sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O âmbito de jurisdição da acção popular em matéria ambiental

§1. Delimitação do tema; §2. O direito fundamental ambiente; §3. A acção popular;
§4. Qual o juiz ad quem?; §5.Reflexões finais

            §1. Considerações gerais
            Não raro, somos confrontados com situações em que bens jurídicos ambientais são lesados ou se encontram em situação de iminente lesão, podendo, em termos muito latos, atribuir-se essa lesão quer a privados, independentemente da natureza da sua actuação, quer a entidades organicamente públicas. Por outro lado, esse dano pode resultar não só de acções, na acepção de condutas positivas, como também de situações em que o agente omite um comportamento que lhe era exigido. Destarte, e uma vez que «a protecção do ambiente traduz-se num interesse de preservação de um bem de fruição colectiva que se presta a ser defendido através de instrumentos de alargamento da legitimidade processual»[1], ou, se se preferir, um interesse difuso cuja defesa legitima as figuras da acção popular e da acção pública[2], coloca-se a questão de saber qual a jurisdição - cível ou administrativa - competente. É a esta pergunta que procuraremos dar resposta na nossa exposição (§4.), não olvidando, porém, as necessária menções - ainda que mais ou menos, breves - à consagração constitucional do ambiente (§2.) e à figura da acção popular (§3.).

            §2. O direito fundamental ambiente
            O (direito ao) ambiente, enquanto direito fundamental, está consagrado, expressamente, no art. 66.º da Constituição[3], que, paralelamente, define-o também como uma tarefa fundamental a prosseguir pelo Estado (alíneas d) e e) do art. 9.º). Nesse sentido, refere Vasco Pereira da Silva, o ambiente assume um dupla perspectiva à luz da Lei Fundamental, em que se conjuga um modelo de preservação predominantemente subjectivo, mas sempre acompanhado de uma tutela objectiva[4]. Todavia, tendo em conta o objecto desta exposição e a lateralidade que, por essa razão, este específico ponto assume, observe-se apenas a primeira das noções, ou seja, o ambiente enquanto direito fundamental. A esse respeito, fiquemos com algumas notas de relevo: (i) a importância da consagração do ambiente enquanto direito fundamental resulta, para Vasco Pereira da Silva, na garantia de uma adequada tutela do ambiente «contra agressões ilegais, provenientes quer de entidades públicas, quer de privadas, na esfera individual protegida pelas normas constitucionais»[5]; (ii) enquanto direito fundamental, o ambiente conhece uma dupla natureza, sendo, por um lado, um direito subjectivo e, por outro, um elemento fundamental da ordem objectiva da sociedade[6]; (iii) todavia, e como alerta Tiago Antunes, o preceito do art. 66.º da CRP consagra, não só um direito, mas, sobretudo, um dever, um dever de tutelado ambiente (art. 66.º, n.º 1, in fine)[7];(iv) por fim, este direito é, também, um interesse difuso, isto é, um valor simultaneamente de todos mas de ninguém e que, por essa razão, ninguém pode invocar como sendo só seu, mas que interessa a todos, como, aliás, resulta do art. 52.º, n.º 3, alínea a) da CRP, 1.º, do art. n.º 1 e 2, da Lei 83/95 ou Lei da Acção Popular (doravante, LAP), do art. 5.º, n.º 1 e 2 da Lei 19/2014 e do art. 9.º, n.º 2 do CPTA, matéria que analisaremos desde já.

            §3. A acção popular            
            A acção popular é definida por Paulo Otero como uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.[8] Constitucionalmente, este figura tem acolhimento no artigo 52.º,  n.º 3, da CRP, resultando daí que: (i) a acção popular tanto pode ser individual, se desencadeada por um certo sujeito, ou colectiva, quando desencadeada por associações sob o pressuposto da defesa de determinados interesses específicos - n.º 1, 1ª parte; (ii) o ambiente é um interesse juridicamente relevante para efeito de acção popular - n.º 3, alínea a), in fine; (iii) a sede principal desta figura, e consequente regulação material, é, por remissão da Constituição, a LAP - n.º 3. Olhando para esta lei, tem especial relevância o art. 12.º, n.º 1,que nos remete para a acção popular administrativa, isto é, a acção interposta na sequência de litígios resultantes de relações jurídico-administrativas, ou seja, relações que se incluem no âmbito de reserva dos tribunais administrativos, tal como refere o art.º 212, n.º 3, da CRP, ao qual iremos de seguida. Por fim, quanto à extensão da legitimidade processual em matéria de ambiente, serão especialmente relevantes os arts. 9.º, n.º 2, do CPTA e 7.º da Lei 19 de 2014, que clarifica o espectro de actuação neste campo[9] e, nessa medida, introduz uma inovação face ao que acontecia com anterior LBA[10].

            §4. Qual o juiz "ad quem"?
            Perante um litígio emergente de uma relação aparentemente regulada pelo contencioso administrativo, devemos procurar saber se, de facto, essa situação cai, ou não, no âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos. A resposta a este problema encontramo-la nos arts. 1.º e 4 do ETAF. O art. 1.º do ETAF consagra uma cláusula geral nesta matéria e, essencialmente, reproduz tanto quanto é dito no art. 212.º, n.º 3, da CRP. Já o art. 4.º, apresenta-se como o critério material concretizador do art. 1.º, sendo por isso o artigo-chave na determinação do âmbito de jurisdição. Dito assim, esta questão parece bastante confusa, mas não é. Ora vejamos: o art. 212.º, n.º 3, vem consagrar o critério da relação jurídica administrativa para atribuir competências aos tribunais administrativos e fiscais, sendo que aquela é, no fundo, a relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo: dito de outra maneira, aquelas relações onde estejam presentes figuras como prerrogativas de autoridade, interesse público, entre outras. Contudo, este critério traz consigo alguns problemas. É que, passe-se o pleonasmo, consagra demasiados critérios que remetem para a distinção entre direito público e direito privado e nem sempre oferece solução, ou a melhor solução, para o caso concreto. Para fazer face a esta situação, o legislador criou, então, o art. 4.º do ETAF, que, todavia, se afasta em alguns aspectos do art. 1.º e, consequentemente, do art. 212.º, n.º 3, da CRP, podendo suscitar-se a questão de saber se não será inconstitucional. A resposta deve ser negativa, uma vez que o art. 4.º é uma norma especial, relativamente às normas gerais do art. 1.º e do art. 212.º. Além disso, tanto o próprio Tribunal Constitucional como o Supremo Tribunal Administrativo vieram já considerar o critério do 212.º, n.º3 da CRP como tendencial, admitindo-se, assim, desvios ao mesmo.[11]
            Passando, enfim, para a matéria ambiental, podemos conhecer da jurisdição competente com base no preceito do art. 4.º, n.º 1, alínea l, que consagra o critério objectivo da natureza jurídica da entidade demandada[12]. Carla Amado Gomes, numa leitura sistemática da norma, aponta ainda um outro: o da natureza dos poderes desenvolvidos pelo sujeito[13] - mas já lá iremos. Assim, tendo em conta o que acabámos de dizer, resulta deste artigo um claro desvio ao critério da relação jurídica administrativa, admissível como vimos, e que amplia o âmbito de jurisdição dos tribunais administrativos, relativamente a uma aplicação singela do art. 1.º do ETAF. Mas, Mário Aroso de Almeida, acrescenta ainda que: «(...) do art. 4.º do ETAF, no seu conjunto - pois a alínea l) não pode ser lida isoladamente -, resulta, por isso, que as acções dirigidas à prevenção, cessão ou reparação de actividades privadas lesivas dos valores mencionados na alínea l) só estão excluídas do âmbito de jurisdição administrativa desde que não representem o exercício de funções materialmente administrativas nem sejam disciplinadas por normas de direito administrativo: o que pode suceder no caso de estarem sujeitas à necessidade de autorização ou licença (...)».[14] Ainda que esta construção não tenha sido a mais feliz, podendo gerar compreensíveis equívocos, o autor quer, tão só, afirmar que, para além do critério consagrado na alínea l), são também competentes os tribunais administrativos quando esteja em causa o exercício de funções materialmente administrativas e estas sejam disciplinadas por normas de direito administrativo. Trazendo agora à colação o segundo critério defendido por Carla Amado Gomes (supra referido), parece estar-se aqui perante a mesma realidade. Assim, e antes de finalizar, resta-nos, tão só, densificar o alcance deste critérios. Recuperando o início da nossa exposição, ainda a título de considerações gerais debruçámo-nos sobre a natureza das actuações dos agentes para efeitos da atribuição de jurisdição. Cabe agora reforçar aquilo que se disse e concluir que: desde que verificados os critérios de atribuição de jurisdição acima mencionados, tratar-se-á de igual modo tanto acções, quanto omissões, e independentemente destas serem praticadas (lato sensu) por entidades públicas ou privadas. Já não será assim quando, tratando-se apenas de entidades privadas estas não exerçam funções materialmente administrativas.

            §5. Reflexões finais
            Aqui chegados, é de questionar a adopção de tão latíssimo critério, que estende, ainda mais, o que já se consagra no art. 1.º do ETAF e no 212.º, n.º 3 da CRP. Na verdade, parece que qualquer traço de administratividade será bastante para, em última análise, e se bem fundamentado, atribuir-se competência à jurisdição administrativa[15]. Parece algo exagerado e, de facto, é. Todavia, não nos podemos esquecer qual objecto desta análise. Como já tivemos oportunidade de observar em sede própria (§3.), cuidamos aqui de uma acção popular de defesa de um interesses difuso, um interesse supra individual, o ambiente. O que é radicalmente diferente do caso de se tratar da defesa por particulares de interesses subjectivos. Ademais, e uma vez que o Direito não se pode imiscuir da realidade que pretende regular, o ambiente tem visto a sua tutela jurídica bastante reforçada na produção legislativa mais recente[16], nacional e internacional, o que parece evidenciar a preocupação que esta matéria tem suscitado na sociedade. Ora, por tudo isto, somos favoráveis à adopção de tal critério e da consequente atribuição de competência à jurisdição administrativa que nos parece melhor colocada para esse efeito.

 Tiago Guerreiro | 22227 | Subturma 6



[1] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões breves sobre a acção pública e a acção popular na defesa do ambiente, in Temas e Problemas de Processo Administrativo, 2.ª Ed., 2011  p. 327.
[2] À semelhança de Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 328, trataremos destas duas figuras de fora unívoca, assim também o art. 9.º, n.º 2, do CPTA.
[3] Também a Lei 19/2014 de 14 de Abril, que aprova as bases da política de ambiente, revogando a anterior lei de bases de ambiente (LBA), Lei 11/87 de 7 de Abril, consagra no seu art. 5.º o direito ao ambiente, agora numa perspectiva infra-constitucional.
[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verdes São também os Direitos do Homem, 2000, p. 18,  referindo também uma dupla noção, mas noutro sentido, Mário Torres, A protecção do ambiente no ordenamento jurídico português, pp. 14 e 15, aborda a delimitação negativa e positiva do direito fundamental ambiente, que se concretiza na abstenção de acções ambientais nocivas e no dever de protecção do ambiente, respectivamente.
[5] Defende, também, o autor que «(...) a melhor fora defender o ambiente passa pela tomada de consciência pelas pessoas dos direitos que possuem  neste domínio.», Verdes (...), pp. 16 e 17
[6] Hesse, cit. apud Vasco Pereira da Silva, Verdes (...), p. 19
[7] Cfr. Tiago Antunes, Pelos Caminhos Jurídicos do Ambiente, AAFDL, 2014, p. 17 a 19, que refere, ainda, que este dever deve ser entendido não de uma perspectiva de defesa contra agressões externas mas, sim, enquanto dever (global) de respeito do ambiente onde se incluem obrigações de defesa, protecção, entre outras. No mesmo sentido, o art. 8.º da Lei 19/2014.
[8] Cfr. Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no actual Direito português, p. 872.
[9] «1 — A todos é reconhecido o direito à tutela plena e efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos em matéria de ambiente. 2 — Em especial, os referidos direitos processuais incluem, nomeadamente: a) O direito de acção para defesa de direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos, assim como para o exercício do direito de acção pública e de acção popular; b) O direito a promover a prevenção, a cessação e a reparação de violações de bens e valores ambientais da forma mais célere possível; c) O direito a pedir a cessação imediata da actividade causadora de ameaça ou dano ao ambiente, bem como a reposição da situação anterior e o pagamento da respectiva indemnização, nos termos da lei.» 
[10] Vide, a este propósito, o art. 45.º da Lei 11/87 de 7 de Agosto que, contudo, ia mais longe do que a actua lei e consagrava a relação jurídica como critério de atribuição de jurisdição.
[11] Cfr. , entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os  211/2007 e  302/2008 e do Supremo Tribunal Administrativo, Proc. n.º 1329/02 e Proc 1116/03 cit. apud Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), p. 158
[12] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013,  p. 171.
[13] Cfr. Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 327.
[14] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual (...), pp. 172 e 173
[15] Vide, a este título, Carla Amado Gomes, Reflexões (...), p. 331 e ss., onde a autora apresenta, também, alguns exemplos.
[16] Pense-se, por exemplo, na reforma da Fiscalidade Verde.

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