessidade de uma decisão de mérito urgente, ou seja, entende o Professor que embora se verifique um perigo de lesão dos direitos, liberdades e garantias, quando este possa ser devidamente impedido através do recurso aos processos de tramitação normal, o processo de intimação revela-se dispensável e como não se deve a ele recorrer.  

Ainda a propósito deste pressuposto, na prática, têm-se levantado a questão de saber se não estando verificado o seu preenchimento, o processo de intimação pode ser convolado num processo cautelar. Parece não haver grande divergência a este respeito, pois que a generalidade da doutrina e a jurisprudência, têm defendido a convolação. O que bem se compreende pela índole dos direitos em causa, que ao exigirem uma especial urgência na obtenção de uma decisão que assegure o seu exercício em tem útil, não deve quando seja indevidamente intentado o processo de intimação, ser absolvida a instância. Opção que se justifica, desde logo, como assinala o Professor Mário Aroso de Almeida, pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do imperativo constitucional de efectividade dos direitos, liberdades e garantias.
Ora, uma vez verificados os pressupostos acima referidos, o processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser intentado nos termos do artigo 109.º/1 do CPTA.

III- A legitimidade

O pressuposto processual da legitimidade tem sempre de ser apreciado segundo dois planos: o activo e o passivo. Quanto ao primeiro, todos aqueles aleguem e provem ser titulares de direitos, liberdades e garantias que sejam lesados ou que se encontrem sob ameaça de lesão, terão legitimidade para requerer a intimação. Carla Amado Gomes, com base no disposto no artigo 12.º/2 da CRP, entende que o requerente tanto pode ser uma pessoa singular como uma pessoa colectiva (especificamente, privada).
Para além destes, resta averiguar se também será de admitir a legitimidade do actor público e do actor popular. Em sentido negativo está Carla Amado Gomes, considera tratar-se de uma acção exclusivamente subjectivista, constituída por direitos individuas que não se confundem com os direitos de fruição colectiva, e assim sendo não há como conferir legitimidade activa ao actor público e ao actor popular. Contrariamente, o Professor Vieira de Andrade, admite que quando estejam em causa, por exemplo, direitos fundamentais em matéria de ambiente e desde que seja respeitada a disponibilidade legítima de tais direitos pelos seus titulares, possa ser conferida legitimidade. O Professor entende que “o facto de estarem em causa posições subjectivas – e não meros interesses indiferenciados de fruição de bens colectivos- não exclui necessariamente a legitimidade popular, nem exige para esta uma previsão expressa.”

Quanto ao segundo plano – a legitimidade passiva - decorre do artigo 109.º/1 e 2 que o processo de intimação tanto pode ser intentado contra a Administração, como contra particulares (veja-se quanto a estes também, o artigo 10.º/7 do CPTA).

IV - Tribunal competente

Segundo o disposto no artigo 4.º/1 alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF) para apreciar os litígios que tenham como objecto a tutela de direitos fundamentais são competentes os Tribunais Administrativos. Tendo presente os diferentes critérios existentes para aferir qual o tribunal concretamente competente no seio da jurisdição administrativa, verificamos que em razão da hierarquia são competentes os Tribunais Administrativos de Círculo, segundo o disposto no artigo 44.º/1, 1ª parte, do ETAF, pois que não estamos perante uma das excepções que decorrem da segunda parte do referido preceito; em razão território, as regras decorrem dos artigos 16.º a 22.º do CPTA, no coso em concreto estamos no âmbito do critério especial do artigo 20.º/5, que determina que estes processos de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias devem ser instaurados “no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão pretendidos”.

Então, nos termos de todos os preceitos enunciados para a apreciação dos processos de intimação, são competentes os Tribunais Administrativos de Círculo, em primeira instância, da área onde deva ter ligar a acção ou omissão devida.  

V – Tramitação

O processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, é como já tive oportunidade de referir um processo principal e urgente, ora como tal, pretende-se obter com urgência uma decisão definitiva sobre o mérito da causa. A urgência caracterizadora destes processos reflecte-se na sua tramitação, vejamos os artigos 110.º e 111.º do CPTA, bem como o artigo 36.º/2, que estabelece que “ Os processos urgentes correm em tempo de férias, com dispensa de vistos prévios, mesmo em fase de recurso jurisdicional, e os actos da secretaria são praticados no próprio dia, com precedência sobre quaisquer outros.”

Centrando a atenção nos artigos 110.º e 111.º verificamos que a lei estabelece vários andamentos possíveis para o processo, conforme a complexidade e o grau de urgência dos mesmos.

Assim temos:

1-    Para os processos simples e de urgência normal/ordinária- a lei confere ao requerido um prazo de sete dias para responder (artigo 110.º/1) e ao juiz um prazo de cinco dias para decidir, uma vez concluídas as diligências necessárias (artigo 110.º/2);

2-   Para os processos dotados de alguma complexidade e com uma urgência normal/moderada - aqueles que impliquem uma análise mais detalhada, o número 3 do artigo 110.º remete para tramitação estabelecida para a acção administrativa especial, embora com os prazos reduzidos a metade;

3-  Para os processos dotados de uma especial urgência, previstos no artigo 111.º, o juiz pode optar por encurtar o prazo de resposta do requerido (artigo 111.º/1) são os processos que o Professor Mário Aroso de Almeida classifica como “mais rápido que o normal”; ou então, naqueles que o Professor qualifica como “ultra-rápido” o juiz pode optar por realizar no prazo de quarente e oito horas, uma audiência oral, finda a qual decidirá de imediato.  

Note-se que, como refere o Professor Viera de Andrade o processo de intimação é sempre um processo urgente, no entanto, face a cada caso concreto compete ao juiz aferir o grau de urgência em causa e assim adoptar a tramitação mais adequada.

V- Sentença e execução

No que respeita ao conteúdo da sentença que irá por termo ao processo de intimação, este pode assumir dois tipos de efeitos, a saber:

 1- Efeito condenatório – segundo o previsto no artigo 110.º/4 o tribunal determina que o requerido adopte uma determinada conduta, positiva ou negativa, podendo estabelecer um prazo para o cumprimento, bem como o responsável. E ainda nos termos do número 5 do mesmo artigo, é-lhe ainda possível estabelecer, para o caso de incumprimento, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória;

 2 - Efeito executivo/substitutivo- quando esteja em causa, nos termos do artigo 109.º/3, a obtenção “de um acto administrativo estritamente vinculado, designadamente de um acto administrativo já praticado”, é conferido ao tribunal a possibilidade de proferir uma sentença que irá substituir o dever da Administração. Quando tenha este efeito a sentença visa produzir os mesmos efeitos do acto devido, substituindo aquele que foi recusado ou omitido.

Trate-se de uma situação excepcional, consentida pelo carácter urgente do processo em causa. Já que em circunstâncias normais e no âmbito dos processos declarativos, ao juiz nunca são conferidos estes poderes de substituição, há sempre que recorrer a um processo executivo, conforme decorre dos artigos 164.º/4 e 167.º/6 do CPTA.  

Relativamente à execução da sentença, apenas referir que se aplicam as regras gerais de execução das sentenças, e que como acima ficou dito, a lei prevê a possibilidade de fixação de sanção pecuniária compulsória para o caso de incumprimento.

VI – Recurso

A possibilidade de interpor recurso tem ser vista de dois prismas, primeiro: se a decisão é favorável ao requerente; segundo: se a decisão não é favorável ao requerente.
Na primeira situação, sendo a decisão favorável ao requerente o interesse em interpor recurso coloca-se do lado do requerido. Nos termos do artigo 142.º/1 CPTA, a possibilidade de recurso dependerá do valor da causa, e terá um efeito meramente devolutivo, neste sentido, Carla Amado Gomes e Viera de Andrade.
Já na segunda situação, quando o pedido de intimação for julgado improcedente e por isso a decisão afigura-se desfavorável ao requerente, é sempre recorrível, independentemente do valor da causa, nos termos do artigo 142.º/3 alínea a) do CPTA, sendo que nestes casos, também o recurso segue a tramitação urgente. Opção que se justifica pela relevância e natureza dos direitos em causa.


Bibliografia consultada:

Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013;
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, Coimbra,
2014;
CARLA AMADO GOMES, Pretexto, contexto e texto da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias" in Estudo em homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Telles, vol., 2003.


Telma Gonçalves, nº 21020



[1] O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 6/Junho/2007, sendo que o tribunal considerou: “Preenche a previsão do art.º 109º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, justificando a intimação célere da entidade administrativa a adoptar uma conduta, a situação de uma funcionária que padece de uma doença do foro oncológico e, com base nesse facto, pretende ser submetida urgentemente a Junta Médica de Revisão com vista a obter a aposentação, ao abrigo das normas especiais do Decreto-Lei n.º 173/2001
Recurso Hierárquico Necessário no âmbito do Contencioso Administrativo


             A figura do recurso hierárquico está prevista nos artigos 166º e seguintes do Código do Procedimento Administrativo (C.P.A.).O artigo 167º do mesmo código faz distinção entre o recurso hierárquico facultativo e o recurso hierárquico necessário. Para a presente análise só importa tratar do segundo, uma vez que este, no âmbito do contencioso administrativo, gera uma grande controvérsia.

         O recurso hierárquico surge quando existe um acto administrativo praticado por um órgão que está sujeito ao poderes hierárquicos de outro órgão e o recurso é necessário quando tenha que acontecer que para o acto se tornar impugnável judicialmente, isto é, quando o acto tenha de ser, em primeiro lugar, impugnado administrativamente para que possa ser impugnado em tribunal. Assim, a definitividade vertical será um dos pressupostos para impugnar o acto judicialmente, o que significa, em poucas palavras, que só o acto praticado pelo superior hierárquico máximo é recorrível.

Para este estudo é relevante reflectir sobre a (in)constitucionalidade da figura em análise. Em primeiro lugar, há que ter em conta os artigos 20º/1 e 5 e 268º/4 da CRP que tratam do Princípio da Tutela jurisdicional efectiva. Anteriormente à Revisão de 1989, o artigo 268º da CRP exigia que o acto administrativo, para que pudesse ser impugnado judicialmente, fosse definitivo, fazendo com que este fosse um pressuposto de acesso aos tribunais administrativos. Como tal, naquela altura não se punha a questão da admissibilidade da figura em estudo, uma vez que esta estava constitucionalmente consagrada. No entanto, após a referida revisão, este ponto sofreu uma grande alteração: a definitividade deixou de ser exigida; esta exigência saiu do texto constitucional. Assim, tendo em conta este panorama, importa realmente analisar toda a questão que se desenvolve em torno do recurso hierárquico necessário.

         Com a entrada do CPTA (Código de Processo nos Tribunais Administrativos) verifica-se uma importante mudança, em termos de legislação ordinária. O número um do artigo 51º deste Código indica que “(…) são impugnáveis os actos administrativos com eficácia externa, especialmente aqueles cujo conteúdo seja suscpetível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos”. Este preceito trata dos requisitos que são exigidos para que o acto administrativo possa ser impugnado em Tribunal. Olhando para a sua letra, o preceito não exige definitividade vertical, o que o torna conforme a constituição. Com isto quer-se dizer que a regra geral é a de que o recurso hierárquico deixa de ser necessário passando a ser facultativo, isto significando que não é obrigatório que o acto chegue até ao superior hierárquico máximo para que seja judicialmente impugnável. Este ponto não gera, assim, controvérsia.

         O problema põe-se a outro nível. Sabemos, pois, que a regra é a da não necessidade de impugnação administrativa, as questões que importam ser colocadas são as seguintes: será que existem excepções a esta? E, admitindo que sim, será que estas são constitucionais?

Existe divergência quanto ao facto de saber se o recurso continua a ser exigido quanto a leis avulsas que continuam em vigor. A maioria da doutrina entende que as normas constantes das leis avulsas são especiais e, por isso, quando estejamos perante um caso previsto nas mesmas, a impugnação por via administrativa é obrigatória, havendo derrogação da regra geral. Para Mário Aroso de Almeida, “as decisões administrativas continuam (…) a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei”. Já que aquelas são normas especiais prevalecerão sobre a regra geral.

 A opinião do Professor Vasco Pereira da Silva merece atenção, atenta a particularidade da mesma em inúmeros aspectos. Em primeiro lugar, o Professor, já anteriormente ao CPTA, clamava pela inadmissibilidade do recurso hierárquico necessário, pelas mais variadas razões:
a)     Era inconstitucional, violando a plenitude da tutela dos Direitos dos Particulares (artigo 284º/4 da Constituição da República Portuguesa – CRP), consubstanciando uma “negação do direito fundamental de recurso contencioso”;
b)    Violava o princípio constitucional da separação de poderes já que, se não se impugnasse administrativamente o acto deixar-se-ia de poder fazê-lo judicialmente;
c)     A redução do prazo de impugnação por via judicial consubstanciava uma violação do Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, dada a inexistência da interrupção da contagem do prazo.

Hoje, para este Professor, o recurso hierárquico é sempre facultativo, sendo que as normas que expressam o contrário caducaram com a vigência do 51º/1 do CPTA e devem ser tidas como desprovidas de objecto. Mais, este Professor atenta que aquelas não são normas especiais uma vez que, antes da entrada em vigor do CPTA, elas não faziam mais do que reiterar a regra geral da obrigatoriedade do recurso hierárquico, não demonstrando nenhum carácter de especialidade. Independentemente de tudo, o recurso necessário será sempre inconstitucional.

            Com o devido respeito pela outra doutrina, parece-me que o pensamento do Professor Vasco Pereira da Silva é o mais conforme à constituição e à necessidade de protecção dos indivíduos na sua relação com a administração, isto porque:
i)                   De acordo com o supracitado, a CRP deixou de exigir a definitividade vertical, o que demonstra uma vontade expressa do legislador em fazer desaparecer a figura do recurso hierárquico necessário;
ii)                Mesmo que essa figura ainda constasse da constituição como pressuposto para a impugnação dos actos administrativos haveria que continuar a discutir sobre a razão de existência da mesma, uma vez que choca com o Princípio da tutela jurisdicional efectiva;
iii)              Com o recurso hierárquico, embora não sendo certo, o superior tenderia a dar a mesma resposta do subalterno, por uma questão de conformidade;
iv)              O artigo 12º do CPA consagra legalmente o princípio da tutela jurisdicional efectiva, o que faz com que a consagração no CPA da figura em estudo seja questionável.


Por todas as  razões supracitadas parece-me que o recurso hierárquico necessário não conforma uma verdadeira garantia mas sim um obstáculo ao acesso à justiça, violando gravemente princípios constitucionais.
Joana Aguiar
Número 21023
Subturma 6

domingo, 7 de dezembro de 2014

A impugnação de disposições do planeamento urbanístico – Francisca Duarte de Almeida

O ponto de partida da nossa pesquisa vai focar-se na natureza jurídica dos planos jurídicos. Os planos assumem-se como Regulamentos, ou seja, seria de esperar que as suas normas se apresentassem como normas regulamentares. Mas nem sempre é assim. Há certas disposições de planos urbanísticos que se consubstanciam em actos administrativos. No entanto, este facto não vai ser relevante para o contencioso dos planos pois mesmo que a disposições se apresentem como actos administrativos, vão ser consideradas como normas regulamentares.
A classificação dos planos, como regulamentos administrativos tem consequências essencialmente procedimentais pois vai-nos levar a um contencioso regulamentar. Isto é, mesmo que a norma em questão de um plano venha a assumir-se como tendo natureza de acto administrativo, o ordenamento e o contencioso vai considerá-la como norma regulamentar, apenas e só por razões procedimentais e processuais. Assim sendo, esta classificação vai remeter-nos para o regime dos artigos 72º e seguintes do CPTA.
Como tal, a primeira análise a ser feita é obviamente, em termos administrativos, sobre a impugnação de normas regulamentares. Vamos encontrar, nos artigos 72º a 77º do CPTA o regime de impugnação de normas regulamentares. Para tal, podemos elaborar um de dois pedidos: a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral e a declaração de ilegalidade com efeitos restritos ao caso concreto. Relativamente ao primeiro tipo de pedido, pode ser invocado por quem tenha sido prejudicado pela aplicação da norma ou possa vir a sê-lo. Só tem legitimidade para solicitar a declaração de ilegalidade o interessado que demonstre que a norma em questão foi desaplicada em três casos concretos, ou seja, a declaração de ilegalidade só ganha força obrigatória geral, depois de terem surgido três casos concretos de ilegalidade da norma em questão. Já quanto ao segundo pedido possível, só pode ser formulado por quem alegue ser lesado pelos efeitos de normas que se produzam na sua esfera jurídica. Neste caso a norma não tem de depender de qualquer outro acto concreto de aplicação. O requerente apenas quer limitar os efeitos da declaração de ilegalidade ao seu caso concreto.
O passo que se segue na nossa análise é a comparação das invalidades dos planos urbanísticos com as invalidades no Direito Administrativo em geral. As invalidades no âmbito dos planos urbanísticos são diferentes das invalidades no Direito Administrativo em geral. Relativamente ao Direito Administrativo sabemos que as invalidades vão-se consubstanciar em nulidade, invocável a todo o tempo, e anulabilidade, nos termos dos artigos 133º e seguintes do CPA. Já no Direito do Urbanismo, o regime das invalidades encontra-se explicitado nos artigos 101º, 102º e 103º do RJGIT. Da leitura destes artigos podemos concluir que, tanto a inconformidade como a incompatibilidade dos actos praticados relativamente ao plano vai ser condição da sua validade. A sua invalidade vai-se traduzir numa nulidade, que no Direito do Urbanísmo é a regra, ao contrário do regime da invalidades do Direito Administrativo. A declaração de nulidade dos planos não incide necessariamente sobre todo o instrumento de gestão territorial. Enquanto a nulidade dos actos administrativos é total, a invalidade dos planos pode ser parcial. Este pormenor tem consequências gigantes para a impugnação de um plano urbanístico.
Seguindo o caminho na nossa análise, qual é o regime que se vai aplicar quanto à impugnação de planos urbanísticos e as suas normas? Tanto a Lei de Bases de Política do Ordenamento do Territorio (LBPOTU), como o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial referem a existência de garantias dos pariculares mas não parece existir de facto um regime especialmente regulado para a impugnação de disposições do planeamento administrativo.Ora, sabemos que o regime que o RJGIT nos apresenta, limita-se a afirmar que aos particulares são asseguradas garantias, e sabemos ainda que se nos apresenta como solução, uma remissão para o regime da declaração de ilegalidade constante dos artigos 72º e seguintes do CPTA. Mas será correcto uma remissão por completo para o CPTA? Não será que nos vamos deparar com dificuldades de aplicação deste regime ao caso concreto dos planos urbanísticos?
É relativamente simples pedir a impugnação de uma norma de um plano que contenha um vício material, pois, substancialmente, essa norma vai prejudicar directamente o requerente. Mais, com a violação de uma norma material essencial ao plano, a sua impugnação vai espalhar o veneno por todo o corpo do plano, e este vai cair à mercê da impugnação de uma só norma. Mas já quando exista a violação de uma norma formal, ou procedimental, a impugnação desta e do plano é bem mais dificultada ao requerente. Há uma excessiva onerosidade da impugnação de planos com fundamento em vicios orgânicos, procedimentais ou formais uma vez que tais vicios não se projectam numa disposição específica directamente lesiva, mas no plano globalmente considerado. Veja-se o caso em que o plano em questão viola o prazo de discussão pública, ou seja, não foi cumprido o prazo. Quando o plano está inquinado de uma norma procedimental, qual será a norma que o requerente pode atacar? Na verdade pode atacar todas as normas, pois todas as normas foram inquinadas, mas nenhuma delas individualmente vai conseguir preencher os requesitos de legitimidade do requerente. Será que tem legitimidade para a impugnar? Também é dificil determinar qual seria o interesse pessoal e directo do requente para pedir a impugnção de qualquer norma. Deparamo-nos sobre um dilema essencial. Como impugnar normas dos planos que fazem parte da sua moldura, e não do quadro? Parece não haver um regime estruturado das invalidades dos planos e dos seus efeitos.
Assim sendo parece-nos que, tal como existe uma diferenciação de regimes no que tocas às invalidades dos planos e dos actos administrativos, também deveria haver um regime diferente para a impugnação de planos urbanísticos. Neste caso, um regime que preenchesse a necessidade de garantia e tutela da confiança dos particulares.
Bibliografia:
  • Alves Correia, Fernando - Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I e III, Almedina 2004 e 2010;
  • Aroso de Almeida, Mário – Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coímbra, 2010;
  • Paula Oliveira, Fernanda - A Discricionariedade de Planeamento Urbanístico Municipal na Dogmática Geral da Discricionariedade Administrativa, Almedina, Coimbra, 2011;
  • Vieira de Andrade, José Carlos – A Justiça Administrativa, Lições, 11º Edição, Almedina, Coímbra, 2011;
Francisca Duarte de Almeida
Nº 20897
Subturma 6


O contencioso administrativo e as Forças Armadas

Índice


1-     Introdução
2-     Pequena evolução histórica do contencioso administrativo militar
3-     Conflito positivo de jurisdições
4-     O procedimento disciplinar militar
5-     A aplicação do CPTA no julgamento da disciplina militar
6-     Conclusão
7-     Bibliografia



Introdução


Como todos sabem, as Forças Armadas têm uma forma de funcionar muito destinta do resto da Administração Pública. Como ideias base na vida militar estão: a hierarquia, a disciplina e respeito pelas instituições nacionais. Algumas destas ideias, ao longo da história, foram esbarrando contra a “evolução” do contencioso administrativo, e é exactamente esse o foco deste post.


Pequena evolução histórica do contencioso administrativo militar


Em períodos anteriores à revisão constitucional de 1997, tínhamos todos os processos que fossem ligados às Forças Armadas a decorrer em Tribunais militares. Tribunais esses que funcionavam de forma autónoma e que eram presididos por militares, por norma com posições mais altas e com alguma formação na área jurídica. Esses tribunais tinham uma forte noção de hierarquia, quer isto dizer, por vezes as decisões eram tomadas sem um profundo e cuidado processo jurídico.

Com a revisão constitucional de 1997, veio a dar-se uma grande mudança. Essa começa, exactamente com a extinção dos tribunais militares. Podemos dizer que se abandona o contencioso militar e entramos na aplicação do novo contencioso administrativo militar.

A “administrativização” do contencioso militar leva aos tribunais administrativos os processos de disciplina militar. Essa matéria passa a ser discutida e resolvida nos tribunais administrativos, o que de resto é uma mudança lógica pois a disciplina militar pertence ao Direito Militar, que de certa forma é um dos ramos do Direito Administrativo.
Outra das grandes mudanças da referida revisão constitucional é a criação por parte do legislador dos números 4 e 5 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa. Estes preceitos vieram garantir aos administrados o direito a impugnar as normas com eficácia externa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e garantir a tutela jurisdicional desses mesmos direitos e interesses.

Já a nível processual, esta nova visão vem admitir a cumulação de pedidos em função da mesma relação jurídica ou da mesma matéria de facto ou direito (artigo 4º do CPTA).

Esta reforma estabeleceu um modelo com um  grande pendor subjectivista. Veio também dar mais garantas, direitos e forma de reagir aos militares que por alguma razão foram submetidos a processos disciplinares. Há que notar que esta mudança tem alguns pormenores que têm alguma relevância, como por exemplo uma abertura das estruturas militares ao resto da administração e uma maior imparcialidade na resolução de alguns processos.


O conflito positivo de jurisdições


O conflito de jurisdições vem de uma divergência de opiniões entre o Supremo Tribunal Militar e os restantes tribunais. De forma sucinta irei expor as duas teses.

Por um lado o STM alegava que o número 1 do artigo 120º do Regulamento Disciplinar Militar de 1997, (artigo que garantia a competência ao STM de julgar os recursos contenciosos interpostos das decisões definitivas e executórias dos Chefes de Estado-Maior em matéria administrativa militar), era reafirmado pelo nº4 do artigo da Lei nº29/82, de 11 de Dezembro, tendo suporte constitucional no nº3 do artigo 215º da CRP de 1989. Esta norma manteria-se vigente de forma transitoria como preceituado no artigo 197º da Lei Constitucional nº1/97.  Para além deste argumento, o STM alegava através de um dos seus acórdão, respeitantes à matéria: “ se nenhum outro preceito legal, em especial do RDM, prevê, admite ou regula o recurso contencioso das decisões proferidas em matéria disciplinar por outros Chefes militares, é de rejeitar a hipótese de tais hipotéticos recursos serem interpostos por outros tribunais, sejam administrativos ou judiciais, não só por não existir regulamentação processual que os viabilizasse, como por ser aberrante que o legislador ordinário tivesse querido a existência de aparelhos judiciais diferentes, de decisões idênticas”

Por outro lado o STA defendia que o STM era incompetente para o julgamento de actos sancionatórios, pois o Tribunal Constitucional, ainda antes da revisão constitucional de 1997, havia proferido um acórdão (Acórdão do TC nº90/88, de 13 de Maio) onde se pronunciara no sentido de “qualquer decisão em matéria disciplinar, quer tenha sido proferida no âmbito da administração pública civil, quer no âmbito das Forças Armadas, assume carácter de acto administrativo e os recursos interpostos dessas decisões integram-se, indubitavelmente, no âmbito do contencioso administrativo”.

Na opinião do Dr. Vitor Pereia Chaveiro Coelho, a análise feita pelo STM não estaria correcta, pois face às alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº1/97, de 10 de Setembro, a competência estaria, nos termos dos artigos 209º,212º nº3 e 213º dos Textos Constitucionais, atribuída aos tribunais administrativos.
Ao consider atribuidas a competência atribuida ao STM, estariamos perante um conflito positivo de jurisdições, pois dois tribunais teriam competência para se pronunciar sobre a mesma matéria.


O procedimento disciplinar militar


Neste ponto irei expor duas questões: a primeira sobre o procedimento administrativo e a segunda sobre a as especificidades processuais do contencioso administrativo da disciplina militar.

No que respeita ao procedimento disciplinar militar, este é regulado pelo Novo Regulamento  de Disciplina Militar (NRDM). Este processo, como todos os outros procedimentos administrativos, está dividido por fases: fase da iniciativa, fase instrutória e fase de decisão. Todas estas estão retratadas no NRDM, no seu Título IV.

Contudo o procedimento disciplinar militar tem algumas particularidades. Este processo ainda que administrativo, rege-se, em quase toda a sua totalidade, por princípios de Direito Penal. Isto leva a que todo o procedimento administrativo disciplinar seja dotado de um maior rigor, como é exemplo a obrigatoriedade de forma escrita de todos os actos do processo disciplinar.

Quanto ao procedimento disciplinar, há que referir que, à semelhança do processo administrativo, existem duas formas de processo (comum e especial).

O processo especial funciona como um processo prévio que poderá levar, ou não, a um “verdadeiro” processo disciplinar. Dentro destes processos podemos encontrar as figuras: da averiguação, do inquérito e da sindicância. Já o processo comum, é de natureza acusatória e tem como desfecho ou o arquivamento ou a aplicação da pena.

Como já referido anteriormente, o sector militar é um sector com diferenças vincadas em relação ao resto da Administração Pública, e derivado disso mesmo, houve a necessidade de se adaptar o contencioso administrativo às especificidades deste sector, sob pena de se criar um desequilibro no mesmo.

Em relação a estas diferenças vou referir duas que meu ver são de maior relevância:

  • A existência de um regime de excessão ao 128º do CTPA, o que leva a permissão da execução do acto           administrativo sancionatório, ao contrário do regulado pelo CPTA que avança com a solução contrária, ou seja, a proibição automática da execução do acto.
  • Uma maior rigidez dos critérios do artigo 120º do CPTA, em relação aos critérios de decisão das providências cautelares. Isto leva a que seja mais difícil o decretamento das providências por via de uma maior densificação dos critérios adoptados.


Para além destas duas caracteristicas referidas, o NRDM prevê a figura do recurso hierarquico ncessário, figura que deixou de existir no CPA. Esta figura tem muito haver com a questão de ser um sector que por história é muitissimo hierarquizado, o que de certa forma faz algum sentido. A interpretação feita por alguns autores deste termo no NRDM é a de que a figura faz sentido existir desde que não estejam em causa direitos fundamentais que de outra forma não possam ser acautelados, a não ser com o recurso do poder judicial.


A aplicação do CPTA no julgamento da disciplina militar


Para o âmbito do que tem sido falado, todos os meios processuais que vêm previstos no CPTA, poderão ser usados por qualquer militar, a qualquer altura, desde que sejam assuntos relacionados com a sua relação jurídica administrativa com a Administração Militar e que tenham a devida legitimidade para se socorrer desses mesmos meios.

Neste ponto é importante referir, que toda esta possibilidade de poder socorrer-se das normas do CPTA para regular as relações com a Administração Militar era totalmente impensável à uns anos atrás. Houve um grande avanço no que toca à disciplina militar nos últimos 30 anos.

Actualmente, consagra-se com o CPTA, um verdadeiro princípio de acesso ao direito e acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva, com o direito a obter uma decisão judicial em prazo razoável e mediante um processo equitativo.


Conclusão


A evolução do contencioso administrativo levará a uma uniformização desta área, contudo devemos ter em conta que alguns sectores devem ser tratados de maneira diferente. Não quero deixar a ideia que uma área deve ter mais privilégios ou um regime mais apertado, mas sim quero deixar ideia que o sector militar é um sector muito particular e com uma cultura institucional muito vincada. Muitos não percebemos a importância desta área (Forças Armadas) no dia a dia do nosso país e por isso acabamos por fazer uma análise do ponto de vista de um civil, por isso deixo um link com uma apresentação que poderá ajudar a compreender a importância do sector militar.

Link: www.youtube.com/watch?v=LjAsM1vAhW0

Se não conseguirem aceder, procurem no youtube: Peter van Uhm: Why I chose a gun


Bibliografia


Coelho, Vítor Pereira Chaveiro, “Contencioso Administrativo da Disciplina Militar”, 2012 Monografia na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


Espírito Santo, Gabriel Augusto do, “Justiça Militar: uma reflexão”, Outubro 2004, Revista Militar



António de Noronha Bragança, nº 21421
A Competência Internacional da Jurisdição Administrativa

§1. Considerações gerais; §2. O âmbito da jurisdição administrativa;
§3. A competência territorial no CPTA; §4. Que solução?
§5. Reflexões finais


§1. Considerações gerais
 Encontrando-nos a estudar matérias de Direito Internacional Privado e Contencioso Administrativo, indagámo-nos como seriam tratados pela jurisdição administrativa os litígios que apresentem elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, suscitando assim um problema de competência internacional. Por estranho que possa parecer, não obtivemos qualquer resposta, sendo esta questão completamente ignorada pelo  ordenamento jurídico administrativo – é como se o problema nem sequer se colocasse. A verdade, todavia, é que o problema existe, razão pela qual nos propomos nesta sede a tratá-lo. Destarte, procuraremos em primeiro lugar conhecer e compreender o âmbito da jurisdição administrativa (§2.), observando de seguida as regras de competência territorial resultantes do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) (§3.). Estabelecida a base da nossa análise, discutiremos a essa luz as soluções de que dispomos (§4.), terminando, enfim, com as nossas breves reflexões sobre o tema (§5.).

§2. O âmbito da jurisdição administrativa
O ponto de partida (e chegada) nesta matéria são os arts. 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF). O art. 1.º do ETAF traduz-se aqui numa cláusula geral e, essencialmente, reproduz quanto é dito no art. 212.º, n.º 3, da Constituição (doravante, CRP). O art. 4.º do ETAF, por seu turno, apresenta-se, nos seus vários números e alíneas, como critério material concretizador do disposto no art. 1.º. Vejamos como tudo se passa.
O art. 212.º, n.º 3, da CRP (e por conseguinte o art. 1.º do ETAF) consagra como critério de atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais, a relação jurídica administrativa, que é, no fundo, a relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo. Ou seja, aquelas relações onde figurem prerrogativas de autoridade, interesse público, entre outros. Contudo, este critério não é isento de críticas. É que, passe o pleonasmo, consagra demasiados critérios que remetem para a destrinça entre direito público e direito privado. É por essa razão que o critério material do art. 4.º do ETAF é tão importante, ao concretizar as situações abrangidas pelo art. 212.º da CRP, clarificando assim o seu âmbito. Não obstante essa sua função, o art. 4.º, ao concretizar, por vezes diz demais, indo para além daquilo que (supostamente) seria o espírito da norma do arts. 212.º/3 da CRP e 1.º do ETAF, o que levou a questionar se o mesmo não seria por essa razão inconstitucional. A doutrina tem entendido que não[1], uma vez que se trata de uma norma especial. Ademais, o Tribunal Constitucional[2] veio já considerar o critério do art. 212.º/3 da CRP como tendencial, admitindo desvios ao mesmo.
Olhando agora para a matéria da competência internacional, poderíamos ser conduzidos a pensar que o ETAF, mormente os preceitos citados, poderiam dar resposta a esta questão, consagrando algum tipo de regra a esse respeito. Não é assim. As regras de que o ETAF dispõe são (somente) regras relativas a competência interna, donde da conjugação dos seus arts. 1.º, 4.º, 24.º, 37.º e 44.º resulta a distribuição de competência pelos diversos tribunais administrativos. Mas, não obstante o ETAF não responder, a figura da jurisdição (lato sensu) levanta outro tipo de problemas que em sede de competência internacional importa observar. 
Como indica Paula Costa e Silva[3]«a concretização de uma competência primária assume, no contencioso administrativo, um grau de complexidade bem elevado (...). Os princípios de direito público internacional impõe a ponderação de limites ao exercício da jurisdição (...).». Os limites a que a autora se refere estão intimamente ligados com o princípio da imunidade jurisdicional do Estados, resultante da regra costumeira do par in parem non habet imperium ne iurisdictionem e segundo o qual nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra a sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado. Não querendo desenvolver muito esta temática, importa apenas notar que a imunidade jurisdicional dos Estado é um corolário do princípio da igualdade entre Estados (positivado no art. 2.º, n.º1, da Carta das Nações Unidas), que bem se compreende tendo em conta a manutenção das (boas) relações diplomáticas. Tradicionalmente, diz-nos Eduardo Correia Baptista[4], defendia-se que os Estados gozavam de uma imunidade absoluta perante os tribunais de outros Estados. Esta concepção absoluta da imunidade relacionava-se com o dogma da absoluta territorialidade do Direito Público, do qual resultava que «os órgãos de aplicação de um Estado só aplicariam o Direito público interno.»[5]. Ambas estas concepções evoluiriam e hoje, relativamente à regra da imunidade, é comummente aceite que a mesma pode sofrer limitações, adoptando-se assim uma concepção de imunidade restrita, pelo que os Estados só gozam de imunidade relativamente aos actos praticados ius imperii, mas já não quanto aos actos ius gestionis. Por outro lado, admite-se também que um Estado possa renunciar à sua imunidade, constituindo-se, deste modo, duas excepções à absolutização da imunidade do Estados, ainda que, em caso de dúvida fundada, a regra prevaleça.[6]Dito isto, e retomando a nossa análise, importa agora perceber qual a relação entre a aplicação de direito público, a jurisdição e a competência. Entende Ehlers[7]que a distinção entre os pressupostos da admissibilidade do exercício de jurisdição não é comum nos tribunais administrativos, uma vez que dificilmente uma acção administrativa é instaurada perante um tribunal internacionalmente incompetente, o que resulta da circunstância da jurisdição dos tribunais administrativos estar ordenada à aplicação do direito público do Estado, como aliás já tivemos oportunidade de constatar. E isto é o mesmo que dizer que os tribunais portugueses tendem a ignorar esta questão, o que se pode comprovar pela leitura do Ac. do STA n.º4/2010. Se é assim, então esta questão perde a sua importância, adquirindo a competência territorial o principal foco do problema e que analisaremos de seguida.
  
§3. A competência territorial no CPTA
O CPTA regula a competência territorial dos tribunais administrativos nos seus arts. 16.º a 22.º, dispondo para o efeito o seguinte: (i) o art. 16.º do CPTA consagra a regra geral nesta matéria, que é, ao contrário do que sucede no Código de Processo Civil (doravante, CPC), a residência habitual do autor; (ii) nos arts. 17.º a 20.º do CPTA, encontram-se definidas regras especiais, relativas a matérias atinentes a bens imóveis, responsabilidade civil, contratos, entidades públicas, etc.; (iii) quanto ao art. 21.º do CPTA, é aqui regulada a competência territorial quando se trate da cumulação de pedidos, uma regulação que, todavia, importa conjugar com art. 18.º, n.º 2, do mesmo diploma; (iv) por último, o art. 22.º do CPTA fixa a regra supletiva no caso de não ser possível determinar a competência territorial nos termos dos arts. 16.º a 21.º do CPTA. Numa primeira leitura não se levantam grandes dúvidas neste campo, estes arts. parecem bastante claros nas suas previsões, na mesma medida em que parece igualmente claro que nenhum terá aplicação em matéria de competência internacional. Contudo, uma leitura do CPTA anotado aponta para um caminho diferente, dando Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha como exemplo de aplicação do art. 22.º do CPTA o caso das situações plurilocalizadas em que o demandante seja estrangeiro ou, sendo português, tenha domicílio no estrangeiro e não tenha residência habitual em Portugal. Abre-se então a porta para uma potencial regulação pelo CPTA da competência internacional da jurisdição administrativa. Vejamos se assim é.

§4. Que solução?
            Tendo em conta o que se acabou de dizer, apresentam-se, em abstracto, três soluções susceptíveis de dar resposta a esta lacuna de regulação, de acordo com a doutrina que nos é apresentada por Paula Costa e Silva[8] : (i) a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC; (ii) a aplicação conjugada das regras dos arts. 62.º e 63.º CPC e do art. 22.º do CPTA; (iii) a aplicação isolada do art. 22.º do CPTA.
(i)                 Aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC: a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC é, por força do art. 1.º do CPTA, aquela que se apresenta mais evidente e de comum acordo com aquilo que parece ter sido o espírito do legislador – não havendo regulação expressa no CPTA aplicar-se-iam as normas do CPC, em termos idênticos à da sua aplicação no contencioso dos tribunais comuns.
(ii)               Aplicação conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC e do art. 22.º do CPTA: da aplicação, sem mais, deste conjunto de arts. resultaria que os tribunais administrativos portugueses seriam, por força da norma subsidiária do art. 22.º do CPTA, competentes sempre que falhe a concretização de um critério de competência interna, ou seja, poderiam decidir qualquer conflito plurilocalizado, ainda que este não apresente nenhuma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. Uma solução claramente incomportável. Contudo, se a esta solução se acrescentasse o requisito de uma conexão relevante com a ordem jurídica interna os seus contornos já seriam outros. É que se for esse o caso, entende a autora que já é admissível a aplicação conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC com o art. 22.º do CPTA.
(iii)             Aplicação isolada do art. 22.º do CPTA: a aplicação isolada do art. 22.º do CPTA resultaria da característica de dupla funcionalidade das regras de competência interna, segundo a qual se deve ter por concretizada uma competência internacional sempre que se verifique a concretização de uma competência territorial interna. É este o caso do art. 22.º. Além disso, esta solução é defensável designadamente para este tipo de casos em que não foram contempladas regras de competência internacional.
            A esta luz, vem adoptar a supra referida autora a terceira solução, sustentando que assim é porque não só não se levantam obstáculos à tese da dupla funcionalidade, como, por essa razão, o recurso às regras do CPC é desnecessário. O art. 22.º do CPTA ganha tornar-se-ia, por esta razão, a norma melhor posicionada para dar resposta a litígios que suscitassem questões de competência internacional.

§5. Reflexões finais
            Aqui chegados, é agora oportuno deixar algumas das nossas considerações sobre o que acabámos de tratar. Começando pela a ausência de regulação desta matéria, é de lamentar que assim seja. Acreditamos que a questão não seja a mais recorrente nos tribunais administrativos mas, não obstante ser esse o caso e em face do mau tratamento que estes lhe concedem, não era assim tão descabido regulá-la, o que lamentavelmente o novo CPTA se olvidou de fazer. Por outro lado, e olhando agora para as soluções apresentadas no ponto anterior, vemo-nos obrigados a (humildemente) discordar de Paula Costa e Silva. Não que não compreendamos o seu raciocínio, porque o compreendemos, mas sim porque por razões de praticabilidade parece-nos mais directa, ou se se quiser, menos complexa e/ou rebuscada, a solução de admitir que quanto a matérias de competência internacional, atenta a falta de regulação do CPTA, se observe o que dispõe o CPC, isto porque os arts. 62.º e 63.º do CPC consagram critérios para admitir a competência internacional dos tribunais portugueses, o que não acontece no caso do art. 22.º do ETAF vir a ser aplicado. Ademais, este art. não deixa de ser um critério recurso, o que, por outro lado, levanta ainda a questão da sua hiper-exorbitância, à semelhança daquilo que acontece no caso da segunda solução que nos é apresentada. Enfim, resta apenas a esperança de que um dia esta questão possa vir a ser objecto da atenção do legislador, atento aquilo que nos é dito pela velha máxima: "mais vale prevenir do que remediar". 

Tiago Guerreiro | 22227 | Subturma 6




[1] Vide, entre outros, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013,  p. 157
[2] Cfr. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os  211/2007 e  302/2008 cit. apud Mário Aroso de Almeida, Manual (...), p. 158
[3] Cfr. Paula Costa e Silva, Jurisdição e competência internacional dos tribunais administrativos: a propósito do Acórdão do STA n.º4/2010,  Cadernos de Justiça Administrativa, Novembro/Dezembro 2010, p. 5
[4] Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, 2.ª Ed., Vol. I, Almedina, 2004, p. 142
[5] Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II, Almedina, 2013, pp. 28 e 29
[6] Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional (...), pp. 143 e 144, que, sustenta, contudo, que a primeira das excepções não é, em bom rigor, uma excepção.
[7] Cit. apud. Paula Costa e Silva, Jurisdição (...), p. 6
                [8] cfr. Paula Costa e Silva, Jurisdição (...), pp. 10 a 13.