Consequências práticas da (in)definição do âmbito de jurisdição Administrativa
Tal
como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, o Contencioso Administrativo teve
um nascimento traumático e difícil. Os modelos administrativistas em que a
administração julgava os próprios actos (“julgar actos da administração é ainda
julgar”) partindo de uma concepção errada de separação de poderes, marcaram a
história inicial do Contencioso Administrativo. Porém, à medida que o
Contencioso administrativo foi evoluindo, o princípio da separação de poderes
foi ganhando maior importância e a ser correctamente interpretado/aplicado
(primeiro com o modelo judiciarista e finalmente com o judicialista) e foi se
dando maior importância à protecção mais adequada dos direitos dos administrados
Para
enquadramento do tema deste trabalho refira-se que o contencioso administrativo
era antes, fundamentalmente, um meio de recurso de anulação de decisões
administrativas, o que faz notar a sua natureza objectivista, uma vez que,
nesta fase, (como diz Viera de Andrade p.18) o objectivo era “a fiscalização da
legalidade do exercício autoritário dos poderes administrativos”. Sendo assim,
se os particulares quisessem fazer valer um interesse próprio, teriam de
recorrer aos tribunais comuns, já fora do âmbito do Contencioso Administrativo.
Com
o decurso do tempo, tem-se vindo a aceitar que a função central da justiça
administrativa tem de ser assegurar a protecção dos direitos dos particulares,
e assim sendo, o regime processual do Contencioso Administrativo tem caminhado
no sentido do subjectivismo. No entanto, a vertente objectivista do Contencioso
Administrativo (como faz notar Vieira de Andrade) tem uma importância crucial,
não podendo ser desprezada, uma vez que é fundamental na defesa da legalidade e
“particularmente importante quanto a interesses difusos”, pelo que se deve
procurar uma articulação das vantagens da vertente objectivista e
subjectivista.
O
contencioso administrativo em Portugal passou por vários períodos sendo que os
mais importantes foram o liberal, o autoritário-corporativo e o 3º período (ou
como alguns autores lhe chamam, o período Constitucional). É este terceiro
período que é fundamental para o resto deste trabalho.
Após
a publicação da constituição de 1976 e particularmente após a revisão
constitucional de 1982, a constituição consagrou os tribunais administrativos e
ficais como verdadeiros tribunais (art.209º/1 b CRP e 212ºCRP) para além de
consagrar no art.268º CRP os direitos e garantias dos administrados. Estas
normas são absolutamente fulcrais para se perceber a evolução no sentido do
subjectivismo que ocorreu no contencioso administrativo, bem como o dever geral
de fundamentação de actos desfavoráveis aos particulares que havia surgido
antes da revisão constitucional. Usando as palavras do prof. Vieira de Andrada
(p.32) “ O texto constitucional
resultante da lei de revisão de 1982 implicou o
alargamento do âmbito da jurisdição administrativa e ao mesmo tempo apontou
para uma subjectivização do modelo de justiça administrativa dando uma
protecção mais adequada dos direitos dos administrados” e ainda (p.39) “ as
alterações constitucionais permitem pois concluir que o sistema de justiça
administrativa evoluiu no sentido do aperfeiçoamento das garantias das posições
jurídicas substantivas dos cidadãos em que o motor desta evolução foram as
normas constitucionais”.
Creio
que a importância das normas constitucionais acima referidas é de fácil
compreensão. Como se disse o art.209/1b da CRP veio reconhecer os tribunais
administrativos e fiscais como uma categoria de tribunais e o seu regime vem
contido no ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Este
é um caso que se passou comigo e por isso será relatado na primeira pessoa e
cujo desfecho configura a meu ver uma violação das regras de jurisdição
administrativa com efeitos negativos na esfera dos cidadãos.
Passo
a relatar:
Uma
empresa concessionária da exploração de parquímetros na cidade de Ponta Delgada
intentou no Tribunal Judicial de Ponta Delgada uma acção para cumprimento de
obrigações pecuniárias emergentes de contrato pedindo a minha condenação no
pagamento de uma quantia, por ter excedido em determinados dias o tempo de
utilização ou ter utilizado os parques de estacionamento sem estar munido do
respectivo título.
Foi
deduzida oposição excepcionando a incompetência material do Tribunal Judicial
para o julgamento da causa, pois no regulamento de estacionamento e nos talões
retirados das máquinas dos parquímetros se fala em taxa. A ser essa a figura
jurídica adequada a caracterizar o valor a pagar pelo estacionamento, então o
Tribunal competente deveria ser o Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta
Delgada.
Fui
absolvido. Não por o Tribunal Judicial se ter declarado materialmente
incompetente – como se impunha -
mas porque, tal como tinha
alegado e aposto em causa, essa empresa concessionária não podia cobrar o valor
correspondente ao dia inteiro. Isso configurava uma cláusula penal abusiva. Eu
estava na disposição de pagar a quantia correspondente ao excesso do período de
estacionamento e/ou o período que não detinha título, o que não aceitava era
pagar o dia inteiro.
O
Tribunal assim entendeu, dando como não provado que tivesse dado o meu acordo
ao pagamento do sobre-valor ou cláusula penal e consequentemente, não ter a
mesma se constituído validamente, sendo por isso nula e exterior ao contrato
celebrado entre as partes.
Mas,
e para o que releva quanto ao Contencioso Administrativo, a verdade é que o
Tribunal Judicial de Ponta Delgada se considerou materialmente competente.
Analisando e aplicando ao
caso concreto algumas das disposições legais do ETAF, nomeadamente:
1)
O artigo 6º/1c do Código dos Contractos
Públicos de 2008;
2)
O artigo 209º/1 b), onde se reconhece os
tribunais administrativos e fiscais como uma categoria de tribunais;
3)
O artigo 212º, nº 3 da CRP onde se
refere: “compete aos tribunais
administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais”;
4) A
regra geral do ETAF contida no artigo 1º/1 : “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de
soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos
litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”;
5)
A regra especial constante do artigo 4º,
nº 1, que diz ser da competência dos tribunais administrativos a apreciação das
questões relativas à execução dos contractos celebrados em que uma das partes é
uma entidade pública e um concessionário e as partes tenham expressamente
submetido o contrato a regime de direito público (artigo 4º, nº 1, f);
6)
Por último a alínea f) do nº4 do ETAF e
que segundo Vieira de Andrade, tem como objectivo delimitar a jurisdição
administrativa pela natureza administrativa do contrato, em função do objecto,
do regime substantivo ou do sujeito.
Forçoso é concluir que
estávamos perante um Contrato Público, pois, perante relações jurídicas
externas (para as quais relevam três situações, as relações entre entidades administrativas
e os cidadãos, as relações entre organizações administrativas e membros
particulares destas organizações e as relações entre sujeitos privados que
actuem no exercício de poderes administrativos e particulares).
Em
jeito de conclusão, considero que aquele contrato celebrado entre a Câmara
Municipal de Ponta Delgada e a empresa concessionária é um contrato de direito
público e não de direito privado, pois a concessionária surge na relação com o
particular investida de prerrogativas próprias de um sujeito público – a Câmara
Municipal – revestida de “ius imperium” podendo cobrar taxas pelo
estacionamento, fiscalizar a respectiva regularidade e aplicar taxas
sancionatórias diárias pelo estacionamento não pago pelos particulares.
No
meu entendimento os actos praticados pela empresa concessionária não revestem a
natureza de actos privados no sentido de actos susceptíveis de serem
desenvolvidos por um qualquer particular, revestindo, ao invés, natureza
pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto
é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública.
E
assim sendo, a minha defesa por excepção – invocando a incompetência material
do Tribunal Judicial para apreciar aquela causa – deveria ter sido considerada procedente, pois
não há dúvidas que se tratava de jurisdição administrativa conforme resulta dos
artigos 212º, nº 3 da Constituição Portuguesa (CRP) e dos 1º nº 1 e 4º do
E.T.A.F.).
Hoje,
todavia, com alguns conhecimentos mais acerca dessa matéria, já tenho dúvidas
que assim seja. Ou seja se efectivamente seria o Tribunal Administrativo o materialmente
competente para julgar aquela acção.
Não
tendo dúvidas de que não seria o Tribunal Judicial pelas razões que já apresentei, pergunto-me se
seria realmente o Tribunal Administrativo ou se, ao invés, não seria o Tribunal Tributário o órgão especializado
para a apreciação dessa questão, uma vez que estamos perante uma relação
jurídica tributária (cobrança de uma taxa e não de uma coima/multa) devendo, em
consequência, serem os Tribunais Tributários os competentes em razão da
matéria.
Resolvi
fazer o meu “post” em torno deste caso em vez de optar por uma vertente mais
teórica por duas razões, a primeira foi a dimensão do trabalho em si, e a
segunda e principal, para chamar a atenção para a influência e a importância
prática que o Contencioso Administrativo pode ter na vida dos cidadãos,
nomeadamente as consequências que uma aplicação incorrecta dos artigos do ETAF
poderão desencadear na vida dos particulares ponde em causa as garantias dos
interesses dos particulares com consagração constitucional.
Depois
de um longo caminho e sobretudo de uma infância difícil impõe-se que o âmbito
da Jurisdição Administrativa esteja bem definido para que possa efectivamente
assegurar as garantias e interesses dos particulares e no fundo, “respeitar”
todo o caminho árduo que o Contencioso Administrativo teve de trilhar até
chegar ao que é hoje.
Romeu
Lopes nº22203
visto.
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