quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO E O RECURSO À ARBITRAGEM


Contencioso administrativo e arbitragem

O texto que agora se escreve tem como objecto a arbitragem em Direito Administrativo. De facto, daquilo que já tive oportunidade de constatar no âmbito da disciplina de Direito Processual Civil, e daquilo que vou lendo nos manuais de Contencioso Administrativo, a Licenciatura em Direito, mormente nas suas cadeiras de contencioso, parece não dar a devida importância a este tema. Ao lado das matérias relacionadas com o contencioso nos tribunais de jurisdição obrigatória, judiciais ou administrativos, só é referida, marginalmente, a matéria da arbitragem, como se de um “patinho feio” se tratasse. Ainda assim, apesar de tal lacuna se sujeitar à crítica, a mesma é compreensível, dada a escassez de tempo existente. Por isso mesmo, surgem ideias como a criação deste blog, dando-se a oportunidade aos alunos para aprofundarem e debaterem temas que não podem ser objecto de tratamento mais detalhado em sede de aulas teóricas e práticas.  

Comecemos pelo princípio, isto é, por explicar no que consiste a arbitragem. De facto, como explica Fausto de Quadros[1], ao lado do exercício da função jurisdicional do Estado (artigo 202º, CRP) protagonizada pelos tribunais de jurisdição obrigatória, existe o exercício dessa mesma função assente na existência de uma jurisdição voluntária. Do que acaba de ser dito retira-se, pois, que uma mesma incumbência – exercício da função jurisdicional do Estado constitucionalmente prevista – pode ser realizada de formas diversas – ou através de uma jurisdição obrigatória ou, por seu turno, através de uma jurisdição voluntária onde assenta a arbitragem. Veja-se a importância desta matéria, tão bem plasmada numa decisão do STJ[2], onde se refere que “o árbitro não é um conciliador, a decisão arbitral não é uma transacção; o árbitro é um juíz e a sua decisão é uma sentença. Só que se a decisão arbitral tivesse efeitos meramente privados, entre as partes, a utilidade dos seus efeitos seria muito reduzida. É então que a lei, no nosso caso a Lei Fundamental, tendo em conta as reconhecidas vantagens da arbitragem, equipara essa função jurisdicional dos tribunais arbitrais à função jurisdicional dos tribunais judiciais. Desta forma, os tribunais arbitrais não deixam de ser instituições de natureza privada para se transforarem em órgãos do Estado, O Estado é que, reconhecendo a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva”.  Parece, pois, inequívoco que a arbitragem é uma forma de exercício da função jurisdicional de grande utilidade, cuja dignidade constitucional se retira do próprio artigo 209º, nº2, CRP.

De facto, como refere MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA3, não existe qualquer relação de complementaridade dos tribunais arbitrais em relação aos tribunais do Estado. O que existe, de facto, é uma relação de alternatividade entre ambos[3].

Quais são, porém, as vantagens da arbitragem que lhe conferem tamanha utilidade. Como nos refere Fausto de Quadros[4] existem duas ordens de vantagens: maior celeridade na resolução do litígio (o que, para efeitos de prova, é importantíssimo) e maior tecnicidade no processo de tomada de decisões para efeitos de sentença (as partes, no processo de nomeação dos árbitros – artigos 8º, 9º e 10º, LAV[5], podem atender às suas áreas de especialização). Por último, acrescentamos uma outra vantagem: a maior preponderância que se dá à flexibilização do processo (tão bem visível na faculdade conferida as partes naquilo que é a modelação das regras do processo, sem prejuízo de, no artigo 30º, LAV, estar sempre garantido o princípio do contraditório), isto é, o modo mais rígido como o litígio será resolvido em sede de um tribunal administrativo pode ser atenuado na convenção de arbitragem regulada nos artigos 1º e seguintes da LAV (em matéria de prova, por exemplo). Note-se, como já foi dito, que um árbitro de um tribunal arbitral, seja ele ad hoc ou permanente, tem exactamente os mesmos deveres deontológicos e de independência tal qual um juiz de um tribunal judicial. Para esse efeito, atentemos no artigo  9º, n.º3, LAV, garantido pelo regime das incompatibilidades previsto no artigo 10º do mesmo diploma.

Depois desta breve introdução, importa ver em concreto como é que a arbitragem é tratada no Direito Administrativo. Para o efeito, é importante atentar nos artigos 180º e seguintes, CPTA. Assim sendo, logo no artigo 180º, CPTA, refere-se que, sempre que esteja em causa matérias de contratos, bem como de actos administrativos tendentes à sua execução, excluindo-se, pois, os actos destacáveis pré-contratuais (alínea a), de responsabilidade civil extracontratual (alínea b) – ainda que, atento o artigo 185º, CPTA, matérias relacionadas com matéria de responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos praticados no exercício das funções política, legislativa e jurisdicional estejam vedadas à arbitragem[6] –, de actos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua invalidade, nos termos da lei substantiva (alínea c) e de matérias referentes a litígios emergentes de uma relação jurídica de emprego público, quando não estejam em questão direitos indisponíveis e que não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional (alínea d), tais questões podem ser resolvidas com recurso aos tribunais arbitrais. De facto, após atentarmos no artigo 181º, CPTA, que remete a constituição e funcionamento dos tribunais arbitrais para a LAV,  conclui-se que  o artigo 180º, CPTA é conciliável com o artigo 1º, LAV, que vem definir quais os litígios que podem ser resolvidos num tribunal judicial. Assim sendo, de acordo com este artigo, qualquer litígio respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser resolvido num tribunal arbitral, mediante decisão das partes, desde que lei especial não submeta o conhecimento de tal matéria ao conhecimento de um tribunal judicial ou a arbitragem obrigatória[7] (como é o caso de em alguns domínios no âmbito contratual. Depois de uma leitura dos números 2, 3 e 4, também definidores das matérias que podem ser objecto de conhecimento por parte de um tribunal arbitral, o artigo 1º, n.º5 vem referir que o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, desde que autorizados por lei ou se tais convenções tiverem por objecto litígios de direito privado (nunca esquecendo, pois, que a Administração, ao lado de uma actuação de Direito Público, desenvolve grande parte da sua actividade ao abrigo do Direito Privado, actuação essa objecto de reflexão na tese de doutoramento de Maria João Estorninho[8]).    

Relativamente à Reforma do Contencioso Administrativo que se avizinha e que tem vindo a ser preparada nos últimos tempos, há que referir que a redacção do artigo 180º, CPTA foi alterada. De acordo com o texto do projecto, já se admite o recurso à arbitragem quando está em causa um acto destacável do procedimento pré-contratual (alínea a) – o que não acontece com a actual redacção da alínea a), n.º1, artigo 180º, CPTA, que apenas se refere aos actos relativos à execução do contrato –, quando está em causa um acto administrativo, eliminando-se a limitação anteriormente prevista aos actos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade, nos termos da lei substantiva. Assim sendo, aumenta-se o âmbito da jurisdição arbitral no projecto do artigo 180º, CPTA.  Infelizmente, mantém-se a norma constante do artigo 185º, CPTA, tão criticada por Fausto de Quadros, entre outros, revelando ainda alguns tiques de despotismo do nosso legislador.

Desta breve exposição retiramos, pois, algumas conclusões, a saber:

         i.            Os tribunais arbitrais têm dignidade constitucional conferida pela Constituição e, entre estes e os tribunais de jurisdição obrigatória estabelece-se uma relação de alternatividade;

       ii.            O recurso aos tribunais arbitrais confere certas vantagens, como a celeridade, a maior tecnicidade na tomada de uma decisão para efeitos de sentença e uma maior flexibilização do processo;

      iii.            Algumas convenções de arbitragem vêm restringir o acesso aos tribunais administrativos ou judiciais, ainda que, por razões de celeridade e efectividade processual, o Tribunal Constitucional não as considere aniquiladoras do direito ao acesso aos tribunais;

     iv.            A Reforma do Contencioso Administrativo, no seu projecto apresentado, inclui alterações no âmbito do artigo 180º, CPTA que aumentam o âmbito de jurisdição dos tribunais arbitrais;
João Maria da Cunha Empis
Turma A
Subturma 6
Aluno n.º 21992



[1] Cfr. Fausto de Quadros, “A arbitragem em Direito Administrativo, in Mais Justiça Administrativa e Fiscal, org. Centro de Arbitragem Administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 105 e ss.  
[2] Cfr. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd2dd7246cb2af8680257825004127f7?OpenDocument que, nesta matéria, cita Francisco Cortez, A Arbitragem Voluntária em Portugal, in O Direito, ano 124, 1992, IV, pg.555
[3] Cfr. Manuel Fernando dos Santos Serra, “A Arbitragem Administrativa em Portugal: Evolução Recente e Perspectivas”, in Mais Justiça Administrativa e Fiscal, org. Centro de Arbitragem Administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 23
[4] Cfr. Fausto de Quadros, …,p. 104 e ss.
[5] Cfr. Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2012, de 14 de Dezembro)
[6] Neste sentido, veja-se a critica feita por Fausto de Quadros, no texto já citado, página 110, referindo-se ao carácter autoritário do Direito Administrativo em algumas das suas soluções.  Parece-nos, também, este ser um “trauma de infância” do Direito Administrativo, recuperando um conceito utilizado por Vasco Pereira da Silva em Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Coimbra, Almedina, 2013.
[7] Solução cuja constitucionalidade é questionada por Isabel Celestes M. Fonseca, “A arbitragem administrativa: uma realidade com futuro”, in A Arbitragem Administrativa e Tributária – Problemas e Desafios, Coimbra, Almedina, 2012, p. 63, na medida em que não está na disposição das partes a relação de alternatividade que se deve estabelecer entre os tribunais arbitrais e os tribunais de jurisdição obrigatória. Note-se, no entanto, que o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar uma limitação desta alternatividade que se estabelece entre arbitragem e tribunais de jurisdição obrigatória em nome de valores como a celeridade e efectividade processuais. 
[8] Cfr. Maria João Estorninho,  A Fuga para o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2009.

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