sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O âmbito de jurisdição da acção popular em matéria ambiental

§1. Delimitação do tema; §2. O direito fundamental ambiente; §3. A acção popular;
§4. Qual o juiz ad quem?; §5.Reflexões finais

            §1. Considerações gerais
            Não raro, somos confrontados com situações em que bens jurídicos ambientais são lesados ou se encontram em situação de iminente lesão, podendo, em termos muito latos, atribuir-se essa lesão quer a privados, independentemente da natureza da sua actuação, quer a entidades organicamente públicas. Por outro lado, esse dano pode resultar não só de acções, na acepção de condutas positivas, como também de situações em que o agente omite um comportamento que lhe era exigido. Destarte, e uma vez que «a protecção do ambiente traduz-se num interesse de preservação de um bem de fruição colectiva que se presta a ser defendido através de instrumentos de alargamento da legitimidade processual»[1], ou, se se preferir, um interesse difuso cuja defesa legitima as figuras da acção popular e da acção pública[2], coloca-se a questão de saber qual a jurisdição - cível ou administrativa - competente. É a esta pergunta que procuraremos dar resposta na nossa exposição (§4.), não olvidando, porém, as necessária menções - ainda que mais ou menos, breves - à consagração constitucional do ambiente (§2.) e à figura da acção popular (§3.).

            §2. O direito fundamental ambiente
            O (direito ao) ambiente, enquanto direito fundamental, está consagrado, expressamente, no art. 66.º da Constituição[3], que, paralelamente, define-o também como uma tarefa fundamental a prosseguir pelo Estado (alíneas d) e e) do art. 9.º). Nesse sentido, refere Vasco Pereira da Silva, o ambiente assume um dupla perspectiva à luz da Lei Fundamental, em que se conjuga um modelo de preservação predominantemente subjectivo, mas sempre acompanhado de uma tutela objectiva[4]. Todavia, tendo em conta o objecto desta exposição e a lateralidade que, por essa razão, este específico ponto assume, observe-se apenas a primeira das noções, ou seja, o ambiente enquanto direito fundamental. A esse respeito, fiquemos com algumas notas de relevo: (i) a importância da consagração do ambiente enquanto direito fundamental resulta, para Vasco Pereira da Silva, na garantia de uma adequada tutela do ambiente «contra agressões ilegais, provenientes quer de entidades públicas, quer de privadas, na esfera individual protegida pelas normas constitucionais»[5]; (ii) enquanto direito fundamental, o ambiente conhece uma dupla natureza, sendo, por um lado, um direito subjectivo e, por outro, um elemento fundamental da ordem objectiva da sociedade[6]; (iii) todavia, e como alerta Tiago Antunes, o preceito do art. 66.º da CRP consagra, não só um direito, mas, sobretudo, um dever, um dever de tutelado ambiente (art. 66.º, n.º 1, in fine)[7];(iv) por fim, este direito é, também, um interesse difuso, isto é, um valor simultaneamente de todos mas de ninguém e que, por essa razão, ninguém pode invocar como sendo só seu, mas que interessa a todos, como, aliás, resulta do art. 52.º, n.º 3, alínea a) da CRP, 1.º, do art. n.º 1 e 2, da Lei 83/95 ou Lei da Acção Popular (doravante, LAP), do art. 5.º, n.º 1 e 2 da Lei 19/2014 e do art. 9.º, n.º 2 do CPTA, matéria que analisaremos desde já.

            §3. A acção popular            
            A acção popular é definida por Paulo Otero como uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.[8] Constitucionalmente, este figura tem acolhimento no artigo 52.º,  n.º 3, da CRP, resultando daí que: (i) a acção popular tanto pode ser individual, se desencadeada por um certo sujeito, ou colectiva, quando desencadeada por associações sob o pressuposto da defesa de determinados interesses específicos - n.º 1, 1ª parte; (ii) o ambiente é um interesse juridicamente relevante para efeito de acção popular - n.º 3, alínea a), in fine; (iii) a sede principal desta figura, e consequente regulação material, é, por remissão da Constituição, a LAP - n.º 3. Olhando para esta lei, tem especial relevância o art. 12.º, n.º 1,que nos remete para a acção popular administrativa, isto é, a acção interposta na sequência de litígios resultantes de relações jurídico-administrativas, ou seja, relações que se incluem no âmbito de reserva dos tribunais administrativos, tal como refere o art.º 212, n.º 3, da CRP, ao qual iremos de seguida. Por fim, quanto à extensão da legitimidade processual em matéria de ambiente, serão especialmente relevantes os arts. 9.º, n.º 2, do CPTA e 7.º da Lei 19 de 2014, que clarifica o espectro de actuação neste campo[9] e, nessa medida, introduz uma inovação face ao que acontecia com anterior LBA[10].

            §4. Qual o juiz "ad quem"?
            Perante um litígio emergente de uma relação aparentemente regulada pelo contencioso administrativo, devemos procurar saber se, de facto, essa situação cai, ou não, no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos. A resposta a este problema encontramo-la nos arts. 1.º e 4 do ETAF. O art. 1.º do ETAF consagra uma cláusula geral nesta matéria e, essencialmente, reproduz tanto quanto é dito no art. 212.º, n.º 3, da CRP. Já o art. 4.º, apresenta-se como o critério material concretizador do art. 1.º, sendo por isso o artigo-chave na determinação do âmbito de jurisdição. Dito assim, esta questão parece bastante confusa, mas não é. Ora vejamos: o art. 212.º, n.º 3, vem consagrar o critério da relação jurídica administrativa para atribuir competências aos tribunais administrativos e fiscais, sendo que aquela é, no fundo, a relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo: dito de outra maneira, aquelas relações onde estejam presentes figuras como prerrogativas de autoridade, interesse público, entre outras. Contudo, este critério traz consigo alguns problemas. É que, passe-se o pleonasmo, consagra demasiados critérios que remetem para a distinção entre direito público e direito privado e nem sempre oferece solução, ou a melhor solução, para o caso concreto. Para fazer face a esta situação, o legislador criou, então, o art. 4.º do ETAF, que, todavia, se afasta em alguns aspectos do art. 1.º e, consequentemente, do art. 212.º, n.º 3, da CRP, podendo suscitar-se a questão de saber se não será inconstitucional. A resposta deve ser negativa, uma vez que o art. 4.º é uma norma especial, relativamente às normas gerais do art. 1.º e do art. 212.º. Além disso, tanto o próprio Tribunal Constitucional como o Supremo Tribunal Administrativo vieram já considerar o critério do 212.º, n.º3 da CRP como tendencial, admitindo-se, assim, desvios ao mesmo.[11]
            Passando, enfim, para a matéria ambiental, podemos conhecer da jurisdição competente com base no preceito do art. 4.º, n.º 1, alínea l, que consagra o critério objectivo da natureza jurídica da entidade demandada[12]. Carla Amado Gomes, numa leitura sistemática da norma, aponta ainda um outro: o da natureza dos poderes desenvolvidos pelo sujeito[13] - mas já lá iremos. Assim, tendo em conta o que acabámos de dizer, resulta deste artigo um claro desvio ao critério da relação jurídica administrativa, admissível como vimos, e que amplia o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, relativamente a uma aplicação singela do art. 1.º do ETAF. Mas, Mário Aroso de Almeida, acrescenta ainda que: «(...) do art. 4.º do ETAF, no seu conjunto - pois a alínea l) não pode ser lida isoladamente -, resulta, por isso, que as acções dirigidas à prevenção, cessão ou reparação de actividades privadas lesivas dos valores mencionados na alínea l) só estão excluídas do âmbito de jurisdição administrativa desde que não representem o exercício de funções materialmente administrativas nem sejam disciplinadas por normas de direito administrativo: o que pode suceder no caso de estarem sujeitas à necessidade de autorização ou licença (...)».[14] Ainda que esta construção não tenha sido a mais feliz, podendo gerar compreensíveis equívocos, o autor quer, tão só, afirmar que, para além do critério consagrado na alínea l), são também competentes os tribunais administrativos quando esteja em causa o exercício de funções materialmente administrativas e estas sejam disciplinadas por normas de direito administrativo. Trazendo agora à colação o segundo critério defendido por Carla Amado Gomes (supra referido), parece estar-se aqui perante a mesma realidade. Assim, e antes de finalizar, resta-nos, tão só, densificar o alcance deste critérios. Recuperando o início da nossa exposição, ainda a título de considerações gerais debruçámo-nos sobre a natureza das actuações dos agentes para efeitos da atribuição de jurisdição. Cabe agora reforçar aquilo que se disse e concluir que: desde que verificados os critérios de atribuição de jurisdição acima mencionados, tratar-se-á de igual modo tanto acções, quanto omissões, e independentemente destas serem praticadas (lato sensu) por entidades públicas ou privadas. Já não será assim quando, tratando-se apenas de entidades privadas estas não exerçam funções materialmente administrativas.

            §5. Reflexões finais
            Aqui chegados, é de questionar a adopção de tão latíssimo critério, que estende, ainda mais, o que já se consagra no art. 1.º do ETAF e no 212.º, n.º 3 da CRP. Na verdade, parece que qualquer traço de administratividade será bastante para, em última análise, e se bem fundamentado, atribuir-se competência à jurisdição administrativa[15]. Parece algo exagerado e, de facto, é. Todavia, não nos podemos esquecer qual objecto desta análise. Como já tivemos oportunidade de observar em sede própria (§3.), cuidamos aqui de uma acção popular de defesa de um interesses difuso, um interesse supra individual, o ambiente. O que é radicalmente diferente do caso de se tratar da defesa por particulares de interesses subjectivos. Ademais, e uma vez que o Direito não se pode imiscuir da realidade que pretende regular, o ambiente tem visto a sua tutela jurídica bastante reforçada na produção legislativa mais recente[16], nacional e internacional, o que parece evidenciar a preocupação que esta matéria tem suscitado na sociedade. Ora, por tudo isto, somos favoráveis à adopção de tal critério e da consequente atribuição de competência à jurisdição administrativa que nos parece melhor colocada para esse efeito.

 Tiago Guerreiro | 22227 | Subturma 6



[1] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões breves sobre a acção pública e a acção popular na defesa do ambiente, in Temas e Problemas de Processo Administrativo, 2.ª Ed., 2011  p. 327.
[2] À semelhança de Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 328, trataremos destas duas figuras de fora unívoca, assim também o art. 9.º, n.º 2, do CPTA.
[3] Também a Lei 19/2014 de 14 de Abril, que aprova as bases da política de ambiente, revogando a anterior lei de bases de ambiente (LBA), Lei 11/87 de 7 de Abril, consagra no seu art. 5.º o direito ao ambiente, agora numa perspectiva infra-constitucional.
[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verdes São também os Direitos do Homem, 2000, p. 18,  referindo também uma dupla noção, mas noutro sentido, Mário Torres, A protecção do ambiente no ordenamento jurídico português, pp. 14 e 15, aborda a delimitação negativa e positiva do direito fundamental ambiente, que se concretiza na abstenção de acções ambientais nocivas e no dever de protecção do ambiente, respectivamente.
[5] Defende, também, o autor que «(...) a melhor fora defender o ambiente passa pela tomada de consciência pelas pessoas dos direitos que possuem  neste domínio.», Verdes (...), pp. 16 e 17
[6] Hesse, cit. apud Vasco Pereira da Silva, Verdes (...), p. 19
[7] Cfr. Tiago Antunes, Pelos Caminhos Jurídicos do Ambiente, AAFDL, 2014, p. 17 a 19, que refere, ainda, que este dever deve ser entendido não de uma perspectiva de defesa contra agressões externas mas, sim, enquanto dever (global) de respeito do ambiente onde se incluem obrigações de defesa, protecção, entre outras. No mesmo sentido, o art. 8.º da Lei 19/2014.
[8] Cfr. Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no actual Direito português, p. 872.
[9] «1 — A todos é reconhecido o direito à tutela plena e efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em matéria de ambiente. 2 — Em especial, os referidos direitos processuais incluem, nomeadamente: a) O direito de acção para defesa de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, assim como para o exercício do direito de acção pública e de acção popular; b) O direito a promover a prevenção, a cessação e a reparação de violações de bens e valores ambientais da forma mais célere possível; c) O direito a pedir a cessação imediata da actividade causadora de ameaça ou dano ao ambiente, bem como a reposição da situação anterior e o pagamento da respectiva indemnização, nos termos da lei.» 
[10] Vide, a este propósito, o art. 45.º da Lei 11/87 de 7 de Agosto que, contudo, ia mais longe do que a actua lei e consagrava a relação jurídica como critério de atribuição de jurisdição.
[11] Cfr. , entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os  211/2007 e  302/2008 e do Supremo Tribunal Administrativo, Proc. n.º 1329/02 e Proc 1116/03 cit. apud Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), p. 158
[12] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013,  p. 171.
[13] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 327.
[14] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), pp. 172 e 173
[15] Vide, a este título, Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 331 e ss., onde a autora apresenta, também, alguns exemplos.
[16] Pense-se, por exemplo, na reforma da Fiscalidade Verde.
Evolução do Âmbito da Jurisdição Administrativo (art.º 4.º do ETAF)

            Tendo em conta que é em torno do âmbito da jurisdição administrativa que tudo se desenrola no contencioso administrativo e que determinamos se uma acção deve ou não ser proposta nos Tribunais Administrativos e Fiscais, o meu comentário irá incidir sobre este tema que está regulado nos arts.º 1.º e 4.º do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), tendo presente as sucessivas reformas que existiram ao longo do tempo. Antes de passarmos àquilo que realmente interessa, apenas uma ressalva para mencionar que quando falamos em jurisdição administrativa e fiscal, referimo-nos a uma única jurisdição, de acordo com a lei e com a Constituição (art.º 1.º do ETAF e 212.º/1 e 3 da CRP).
            É importante começar por referir a relação que o contencioso administrativo tem com a Constituição, uma vez que esta é “padrão de toda a actuação administrativa e contém normas quanto à natureza e organização dos tribunais competentes para o julgamento dos litígios administrativos, quanto aos direitos fundamentais dos cidadãos em matéria de processo”[1]. Foi com base nisto, que nas sucessivas revisões constitucionais (das quais as mais importante com inovações a respeito do nosso tema foram a de 1982 e 1989) se foi afirmando a natureza subjectiva do contencioso administrativo, mediante a “instituição de um contencioso administrativo integralmente jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e efectiva dos particulares nas relações jurídico-administrativas”[2].
            Na sequência da revisão constitucional de 1982, ocorreu uma reforma (1984/1985) que se traduziu na aprovação dos seguintes diplomas: 1) ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais); 2) Lei de Processo dos Tribunais Administrativos. O principal objectivo desta reforma foi “adequar a regulação da justiça administrativa às opções constitucionais da plena jurisdicionalização e da protecção jurídica subjectiva”. No entanto, esta reforma ficou muito aquém daquilo que se pretendia. Mais tarde, com a revisão de 1989, é que se deu um salto qualitativo e os tribunais administrativos e fiscais passaram a ser reconhecidos como uma jurisdição própria com competência para conhecer de todos os litígios emergentes das relações jurídico administrativas e fiscais, critério substantivo que está na base do art.º 1.º do ETAF e que fez com que o particular passasse a ser um sujeito de direito que estabelece relações com a administração, em vez de ser uma mera figura do poder[3]. O art.º 4.º do ETAF antes da revisão mencionada conferia à jurisdição administrativa uma função minoritária, porque esta só decidia questões cuja apreciação não fosse cometida por lei aos tribunais judiciais. Isto advinha do facto de os tribunais administrativos, no Estado Novo, não serem considerados como verdadeiros tribunais, o que veio a modificar-se com a revisão de 1989.  
            Com a Reforma de 2002/2004 o âmbito da jurisdição administrativa foi alargado, passando os tribunais administrativos e fiscais a serem competentes para apreciar muito mais matérias tais como (art.º 4.º do ETAF - sendo de fazer uma ressalva para mencionar o facto de que o âmbito da jurisdição administrativa que vigora neste momento, corresponde em muito ao que se implementou com esta reforma, só se alterando a enumeração das alíneas):
                        (i) apreciação de actos materialmente administrativos praticados pelos Tribunais Judiciais, cuja apreciação, até este momento, era excluída do seu âmbito (al. c)). Continua excluída a apreciação de actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do STJ, pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu Presidente, cuja competência continua na esfera do STJ (n.º 3, al. b) e c)). Também fica excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a possibilidade de impugnação de actos no exercício de outras funções que não a administrativa (n.º 2).

                        (ii) introdução da al. l) no art.º 4.º/1 do ETAF: o art.º 45.º da Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril) atribuía competência para apreciar os litígios emergentes das relações mencionadas na alínea em questão, aos tribunais judiciais. Com a constitucionalização da jurisdição administrativa, como atrás já mencionamos, e com a instituição da acção popular como meio para a defesa de valores ambientais no âmbito de relações jurídico-administrativas os tribunais judiciais deixaram de ter esta competência. Com a reforma de 2004, o art.º 45.º da referida lei foi reformulado, passando este a abster-se de determinar qual das jurisdições seria a competente para regular a questão, deixando a questão em aberto e reservando-a para a sede própria que são as leis processo, sendo que estas determinam que em primeira linha, está a aplicação do ETAF. Logo, é competente para regular esta matéria a jurisdição administrativa. Para além disto, a alínea em questão passa a integrar o critério da entidade demandada, ou seja, sempre que estiver em causa a actuação de uma entidade pública, o litígio deve ser dirimido pelos tribunais administrativos.

                        (iii) introdução da al. m), cujo conteúdo, actualmente, se encontra na al. n) do art.º 4.º/1 do ETAF: confere à jurisdição administrativa competência para executar as suas próprias sentenças.

                         (iv) a jurisdição administrativa passou a ter o poder de proceder à adjudicação do bem que tenha sido expropriado, quando houvesse lugar à reversão (isto resulta da alteração que o art.º 5.º da Lei n.º 13/2002, introduziu nos arts.º 74.º e 77.º do Código das Expropriações) Trata-se de matéria que não vem mencionado no art.º 4.º do ETAF, mas que também foi submetida à competência dos tribunais administrativos.

                        (v) a reforma de 2004 também inovou no que diz respeito à matéria da responsabilidade civil extracontratual e matéria de contratos:
                                   ▪ A delimitação do âmbito da jurisdição administrativa era baseada na distinção entre actuação de gestão pública e actuação de gestão privada, critério que foi deixado de lado e que só é chamado à colação quando esteja em causa um litígio que recaia no âmbito da al. i) do art.º 4.º/1 do ETAF[4].
                                   ▪ Aqui a solução também foi adoptar o critério da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deve ser submetido aos tribunais administrativos[5].
                                   ▪ al. i): para efectivar a responsabilidade mencionada nesta alínea é necessário saber se o facto constitutivo da mesma se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público. Para que os tribunais administrativos sejam competentes é necessário que haja remissão para uma norma que submeta essas entidades ao regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, caso contrário, eles não serão competentes, esvaziando de sentido útil a alínea em questão.
                                   ▪ als. e) e f): no que respeita especificamente às relações contratuais, passa a ser competente para apreciação dos litígios emergentes dos contratos celebrados por entidades públicas a jurisdição administrativa. O critério estabelecido na al. e) foi o de verificar se o contrato está ou não precedido de um procedimento pré-contratual, e se a resposta for afirmativa, a jurisdição competente será a administrativa, independentemente da qualificação do contrato em questão. Quanto à al. f), o critério é o do regime substantivo. Nesta alínea o legislador procurou densificar o conceito de contrato administrativo, determinando que estaríamos perante esse tipo contratual se se verificasse um dos seguintes elementos: (i) contrato com objecto passível de acto administrativo; (ii) critério da tipicidade – ou seja, desde que seja um dos contratos mencionados no CCP; e por último, (iii) se o contrato for submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público. Os tribunais administrativos só serão competentes nestes 3 casos que acabamos de mencionar.
                                   ▪ Continua excluído do âmbito da jurisdição administrativa a apreciação das “acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso” (art.º 4.º/3, al. a) do ETAF).

            O Professor Mário Aroso de Almeida diz-nos, no seu manual, que era necessário uma reforma de fundo, para além desta que aconteceu em 2004, para que se pudesse aproximar os tribunais de círculo das populações, eliminando assim, os obstáculos de acesso dos cidadãos à justiça. Até então, tal nunca foi alcançado, o que justifica, segundo o Professor, que certas matérias estejam excluídas do âmbito da jurisdição administrativa tais como, atribuição de indemnizações por expropriação, adjudicação do bem ao titular da reversão, contencioso contra-ordenacional, litígios materialmente administrativos, entre outras. Ao que parece, o desejo do Professor Mário Aroso de Almeida será atendido, uma vez que actualmente está em curso um anteprojecto de revisão do contencioso administrativo, que em relação à nossa matéria, pretende alargar o âmbito da jurisdição administrativa a outras matérias, englobando muitas daquelas que o Senhor Professor mencionou no seu manual. Entre elas, podemos mencionar:
                        (i) Supressão no art.º 1.º do ETAF da referência ao conceito de “relação jurídico-administrativa” que é considerado, actualmente, como um critério delimitador do âmbito da jurisdição administrativa. Não obstante essa supressão, não se deixa de atender ao critério mencionado, uma vez que ele sai reforçado pela introdução da nova al. q) no n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e está constitucionalmente previsto no art.º 212.º/3 da CRP. O que vamos encontrar nessa alínea, é uma cláusula aberta de delimitação do âmbito de jurisdição, com a enumeração de algumas situações, enumeração que não é taxativa, e que permite que o litígio seja resolvido pelos tribunais administrativos desde que os mesmos sejam subsumíveis ao conceito de relação jurídico-administrativa.

                        (ii) nova al. i) do n.º 1 do art.º 4 do ETAF: alarga-se o âmbito a “actuações ou situações administrativas constituídas em vias de facto, sem título que as legitime”. Trata-se daquelas situações em que, por exemplo, a entidade expropriante age sem título jurídico que a legitime, ou seja, em via de facto, invadindo e apossando-se de imóveis de particulares. Se a revisão que está em curso entrar em vigor esta matéria passará a ser da competência dos tribunais administrativos, apenas com a consequência de que a fixação da indemnização terá que respeitar o processo previsto no Código da Expropriação.

                        (iii) a jurisdição administrativa também vai passar a ser competente para o pagamento de indemnizações, que tenham por fonte actuações de entidades públicas das quais decorram a imposição de sacrifícios por razões de interesse público, assim como a afectação do conteúdo essencial de direitos (nova alínea j) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF). Apesar disto, só temos aqui uma novidade parcial, uma vez que a primeira parte deste ponto, já está consagrada no art.º 37.º/2 do CPTA.  As medidas administrativas que impliquem para os particulares, a imposição de “sacrifícios por razões de interesse público” convoca a aplicação do regime da Lei n.º 67/2007 e as medidas que impliquem a afectação de direitos dos particulares tem que ser conjugada com o novo art.º 166.º do CPA ou com legislação avulsa que para ela remeta e ainda, com o art.º 16.º da Lei n.º 67/2007.

                        (iv) alargamento do âmbito da jurisdição administrativa às situações de concurso de causas envolvendo entidades públicas e privadas, embora esta situação já tenha previsão legal na Lei n.º 67/2007. Isto vai corresponder ao novo n.º 2 do art.º 4.º do ETAF.

                        (v) nova al. g) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF: a novidade aqui prende-se com a introdução da referência a trabalhadores. De acordo com Licínio Lopes Martins, trata-se de um conceito amplo que permite abranger não só os trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas (Lei n.º 35/2014), bem como os que exerçam funções ao abrigo do regime do Código de Trabalho ou do Instrumento de Regulamentação Colectiva de trabalho. Isto vai ter implicações no que diz respeito à exclusão mencionada no art.º 4.º/3, al. b) do ETAF, uma vez que nem todos os litígios emergentes de contratos individuais de trabalho vão ficar excluídos do âmbito da jurisdição. É o que sucederá com esta nova al. g), que atribuirá à jurisdição administrativa competência para dirimir os conflitos que digam respeito à responsabilidade civil extracontratual resultante do exercício de funções públicas tituladas por tais contratos.

                        (vi) introdução de uma nova al. e) no n.º 1 do art.º 4.º do ETAF que irá fazer uma síntese das actuais als. b), e) e f) do mesmo artigo. A segunda parte desta nova alínea procura fazer uma dupla delimitação: 1) atribuir aos tribunais administrativos competência para todas as questões de contratação pública, “independentemente da qualidade subjectiva das entidades adjudicantes e independentemente da natureza administrativa do acto que celebrem”; 2) “excluir do âmbito da jurisdição administrativa todos os contratos de direito privado da Administração e os contratos públicos da Administração” que não sejam celebrados nos termos do CCP, ou seja, de acordo com a legislação sobre contratação pública, directivas europeias e legislação avulsa especial sobre a matéria. 

                        (vii) a maior novidade que o anteprojecto de revisão do art.º 4.º do ETAF pretende introduzir é relativa ao contencioso contra-ordenacional, que vai passar a fazer parte da nova al. n) do n.º 1 do artigo em análise. Esta inovação vem na sequência da evolução que já se vinha a sentir desde a reforma de 2002/2004, que atribuiu aos tribunais administrativos a competência para promover a cessação, prevenção e reparação de violação de valores e bens constitucionalmente protegidos em matérias como o ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, mas da qual excluía as contra-ordenações, sendo este o regime que vigora actualmente na al. l) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF. Várias razões apontadas por Licínio Lopes Martins justificam a inclusão do contencioso contra-ordenacional no âmbito da jurisdição administrativa, as quais passamos a apontar[6]:
                                   ▪ Razões de ordem material: a actividade das coimas constitui uma actividade materialmente administrativa e como tal, deve estar submetida à apreciação dos tribunais administrativos.
                                   ▪ Razões orgânicas: a decisão de aplicação da sanção contra-ordenacional é sempre uma decisão que pertence a um órgão da administração.
                                   ▪ Razões normativas: as normas violadas, enquanto normas conformadoras da actividade administrativa, têm natureza administrativa e como tal, está sempre em causa, em última análise, a violação de normas administrativas, o que justifica, uma vez mais a atribuição da competência aos tribunais administrativos.
                                   ▪ Razão procedimental: a aplicação da sanção decorre através de um procedimento administrativo.
                                   ▪ Razão funcional: o ilícito, regra geral, ocorre no exercício de actividades económicas pelos particulares que são objecto de um controlo prévio pela administração (através da concessão de licenças, autorizações, concessões, alvarás, etc.) ou objecto de um controlo a posteriori. Temos uma actuação de fiscalização e inspecção permanente por parte da Administração.
                        Uma das críticas que verificamos e que desde já adiro, através da análise de um Parecer[7] ao projecto de revisão do CPTA e ETAF, prende-se com o facto de a introdução da matéria contra-ordenacional no âmbito da jurisdição administrativa, implicar a aplicação do Regime Geral das Contra-Ordenações e do CPP. Isto vai implicar a formação de magistrados no âmbito destas matérias em causa, vai aumentar o número de trabalhos, o que vai exigir juízes mais qualificados.

            Concluo, apenas deixando a ideia, através da análise das sucessivas revisões e alterações ao art.º 4.º do ETAF, que o novo projecto de revisão que está em curso vai atribuir muito mais competências aos tribunais administrativos, sendo que, essas competências são sempre atribuídas no sentido de conferir uma tutela plena e efectiva dos direitos e interesses dos particulares, sendo os administrados o centro de todas as preocupações. A evolução foi sempre num sentido subjectivista, possibilitando sempre aos particulares recorrer à Administração sempre que estivessem envolvidos em litígios que se prendem com relações jurídico-administrativas, mas sem descartar a vertente objectivista que também é algo que o art.º 4.º do ETAF se preocupa, nomeadamente com a prossecução do interesse público e controlo da legalidade. Para tal contribuiu imenso a opinião de Vasco Pereira da Silva, que é marcadamente subjectivista e defende com persistência a tutela dos direitos dos sujeitos que são parte na relação jurídico-administrativa. Deixo aqui opinião de que, sendo a Justiça um serviço público ao serviço dos cidadãos, não devemos burocratizar demasiado o sistema, introduzindo e aumentado o número de matérias a que os tribunais terão que dar uma resposta eficiente, o que muitas vezes não acontece. Aos cidadãos deve ser dado um acesso à justiça eficaz e satisfatório, visto que, são estes que lhe dão substância para a resolução dos vários litígios jurídico-administrativos.   

Filipa Mota 
N.º 20916
4.º ano, subturma 6

Bibliografia utilizada:
1) Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, p. 23 a 45
2) Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, p. 153 a 191
3) Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 169 a 239
4) Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª Edição, p. 15 a 21 e 25 a 44
5) Licínio Lopes Martins, Âmbito da Jurisdição Administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto, 2014



[1] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, p. 175.
[2] Vasco Pereira da Silva, Ibidem, p. 182.  
[3] Afasta-se assim “uma visão “actocêntrica” do Direito Administrativo, adoptando a noção de relação jurídica-administrativa como “nova” figura central” (…). O Contencioso Administrativo deixou de ser visto como algo que está limitado à verificação da legalidade. Idem, p. 200.  
[4] Quanto à gestão Pública e gestão Privada: deixou-se de utilizar este critério, o que significa que desde que esteja em causa danos provocados por uma entidade pública, o litígio recai no âmbito da jurisdição administrativa.
[5] Acabou a dualidade da função jurisdicional, mas continua a existir uma dualidade de regime. Em termos jurisdicionais os Tribunais Administrativos são sempre os tribunais competentes, podem é ter que julgar o litígio ao abrigo da Lei 67/2007 ou ao abrigo do CC (art.º 483.º).
[6] Licínio Lopes Martins, Âmbito da Jurisdição Administrativa no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais revisto, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 106, Julho/Agosto, 2014.

A tutela jurisdicional efectiva como garantia dos direitos dos indivíduos


No âmbito do contencioso administrativo, o princípio da tutela jurisdicional efectiva toma grande relevo como meio de protecção do indivíduo. Na maioria dos casos, as relações jurídicas administrativas são constituídas por particulares e pessoas/entidades de poder público no exercício do seu poder de autoridade, colocando as partes numa situação de clara desigualdade, em que o particular é a parte mais fraca, carecendo de um meio que garanta os seus direitos e interesses.
Para este estudo é necessário ter presente o modelo de justiça administrativa, que se divide em duas teses: objectivistas e subjectivistas. As teses objectivas consideram que o objectivo do contencioso administrativo é tutelar a legalidade e o interesse público. Já, as teses subjectivistas encaram os direitos e interesses dos particulares como o verdadeiro objecto de tutela. O princípio da tutela jurisdicional efectiva é uma concretização do modelo subjectivista pois, em termos muito genéricos, este visa garantir o direito de acesso aos tribunais (e ao direito) a todos particulares, por meio de um processo equitativo, de uma decisão em tempo razoável e da efectividade da sentença. O princípio em causa é uma salvaguarda dos direitos dos indivíduos na relação jurídico-administrativa.
O princípio em análise constitui um direito fundamental consagrado, em geral, no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 268º/4 e 5 da mesma, no que toca ao campo de acção administrativa. Apesar de ser um direito constitucionalmente reconhecido, carece de uma concretização por parte do legislador ordinário e esta concretização encontra-se no artigo 2º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).
O artigo 20º da CRP determina o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (epígrafe) estabelecendo que todos os indivíduos, sejam eles pessoas individuais, colectivas, nacionais ou estrangeiros, têm o direito de acesso ao direito, isto é, à consulta jurídica e ao patrocínio judiciário, e o direito de acesso aos tribunais que engloba os direitos de propor acção tal como o de responder à mesma, (princípio do contraditório), que a sua causa seja decidida, ou seja, que o Tribunal se pronuncie sobre a mesma, que a decisão seja tomada em tempo razoável, por meio de um processo equitativo, isto é, um processo em que se respeite o princípio da justiça e à execução da decisão.
A nenhum indivíduo pode ser negado este direito, sob pena de violação da constitucionalidade. No caso do patrocínio judiciário e no caso do próprio acesso ao tribunal há que ter em conta que nem todos possuem meios económicos suficientes para os suportar. O patrocínio judiciário será sempre assegurado, mesmo quando não haja possibilidade económica pela parte de o obter. Quanto ao nível das taxas e custas judiciais, estas não podem ser de tal modo altas que tornem inviável o acesso aos tribunais.
O artigo 268º da CRP revela uma grande evolução na perspectiva da tutela dos indivíduos no que toca ao acesso à justiça uma vez que, anteriormente, a única acção prevista era a de impugnação de actos administrativos por ilegalidade e, para além disso, o acto tinha de ser “definitivo” e “executório”. Hoje em dia, pode ser impugnado qualquer acto que lese ou que ameace lesar o particular, independentemente da sua forma, o que significa, desde logo, que um acto preparatório pode ser objecto de impugnação, desde que lese ou haja possibilidade de lesão de direito ou interesse legalmente protegido daquele. Depois, o que se exige para que o acto possa ser impugnado é que este seja eficaz ou que, mesmo não o sendo, acarrete consequências que prejudicam os direitos e interesses do indivíduo.
Outro sinal de evolução no que respeita ao artigo em análise é o de que, actualmente, as acções podem ser de variados tipos, não se restringindo apenas à impugnação. Estas podem incidir sobre o reconhecimento de direitos ou interesses (por meio de acção de simples apreciação e inibitórias ou acções de condenação e de prestação), de determinação da administração à pratica de actos legalmente devidos e ainda podem ser adoptadas as medidas cautelares apropriadas à causa. Todas estas situações têm concretização no Código de Processo nos Tribunais administrativos – artigos 46º, 55º, 66º e seguintes, 72º e seguintes e 112º e seguintes.
O artigo 2º do CPTA é uma concretização legislativa do princípio supracitado. O número dois deste artigo refere que “a todo ou direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada” o que mostra que o indivíduo tem uma panóplia de meios que pode usar para fazer valer as suas pretensões, aliás os meios apropriados a fazer valer os seus direitos.
Neste sentido, parece-me importante analisar uma questão específica que se prende com as medidas cautelares e quem tem sido uma questão amplamente discutida na doutrina a propósito da sua íntima relação com o princípio em análise. As medidas cautelares estão previstas no 112º e seguintes do CPTA. Apesar de não serem processos principais mas, sim, acessórios estas revestem-se de uma grande importância na medida em que garantem a utilidade do processo. A tutela cautelar não resolve a questão de fundo, é apenas uma decisão provisória, que servirá enquanto a decisão definitiva não é tomada. Sem a providência cautelar, o direito ou interesse pode ser gravemente lesado e essa lesão pode-se tornar de difícil ou, até, de impossível reparação. Imagine-se o caso em que a administração autoriza o funcionamento, no centro de uma cidade, de uma fábrica que emite resíduos altamente tóxicos. Se os interessados com legitimidade (como por exemplo uma associação que tenha como objectivo a defesa do saúde pública ou até mesmo um cidadão) não tivessem um meio para suspender a eficácia da decisão (artigo 112/2/a) do CPTA) até ao momento em que a sentença fosse proferida, a saúde pública seria seriamente lesada. Deste modo, é possível retirar a conclusão de que as providências cautelares são um garante da efectividade da tutela jurisdicional e uma das mais importantes dimensões deste princípio porque, sem elas, muitas das vezes, a decisão da causa não teria a utilidade de salvaguarda dos direitos e interesses legalmente protegidos.
A tutela jurisdicional efectiva é um corolário da dignidade da pessoa humana que comporta grande significado para que os direitos e interesses do particular sejam, de facto, assegurados na sua relação com a administração, sobretudo no domínio do uso dos seus poderes de autoridade.
 

Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa: lições, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009
CANOTILHO, J.J Gomes/ MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, 2007
CANOTILHO, J.J Gomes/ MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume II, 4.ª edição revista, 2010
SILVA, Vasco Pereira da, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares, Almedina, 1989



Joana Soares de Aguiar

Nº21023
Subturma 6


quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Ação popular: Da legitimidade



A legitimidade é um pressuposto processual fundamental atribuindo às partes o direito de demandar, legitimidade ativa, artigo 9º CPTA ou ser demandado, legitimidade passiva, artigo 10º CPTA.
Consagrado de forma inequívoca pela revisão constitucional de 1997, a ação popular viu o seu estatuto de instrumento de democracia participativa reforçado e ampliado através de adição das alíneas, a) e b) ao nº3 do artigo 52, cumprindo o princípio enunciado no nº 1 do artigo 3º da Constituição da República Portuguesa (CRP). A partir de agora fica mais clara a possibilidade de intervenção, ora como meio de suprir a sua inércia, omissão ou negligência, ora como reação à prática de atos ilegais, tais como, por exemplo, peculato, prevaricação e corrupção.
Esta revisão verificada em 1997 foi antecedida por dois importantes períodos para a sua evolução e consolidação:
1)      Período anterior à revisão de 1989
2)      Depois da revisão de 1989
No primeiro caso o instituto da democracia representativa apresentava-se como um texto relativamente ambíguo e tímido.
No segundo caso é introduzido no artigo 52º o nº 3, alargando o âmbito do direito de ação popular.
 Depois de necessária introdução histórica, veremos então como, na prática, o legislador ordinário, para o qual a Constituição remete, interpretou o texto constitucional e lhe deu sentido material sem diminuir o âmbito do exercício da soberania popular, ou seja, quem tem ou não tem legitimidade para ir a processo.
No âmbito da aplicação prática o artigo 9º nº 2 do CPTA trata da ação popular, ou também chamado mecanismo de extensão da legitimidade, que pode ser proposta individualmente ou em grupo. Não estão em causa neste tipo de ação interesses individuais, mas o interesse comunitário.
Este artigo lista os valores protegidos, mas não é um elenco exaustivo. Deste modo, poderão existir valores que não estando aqui expressos se enquadram no espírito do preceito.
O artigo 55º nº 2 do CPTA, atribui legitimidade aos residentes no círculo eleitoral da autarquia para impugnar atos praticados pelos seus órgãos, ou representantes através da chamada ação popular corretiva.
A atribuição de legitimidade aos residentes da circunscrição não significa que os não residentes nesse círculo eleitoral estejam inibidos de pleitear contra a entidade pública que pratique atos ofensivos dos valores protegidos elencados no nº 2 do artigo 9º, pelo contrário, é um dever de cidadania fazê-lo e que o nº 2 do artigo 9º do CPTA exige. A ideia de que se, por exemplo, um qualquer cidadão ou grupo excursionista de visita a uma qualquer localidade constatar algo que ofenda a preservação da natureza, meio ambiente e o respeito pelos princípios da boa gestão da coisa pública não possa questionar o respetivo poder instituído, nem pleitear contra ele é errada. Se assim fosse estaria em causa o princípio constitucional da soberania do povo “una e indivisível”, nº 1 do artigo 3º da CRP. A legitimidade dos residentes é uma legitimidade fundada num interesse que afeta direta individual ou coletivamente aqueles residentes. Poder-se-á dizer que o nº 2 do artigo 55º do CPTA é uma segunda modalidade de ação popular. Não é essa a posição dos não residentes cuja pretensão se funda no disposto no nº 2 do artigo 9º do CPTA.
Outra questão que nos parece importante aqui referir é a necessidade de incentivar os cidadãos a serem mais pró-ativos no exercício da cidadania. O exemplo recente dos chamados contratos “swap” ou de permuta, celebrados por Empresas do Setor Empresarial do Estado e que resultaram em prejuízos avultados para essas empresas e com consequências diretas na dívida pública, deve ser objeto de sobressalto público com a propositura de ação popular de responsabilização dos agentes públicos que celebraram esses contratos leoninos. O nº 2 do artigo 9º do CPTA acomoda perfeitamente esta questão na parte referente a “bens do estado”.
Jurisprudência sobre a tutela dos interesses difusos no Direito Português

José Rodrigues
Aluno nº 19946