O Código de Processo nos Tribunais
Administrativos (doravante, CPTA) prevê no seu título IV os processos urgentes,
que se dividem nas categorias de impugnações (contencioso eleitoral e
pré-contratual) e de intimações (para a prestação de informações, consulta de processos
ou passagem de certidões e para a protecção de direitos, liberdades e
garantias), vejam-se os artigos 97.º a 111.º do Código. Como refere o Professor Viera de Andrade, trata-se
de processos urgentes principias que se distinguem quer dos processos principais
não urgentes, quer dos processos cautelares, pois que o tipo de questões que a
eles estão associadas exigem que se obtenha uma resolução definitiva do mérito da causa num espaço de tempo curto, caracterizam-se pela celeridade ou prioridade, tal como decorre
do artigo 36.º do CPTA.
Não
obstante o enquadramento geral supra,
neste post dedicar-me-ei apenas à
análise de um dos processos urgentes - a
intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. A escolha
por este processo prende-se apenas com a importância dos direitos em causa.
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Contexto
A
criação do processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias, tem na sua génese a necessidade que há muito se fazia sentir de
instituir no nosso ordenamento jurídico, a figura do recurso de amparo –
destinado a condenar comportamentos, por parte da Administração, lesivos de
direitos fundamentais. Pressupõe a existência de um tribunal superior com
competência de revisão circunscrita à apreciação deste tipo de situações.
Em
Portugal, a primeira tentativa de introdução desta figura ocorre aquando da
revisão constitucional de 1989, no entanto, a pretensão não se afigurou
vitoriosa. Mais tarde, na revisão de 1997, ocorre uma segunda tentativa que
embora não tenha surtido os efeitos inteiramente pretendidos, apresentou alguns
avanços com o aditamento do número 5 ao artigo 20.º da Constituição da República
Portuguesa (doravante, CRP), o qual prescreve: “Para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura
aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e
prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou
violações desses direitos.” Este preceito vem atribuir ao legislador um
espaço de manobra para a criação de tais procedimentos.
Nesta
medida, à data da revisão, olhando para o ordenamento jurídico português, era
no contencioso administrativo que se afigura premente introduzir um
procedimento capaz de tutelar de forma célere e eficaz eventuais violações dos
direitos, liberdades e garantias praticadas por parte da Administração. É então,
neste contexto, que surge a criação do processo urgente de imitação para a
protecção de direitos, liberdades e garantias, especificamente regulado nos
artigos 109.º a 111.º do CPTA.
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Caracterização e Regime
Como
acima referi, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias
encontra-se prevista no CPTA nos artigos 109.º a 111.º.
Olhando para o regime, cumpre
discutir as seguintes questões:
I - O âmbito de
intervenção do processo de intimação
Sendo
certo que se trata de um processo bem mais abrangente que a determinação que
resulta do artigo 20.º/5 da CRP, ainda assim se coloca a questão de saber se
abrange apenas os direitos, liberdades e garantidas previstos na Constituição,
bem como os de natureza análoga, visto que nos termos do artigo 17.º da CRP, o
regime daqueles se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga, ou se
pode ainda estender-se à protecção de situações subjectivas que resultam de
concretizações legislativas de direitos fundamentais. Questão que tem dividido
a doutrina.
Para
o Professor Viera de Andrade,
“a utilização desta acção deve (…)
limitar-se às situações em esteja em causa directa e imediatamente o exercício
do próprio direito, liberdade ou garantia ou direito análogo.”, assim
verificamos que o Professor não admite a extensão do âmbito de aplicação do
processo de intimação, circunscrevendo-o à protecção de direitos, liberdades ou
garantias previstos na Constituição, incluindo naturalmente os de natureza
análoga. Também Carla Amado Gomes apresenta
algumas hesitações no que respeita ao alargamento do processo de intimação a
direitos que não decorram do texto constitucional. Considera que a abrangência
da Lei Fundamental e as respectivas revisões a que está sujeita levam a que
surgindo um direito de origem legal este venha a ser constitucionalizado e aí a
questão deixa de se colocar; para além disto, correr-se-ia o risco de “reduzir a operacionalidade do meio, por
afogamento dos tribunais” em consequência do vasto alcance que a intimação
poderia revestir; por fim, a Constituição no elenco dos seus direitos
fundamentais tende a esgotar aqueles que são reconhecidos pela sociedade. Com
fundamente nestes argumentos segue a mesma linha de pensamento do Professor Vieira de Andrade.
Em
sentido contrário e portanto admitindo a extensão, sobretudo no domínio de
direitos sociais, está o Professor
Jorge Reis Novais e também parece estar o Professor Mário Aroso de Almeida, bem como alguma
jurisprudência[1].
Na minha opinião, a razão está com estes professores, na medida em que,
actualmente as actuações lesivas por parte da Administração são cada vez mais
frequentes. Para além disto, e como todos bem sabemos, numa relação entre a
Administração e um particular, este é sempre a parte mais fraca. Como tal, deve
adoptar-se uma perspectiva cada vez mais abrangente, isto é, que vise acautelar
um maior número de direitos dos particulares. Estas razões afiguram-se
suficientes para defender o alargamento do âmbito destes processos de intimação
a outros direitos que não decorram do texto constitucional.
II- Pressupostos
O
número 1 do artigo 109.º estabelece os pressupostos que devem estar verificados
para a concessão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e
garantias, trata-se de requisitos mínimos indispensáveis para que se possa recorrer
a este processo urgente.
Exige-se:
1 - Necessidade
de urgência na
decisão, sem qual se deverá recorrer a uma acção administrativa normal- comum
ou especial- pois que é este o meio normal de defesa dos direitos fundamentais.
Como refere o Professor Viera de Andrade
o grau de urgência dependerá das circunstâncias do caso, sendo que em regra,
bastará que haja perigo de lesão séria dos direitos, liberdades e garantias;
2 - Esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito,
liberdade e garantia e que a conduta positiva ou negativa exigida se revele apta a assegurar esse exercício.
O preenchimento deste pressuposto requer a verificação de dois aspectos,
primeiro: a existência de uma situação jurídica individualizada respeitante a
um direito, liberdade e garantia; e em segundo: a ocorrência, in casu, de uma ameaça ou violação
desses direitos, que só possa ser reparada mediante o processo urgente de
intimação;
3 - A indispensabilidade
da intimação, por não ser possível ou
suficiente o decretamento de uma providência cautelar, nos termos do artigo
131.º do CPTA. Tal como refere o Professor
Mário Aroso de Almeida estamos perante um pressuposto específico do processo
de intimação, dele decorre o carácter subsidiário deste meio processual face ao
decretamento provisório de qualquer providência cautelar, prevista no artigo
acima citado. Para o Professor e também
para Carla Amado Gomes (embora
encare a subsidiariedade de uma forma muito mais ampla do que aquela que
resulta da letra la lei. Com fundamento nos princípios da tutela jurisdicional
efectiva e da proporcionalidade entende que, à semelhança daquilo que ocorre em
processo civil, se deva exigir, em contencioso administrativo, uma adequação
entre o interesse e a via utilizada – “(…) não
depende apenas da impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório
de qualquer providência, antes tem também como pressuposto a inexistência de qualquer
outro meio processual de defesa de direitos, liberdades e garantias.”) estamos
perante um pressuposto processual
negativo, isto porque, requisito só está verificado se não for possível ou
suficiente recorrer a uma providência cautelar.
Na
análise deste requisito o Professor
Viera de Andrade, alia a indispensabilidade com a necessidade de uma
decisão de mérito urgente, ou seja, entende o Professor que embora se verifique
um perigo de lesão dos direitos, liberdades e garantias, quando este possa ser
devidamente impedido através do recurso aos processos de tramitação normal, o
processo de intimação revela-se dispensável e como não se deve a ele recorrer.
Ainda
a propósito deste pressuposto, na prática, têm-se levantado a questão de saber
se não estando verificado o seu preenchimento, o processo de intimação pode ser
convolado num processo cautelar. Parece não haver grande divergência a este
respeito, pois que a generalidade da doutrina e a jurisprudência, têm defendido
a convolação. O que bem se compreende pela índole dos direitos em causa, que ao
exigirem uma especial urgência na obtenção de uma decisão que assegure o seu exercício
em tem útil, não deve quando seja indevidamente intentado o processo de
intimação, ser absolvida a instância. Opção que se justifica, desde logo, como
assinala o Professor Mário Aroso de
Almeida, pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do
imperativo constitucional de efectividade dos direitos, liberdades e garantias.
Ora,
uma vez verificados os pressupostos acima referidos, o processo de intimação
para a protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser intentado nos termos
do artigo 109.º/1 do CPTA.
III- A legitimidade
O
pressuposto processual da legitimidade tem sempre de ser apreciado segundo dois
planos: o activo e o passivo. Quanto ao primeiro,
todos aqueles aleguem
e provem ser titulares de direitos, liberdades e garantias que sejam lesados ou
que se encontrem sob ameaça de lesão, terão legitimidade para requerer a
intimação. Carla Amado Gomes,
com base no disposto no artigo 12.º/2 da CRP, entende que o requerente tanto
pode ser uma pessoa singular como uma pessoa colectiva (especificamente, privada).
Para
além destes, resta averiguar se também será de admitir a legitimidade do actor
público e do actor popular. Em sentido negativo está Carla Amado Gomes, considera tratar-se de uma acção
exclusivamente subjectivista, constituída por direitos individuas que não se
confundem com os direitos de fruição colectiva, e assim sendo não há como conferir
legitimidade activa ao actor público e ao actor popular. Contrariamente, o Professor Vieira de Andrade,
admite que quando estejam em causa, por exemplo, direitos fundamentais em
matéria de ambiente e desde que seja respeitada a disponibilidade legítima de
tais direitos pelos seus titulares, possa ser conferida legitimidade. O
Professor entende que “o facto de estarem
em causa posições subjectivas – e não meros interesses indiferenciados de
fruição de bens colectivos- não exclui necessariamente a legitimidade popular, nem
exige para esta uma previsão expressa.”
Quanto
ao segundo plano – a legitimidade passiva - decorre do artigo 109.º/1 e 2 que o
processo de intimação tanto pode ser intentado contra a Administração, como
contra particulares (veja-se quanto a estes também, o artigo 10.º/7 do CPTA).
IV - Tribunal
competente
Segundo
o disposto no artigo 4.º/1 alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos
e Fiscais (doravante, ETAF) para apreciar os litígios que tenham como objecto a
tutela de direitos fundamentais são competentes os Tribunais Administrativos. Tendo
presente os diferentes critérios existentes para aferir qual o tribunal
concretamente competente no seio da jurisdição administrativa, verificamos que
em razão da hierarquia são competentes os Tribunais Administrativos de Círculo,
segundo o disposto no artigo 44.º/1, 1ª parte, do ETAF, pois que não estamos
perante uma das excepções que decorrem da segunda parte do referido preceito;
em razão território, as regras decorrem dos artigos 16.º a 22.º do CPTA, no coso
em concreto estamos no âmbito do critério especial do artigo 20.º/5, que
determina que estes processos de intimação para a protecção de direitos,
liberdades e garantias devem ser instaurados “no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão
pretendidos”.
Então,
nos termos de todos os preceitos enunciados para a apreciação dos processos de
intimação, são competentes os Tribunais
Administrativos de Círculo, em primeira instância, da área onde deva ter ligar
a acção ou omissão devida.
V – Tramitação
O
processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, é
como já tive oportunidade de referir um processo principal e urgente, ora como
tal, pretende-se obter com urgência uma decisão definitiva sobre o mérito da
causa. A urgência caracterizadora destes processos reflecte-se na sua
tramitação, vejamos os artigos 110.º e 111.º do CPTA, bem como o artigo 36.º/2,
que estabelece que “ Os processos
urgentes correm em tempo de férias, com dispensa de vistos prévios, mesmo em
fase de recurso jurisdicional, e os actos da secretaria são praticados no
próprio dia, com precedência sobre quaisquer outros.”
Centrando
a atenção nos artigos 110.º e 111.º verificamos que a lei estabelece vários
andamentos possíveis para o processo, conforme a complexidade e o grau de
urgência dos mesmos.
Assim
temos:
1- Para os processos
simples e de urgência normal/ordinária- a lei confere ao requerido um prazo
de sete dias para responder (artigo 110.º/1) e ao juiz um prazo de cinco dias
para decidir, uma vez concluídas as diligências necessárias (artigo 110.º/2);
2- Para
os processos dotados de alguma
complexidade e com uma urgência normal/moderada - aqueles que impliquem uma
análise mais detalhada, o número 3 do artigo 110.º remete para tramitação
estabelecida para a acção administrativa especial, embora com os prazos
reduzidos a metade;
3- Para
os processos dotados de uma especial
urgência, previstos no artigo 111.º, o juiz pode optar por encurtar o prazo
de resposta do requerido (artigo 111.º/1) são os processos que o Professor Mário Aroso de Almeida
classifica como “mais rápido que o normal”;
ou então, naqueles que o Professor qualifica como “ultra-rápido” o juiz pode optar por realizar no prazo de quarente e
oito horas, uma audiência oral, finda a qual decidirá de imediato.
Note-se
que, como refere o Professor Viera de
Andrade o processo de intimação é sempre um processo urgente, no
entanto, face a cada caso concreto compete ao juiz aferir o grau de urgência em
causa e assim adoptar a tramitação mais adequada.
V- Sentença e execução
No
que respeita ao conteúdo da sentença que irá por termo ao processo de intimação,
este pode assumir dois tipos de efeitos, a saber:
1- Efeito
condenatório – segundo o previsto no artigo 110.º/4 o tribunal determina
que o requerido adopte uma determinada conduta, positiva ou negativa, podendo
estabelecer um prazo para o cumprimento, bem como o responsável. E ainda nos
termos do número 5 do mesmo artigo, é-lhe ainda possível estabelecer, para o
caso de incumprimento, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória;
2
- Efeito executivo/substitutivo- quando
esteja em causa, nos termos do artigo 109.º/3, a obtenção “de um acto administrativo estritamente vinculado, designadamente de um
acto administrativo já praticado”, é conferido ao tribunal a possibilidade
de proferir uma sentença que irá substituir o dever da Administração. Quando tenha
este efeito a sentença visa produzir os mesmos efeitos do acto devido, substituindo
aquele que foi recusado ou omitido.
Trate-se
de uma situação excepcional, consentida pelo carácter urgente do processo em causa.
Já que em circunstâncias normais e no âmbito dos processos declarativos, ao
juiz nunca são conferidos estes poderes de substituição, há sempre que recorrer
a um processo executivo, conforme decorre dos artigos 164.º/4 e 167.º/6 do
CPTA.
Relativamente
à execução da sentença, apenas referir que se aplicam as regras gerais de
execução das sentenças, e que como acima ficou dito, a lei prevê a
possibilidade de fixação de sanção pecuniária compulsória para o caso de incumprimento.
VI – Recurso
A
possibilidade de interpor recurso tem ser vista de dois prismas, primeiro: se a
decisão é favorável ao requerente; segundo: se a decisão não é favorável ao
requerente.
Na
primeira situação, sendo a decisão favorável ao requerente o interesse em interpor
recurso coloca-se do lado do requerido. Nos termos do artigo 142.º/1 CPTA, a
possibilidade de recurso dependerá do valor da causa, e terá um efeito
meramente devolutivo, neste sentido, Carla
Amado Gomes e Viera de
Andrade.
Já
na segunda situação, quando o pedido de intimação for julgado improcedente e
por isso a decisão afigura-se desfavorável ao requerente, é sempre recorrível, independentemente
do valor da causa, nos termos do artigo 142.º/3 alínea a) do CPTA, sendo que
nestes casos, também o recurso segue a tramitação urgente. Opção que se
justifica pela relevância e natureza dos direitos em causa.
Bibliografia
consultada:
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013;
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, Coimbra,
2014;
CARLA AMADO GOMES, Pretexto, contexto e texto da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias" in Estudo em homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Telles, vol., 2003.
Telma
Gonçalves, nº 21020
[1] O
Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 6/Junho/2007, sendo que o tribunal
considerou: “Preenche a previsão do art.º 109º do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, justificando a intimação célere da entidade administrativa a
adoptar uma conduta, a situação de uma funcionária que padece de uma doença do
foro oncológico e, com base nesse facto, pretende ser submetida urgentemente a
Junta Médica de Revisão com vista a obter a aposentação, ao abrigo das normas
especiais do Decreto-Lei n.º 173/2001”