§1.
Delimitação
do tema; §2. O direito fundamental
ambiente; §3. A acção popular;
§4.
Qual
o juiz ad quem?; §5.Reflexões finais
§1.
Considerações gerais
Não
raro, somos confrontados com situações em que bens jurídicos ambientais são
lesados ou se encontram em situação de iminente lesão, podendo, em termos muito
latos, atribuir-se essa lesão quer a privados, independentemente da natureza da
sua actuação, quer a entidades organicamente públicas. Por outro lado, esse
dano pode resultar não só de acções, na acepção de condutas positivas, como
também de situações em que o agente omite um comportamento que lhe era exigido.
Destarte, e uma vez que «a protecção do
ambiente traduz-se num interesse de preservação de um bem de fruição colectiva
que se presta a ser defendido através de instrumentos de alargamento da
legitimidade processual»[1], ou,
se se preferir, um interesse difuso cuja defesa legitima as figuras da acção
popular e da acção pública[2], coloca-se
a questão de saber qual a jurisdição - cível ou administrativa - competente. É
a esta pergunta que procuraremos dar resposta na nossa exposição (§4.),
não olvidando, porém, as necessária menções - ainda que mais ou menos, breves -
à consagração constitucional do ambiente (§2.)
e à figura da acção popular (§3.).
§2. O direito fundamental ambiente
O (direito ao) ambiente, enquanto
direito fundamental, está consagrado, expressamente, no art. 66.º da Constituição[3], que,
paralelamente, define-o também como uma tarefa fundamental a prosseguir pelo
Estado (alíneas d) e e) do art. 9.º). Nesse sentido, refere Vasco Pereira da Silva, o ambiente
assume um dupla perspectiva à luz da Lei Fundamental, em que se conjuga um
modelo de preservação predominantemente subjectivo, mas sempre acompanhado de
uma tutela objectiva[4].
Todavia, tendo em conta o objecto desta exposição e a lateralidade que, por
essa razão, este específico ponto assume, observe-se apenas a primeira das noções,
ou seja, o ambiente enquanto direito fundamental. A esse respeito, fiquemos com
algumas notas de relevo: (i) a importância da consagração do ambiente enquanto
direito fundamental resulta, para Vasco
Pereira da Silva, na garantia de uma adequada tutela do ambiente «contra agressões ilegais, provenientes quer
de entidades públicas, quer de privadas, na esfera individual protegida pelas
normas constitucionais»[5];
(ii) enquanto direito fundamental, o
ambiente conhece uma dupla natureza, sendo, por um lado, um direito subjectivo
e, por outro, um elemento fundamental da ordem objectiva da sociedade[6]; (iii)
todavia, e como alerta Tiago Antunes,
o preceito do art. 66.º da CRP consagra, não só um direito, mas, sobretudo, um
dever, um dever de tutelado ambiente (art. 66.º, n.º 1, in fine)[7];(iv) por
fim, este direito é, também, um interesse difuso, isto é, um valor simultaneamente de todos mas de ninguém e que, por essa razão,
ninguém pode invocar como sendo só seu, mas que interessa a todos, como,
aliás, resulta do art. 52.º, n.º 3, alínea a)
da CRP, 1.º, do art. n.º 1 e 2, da Lei 83/95 ou Lei da Acção Popular (doravante,
LAP), do art. 5.º, n.º 1 e 2 da Lei 19/2014 e do art. 9.º, n.º 2 do CPTA,
matéria que analisaremos desde já.
§3.
A acção popular
A acção popular é definida por Paulo Otero
como uma forma de tutela jurisdicional de
posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma
certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos
individuais.[8] Constitucionalmente, este
figura tem acolhimento no artigo 52.º,
n.º 3, da CRP, resultando daí que: (i) a acção popular tanto pode ser
individual, se desencadeada por um certo sujeito, ou colectiva, quando
desencadeada por associações sob o pressuposto da defesa de determinados
interesses específicos - n.º 1, 1ª parte; (ii) o ambiente é um interesse
juridicamente relevante para efeito de acção popular - n.º 3, alínea a), in
fine; (iii) a sede principal desta figura, e consequente regulação
material, é, por remissão da Constituição, a LAP - n.º 3. Olhando para esta
lei, tem especial relevância o art. 12.º, n.º 1,que nos remete para a acção
popular administrativa, isto é, a acção interposta na sequência de litígios
resultantes de relações jurídico-administrativas, ou seja, relações que se
incluem no âmbito de reserva dos tribunais administrativos, tal como refere o
art.º 212, n.º 3, da CRP, ao qual iremos de seguida. Por fim, quanto à extensão
da legitimidade processual em matéria de ambiente, serão especialmente
relevantes os arts. 9.º, n.º 2, do CPTA e 7.º da Lei 19 de 2014, que clarifica
o espectro de actuação neste campo[9]
e, nessa medida, introduz uma inovação face ao que acontecia com anterior LBA[10].
§4. Qual o juiz "ad quem"?
Perante
um litígio emergente de uma relação aparentemente regulada pelo contencioso
administrativo, devemos procurar saber se, de facto, essa situação cai, ou não,
no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos. A resposta a este
problema encontramo-la nos arts. 1.º e 4 do ETAF. O art. 1.º do ETAF consagra
uma cláusula geral nesta matéria e, essencialmente, reproduz tanto quanto é
dito no art. 212.º, n.º 3, da CRP. Já o art. 4.º, apresenta-se como o critério
material concretizador do art. 1.º, sendo por isso o artigo-chave na
determinação do âmbito de jurisdição. Dito assim, esta questão parece bastante
confusa, mas não é. Ora vejamos: o art. 212.º, n.º 3, vem consagrar o critério
da relação jurídica administrativa para atribuir competências aos tribunais
administrativos e fiscais, sendo que aquela é, no fundo, a relação jurídica
regulada pelo Direito Administrativo: dito de outra maneira, aquelas relações
onde estejam presentes figuras como prerrogativas de autoridade, interesse
público, entre outras. Contudo, este critério traz consigo alguns problemas. É
que, passe-se o pleonasmo, consagra demasiados
critérios que remetem para a distinção entre direito público e direito privado
e nem sempre oferece solução, ou a melhor solução, para o caso concreto. Para
fazer face a esta situação, o
legislador criou, então, o art. 4.º do ETAF, que, todavia, se
afasta em alguns aspectos do art. 1.º e,
consequentemente, do art. 212.º,
n.º 3, da CRP, podendo suscitar-se a questão de saber se não será
inconstitucional. A resposta deve ser negativa, uma vez que o art. 4.º é uma
norma especial, relativamente às normas gerais do art. 1.º e do art. 212.º. Além
disso, tanto o próprio Tribunal Constitucional como o Supremo Tribunal
Administrativo vieram já considerar o critério do 212.º, n.º3 da CRP como
tendencial, admitindo-se, assim, desvios ao mesmo.[11]
Passando, enfim, para a matéria
ambiental, podemos conhecer da jurisdição competente com base no preceito do
art. 4.º, n.º 1, alínea l, que consagra o critério objectivo da natureza
jurídica da entidade demandada[12]. Carla Amado Gomes, numa leitura
sistemática da norma, aponta ainda um outro: o da natureza dos poderes
desenvolvidos pelo sujeito[13] -
mas já lá iremos. Assim, tendo em conta o que acabámos de dizer,
resulta deste artigo um claro desvio ao critério da relação jurídica
administrativa, admissível como vimos, e que amplia o âmbito de jurisdição dos
tribunais administrativos, relativamente a uma aplicação singela do art. 1.º do
ETAF. Mas, Mário Aroso de Almeida,
acrescenta ainda que: «(...) do art. 4.º
do ETAF, no seu conjunto - pois a alínea l) não pode ser lida isoladamente -,
resulta, por isso, que as acções dirigidas à prevenção, cessão ou reparação de
actividades privadas lesivas dos valores mencionados na alínea l) só estão
excluídas do âmbito de jurisdição administrativa desde que não representem o
exercício de funções materialmente administrativas nem sejam disciplinadas por
normas de direito administrativo: o que pode suceder no caso de estarem
sujeitas à necessidade de autorização ou licença (...)».[14]
Ainda que esta construção não tenha sido a mais feliz, podendo gerar
compreensíveis equívocos, o autor quer, tão só, afirmar que, para além do
critério consagrado na alínea l), são também competentes os tribunais
administrativos quando esteja em causa o exercício de funções materialmente
administrativas e estas sejam disciplinadas por normas de direito
administrativo. Trazendo agora à colação o segundo critério defendido por Carla Amado Gomes (supra referido),
parece estar-se aqui perante a mesma realidade. Assim, e antes de finalizar, resta-nos,
tão só, densificar o alcance deste critérios. Recuperando o início da nossa
exposição, ainda a título de considerações gerais debruçámo-nos sobre a
natureza das actuações dos agentes para efeitos da atribuição de jurisdição.
Cabe agora reforçar aquilo que se disse e concluir que: desde que verificados
os critérios de atribuição de jurisdição acima mencionados, tratar-se-á de igual
modo tanto acções, quanto omissões, e independentemente destas serem praticadas
(lato sensu) por entidades públicas
ou privadas. Já não será assim quando, tratando-se apenas de entidades privadas
estas não exerçam funções materialmente administrativas.
§5. Reflexões finais
Aqui
chegados, é de questionar a adopção de tão latíssimo
critério, que estende, ainda mais, o que já se consagra no art. 1.º do ETAF e
no 212.º, n.º 3 da CRP. Na verdade, parece que qualquer traço de administratividade será bastante para,
em última análise, e se bem fundamentado, atribuir-se competência à jurisdição
administrativa[15].
Parece algo exagerado e, de facto, é. Todavia, não nos podemos esquecer qual
objecto desta análise. Como já tivemos oportunidade de observar em sede própria
(§3.),
cuidamos aqui de uma acção popular de defesa de um interesses difuso, um
interesse supra individual, o ambiente. O que é radicalmente diferente do caso
de se tratar da defesa por particulares de interesses subjectivos. Ademais, e
uma vez que o Direito não se pode imiscuir da realidade que pretende regular, o
ambiente tem visto a sua tutela jurídica bastante reforçada na produção
legislativa mais recente[16],
nacional e internacional, o que parece evidenciar a preocupação que esta
matéria tem suscitado na sociedade. Ora, por tudo isto, somos favoráveis à
adopção de tal critério e da consequente atribuição de competência à jurisdição
administrativa que nos parece melhor colocada para esse efeito.
Tiago Guerreiro | 22227 | Subturma 6
[1] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões
breves sobre a acção pública e a acção popular na defesa do ambiente, in Temas e Problemas de Processo
Administrativo, 2.ª Ed., 2011 p. 327.
[2] À semelhança de Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 328, trataremos destas duas figuras de fora
unívoca, assim também o art. 9.º, n.º 2, do CPTA.
[3] Também a Lei 19/2014 de 14 de
Abril, que aprova as bases da política de ambiente, revogando a anterior lei de
bases de ambiente (LBA), Lei 11/87 de 7 de Abril, consagra no seu art. 5.º o
direito ao ambiente, agora numa perspectiva infra-constitucional.
[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verdes
São também os Direitos do Homem, 2000, p. 18, referindo também uma dupla noção, mas noutro
sentido, Mário Torres, A protecção do ambiente no ordenamento
jurídico português, pp. 14 e 15, aborda a delimitação negativa e positiva
do direito fundamental ambiente, que se concretiza na abstenção de acções
ambientais nocivas e no dever de protecção do ambiente, respectivamente.
[5] Defende, também, o autor que
«(...) a melhor fora defender o ambiente passa pela tomada de consciência pelas
pessoas dos direitos que possuem neste
domínio.», Verdes (...), pp. 16 e 17
[7] Cfr. Tiago Antunes, Pelos
Caminhos Jurídicos do Ambiente, AAFDL, 2014, p. 17 a 19, que refere, ainda,
que este dever deve ser entendido não de uma perspectiva de defesa contra
agressões externas mas, sim, enquanto dever (global) de respeito do ambiente
onde se incluem obrigações de defesa, protecção, entre outras. No mesmo
sentido, o art. 8.º da Lei 19/2014.
[9] «1 — A todos é reconhecido o direito à tutela plena e efectiva dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos em matéria de ambiente. 2 — Em
especial, os referidos direitos processuais incluem, nomeadamente: a) O direito de acção para defesa de
direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, assim como para o
exercício do direito de acção pública e de acção popular; b) O direito a promover a prevenção,
a cessação e a reparação de violações de bens e valores ambientais da forma
mais célere possível; c) O
direito a pedir a cessação imediata da actividade causadora de ameaça ou dano
ao ambiente, bem como a reposição da situação anterior e o pagamento da
respectiva indemnização, nos termos da lei.»
[10] Vide, a este propósito, o art. 45.º da Lei 11/87 de 7 de Agosto
que, contudo, ia mais longe do que a actua lei e consagrava a relação jurídica
como critério de atribuição de jurisdição.
[11] Cfr. , entre outros, os Acórdãos
do Tribunal Constitucional n.os
211/2007 e 302/2008 e do Supremo
Tribunal Administrativo, Proc. n.º 1329/02 e Proc 1116/03 cit. apud Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), p. 158
[12] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual
de Processo Administrativo, Almedina, 2013, p. 171.
[13] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões
(...), p. 327.
[14]
Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), pp. 172 e 173
[15] Vide, a este título, Carla
Amado Gomes, Reflexões (...),
p. 331 e ss., onde a autora apresenta, também, alguns exemplos.
[16] Pense-se, por exemplo, na
reforma da Fiscalidade Verde.
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