Na sociedade em que vivemos, uma pessoa
reúne em si vários "eus"
que convivem paralelamente numa teia de lógicas, regras, direitos e deveres,
por umas vezes tão diversas e por outras tão semelhantes. Cada um encontrará em
si o "eu" ser vivo, o
"eu" membro de uma família,
o "eu" cidadão. Certamente
que a maioria encontrará em si um "eu"
benfiquista, assim como de certeza que existe uma versão de nós que se apelida
de "eu" administrado. É
esta última aceção da nossa singela e particular presença neste mundo que
relevará neste post, focando-se,
todavia, um
aspeto primordial de um administrado: a tutela dos seus direitos e interesses.
No epicentro da tutela dos direitos e
interesses dos administrados encontra-se um preceito constitucional da maior importância – o Artigo
268.º, nomeadamente os seus n.os 4 e 5 – que consagra um direito à
tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos
dos administrados. Trata-se de um afloramento do direito à tutela jurisdicional
que, genericamente,
já decorria do Artigo 20.º da nossa Constituição, justificando-se esta consagração
específica por a lei reconduzir a efetivação dessa tutela dos administrados à
utilização de meios processuais próprios, cuja competência incumbe à jurisdição
administrativa, enquanto ordem jurisdicional específica que é [1].
Apertando novamente o círculo que baliza
este post, falaremos de uma vertente
garantística do Direito Administrativo português em relação aos particulares (administrados).
Escreveu Paulo Otero que existe
uma consagração legal de três tipos de garantias: as garantias materiais ou
substantivas, as garantias procedimentais stricto
sensu e as garantias impugnatórias[2]. É nestas últimas que reside o busílis da nossa questão.
Entendida a garantia impugnatória como um meio
pelo qual o particular impugna um ato administrativo junto da própria
Administração, esta reveste especial importância pelo facto desta última poder
apreciar as suas decisões não apenas perante o prisma da legalidade, que limita
os tribunais, mas também perante uma vertente de mérito (de oportunidade e conveniência)[3]. Debate-se a potencial relação de prejudicialidade das
garantias impugnatórias face ao princípio do acesso à justiça administrativa
(Artigo 12.º do Código do Procedimento Administrativo), nomeadamente em relação
à garantia impugnatória aqui focada, o recurso hierárquico, e a sua necessidade
(obrigatoriedade) prévia a uma via contenciosa.
Comece-se por definir recurso hierárquico,
instituto há muito recortado com nitidez nos quadros do direito administrativo.
Nas doutas palavras de Marcello Caetano, que
não define, mas delimita, recurso hierárquico corresponde a situações em que “a
autoridade que praticou o ato está sujeita ao poder de superintendência de uma
outra, pode interpor-se um recurso hierárquico, que consiste em solicitar do
superior hierárquico ou de autoridade que exerça o poder de superintendência
sobre o autor do ato impugnado a revogação ou substituição deste”[4]. Recurso hierárquico é o recurso administrativo mediante o
qual se impugna o ato de um órgão subalterno perante o seu superior
hierárquico, a fim de obter a respetiva revogação ou substituição[5]. Esta é uma definição que integra o recurso hierárquico
num género, o recurso administrativo, caracterizando-o pela relação hierárquica
existente entre o autor do ato impugnado e a autoridade ad quem[6].
Completando, e
vendo o recurso hierárquico de um outro prisma, diríamos, com Marcelo Rebelo de Sousa, que este é um “mecanismo através do qual o superior
hierárquico pode exercer os seus poderes de intervenção sobre o resultado do
exercício de competências do subalterno, designadamente os poderes de supervisão e de substituição,
assegurando-se assim a preferência de princípio pela sua vontade sobre a dos
escalões hierarquicamente inferiores, em coerência com as suas responsabilidade
e legitimidade democrática acrescidas”[7].
Sobre a dicotomia recurso hierárquico
necessário e facultativo, esta apareceu entre nós com Marcello Caetano em 1944, moldando a questão no facto de o
subalterno autor do ato impugnado ter competência ou não para a prática de atos
definitivos e executórios diretamente impugnáveis por via contenciosa[8]. No fundo, a distinção operava de uma forma simples,
dependendo da admissibilidade ou não de um novo ato de um superior hierárquico
que “corrigisse” o ato anterior, sem necessidade de recurso ao tribunal. Faria
sentido numa lógica em que o ato de um subalterno não seria final (ou
definitivo), portanto não valeria a pena gastar o tempo dos tribunais quando o
assunto poderia ser resolvido “em casa”. Impunha-se, portanto, a interposição
de um recurso hierárquico. Se o ato já fosse definitivo, a possibilidade de
recurso hierárquico seria facultativa, uma vez que estava já aberta a porta dos
tribunais.
Dali e daqui se inferia a defesa do
particular contra o ato ofensivo dos seus interesses. Não se tratava, portanto,
apenas daquele lugar que já vem de infância onde os nossos problemas apenas
mentalmente desaparecem, mas personalizava-se um irmão mais velho que aparece
em luta contra um bully. Isto sem, no
entanto, se recorrer à professora da primária que efetivamente resolvia a
questão.
A necessidade do recurso hierárquico em
caso de ato administrativo não definitivo e não executório era patente no
Artigo 25.º, 1 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, com cobertura
constitucional no primitivo Artigo 269.º, 2 CRP. Como já foi dito, entendia-se
que a garantia contenciosa com fundamento em ilegalidade não seria necessária
enquanto o ato não fosse definitivo. Era este o entendimento tradicional, uma
vez que o recurso ao tribunal era entendido como o meio próprio a utilizar
sempre que estivesse em causa a legalidade de atos administrativos, expressos
ou tácitos, positivos ou negativos, em ordem a obter apenas a cassação desses
atos[9].
Com a revisão constitucional de 1989,
afastou-se a noção autoritária[10] de ato
definitivo e executório para a impugnabilidade contenciosa, optando-se por uma
formulação mais abrangente: ato administrativo lesivo de direitos e interesses
dos particulares, independentemente do seu caráter definitivo e executório. Tal
mudança levou ao sério levantamento de dúvidas, na doutrina, quanto à
constitucionalidade do já referido Artigo 25.º, 1 LPTA e das regras que dele
explícita e implicitamente se inferiam. Três posições se assumiram[11]: duas a favor da inconstitucionalidade, uma a título de
inconstitucionalidade superveniente (Marcelo
Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho, Vasco Pereira da Silva, Paulo Otero) e
outra com fundamento na violação do princípio da reserva de lei, admitindo a
conformidade constitucional de recursos hierárquicos necessários especificamente
estabelecidos por lei desde que respeitados os requisitos constitucionais de
restrição do direito fundamental de impugnação dos atos administrativos lesivos
(André Salgado de Matos)[12]. Do lado da não inconstitucionalidade, pronunciaram-se Vieira de Andrade, Rogério Ehrhardt Soares,
Freitas do Amaral. Segundo Rogério
Ehrhardt Soares, o que o Artigo 268.º, 4 constante da revisão de 1989
verdadeiramente quer dizer é que “não
pode recusar-se a garantia contenciosa quando há um ato administrativo. Não nos
diz que voltas é que esse recurso contencioso pode ser obrigado a dar para
defesa de outros valores, caso não ponha em perigo a garantia de acionabilidade”[13].
No entanto, como aponta Paulo Otero[14], com esta
última posição ficam duas perguntas por responder: se o legislador constituinte
queria deixar tudo como estava anteriormente, porquê alterar a redação
subtraindo aquela importante parte? Alterado o preceito, qual a utilidade
prática desta alteração constitucional, neste entendimento?
Não se poderá dar seguimento a uma posição
que negue qualquer significado à alteração constitucional, muito embora tenha
sido esse o entendimento da jurisprudência dos tribunais administrativos e do
próprio Tribunal Constitucional, ainda alicerçados no enquadramento tradicional
e no espírito que presidiu à elaboração da LPTA em 1985. A título de exemplo, pelo
Tribunal Constitucional, cf. Acórdãos TC n.os 226/95, 435/98, 84/99
e 105/99.
É, portanto, de se lamentar que quer os
tribunais administrativos quer o Tribunal Constitucional tenham ficado aquém do
que lhes era exigível na promoção do direito à tutela jurisdicional efetiva no domínio
da totalidade dos atos administrativos[15]. Convenhamos: não é a Constituição (Artigo 268.º,4) que se
deve interpretar conforme a lei (Artigo 25.º, 1 LPTA), mas sim a lei ordinária
que se deve submeter e adaptar à Constituição, de onde resultaria uma
inconstitucionalidade superveniente do mencionado preceito legal.[16]
Lamenta-se, ainda, o vincado formalismo que
a noção de ato definitivo encerra enquanto pressuposto de uma tutela jurisdicional,
ou o mesmo entendimento mesmo quando a Constituição foi revista, quando o cerne
da questão não deveria ser o caráter definitivo ou não do ato mas sim o ato em
si enquanto lesivo de direitos e interesses dos particulares. Ressalva o
Tribunal Constitucional, no Acórdão TC nº 499/96, que a interposição de recurso
hierárquico não obsta, em caso de deferimento deste, a interposição de recurso
contencioso, apenas diferindo-se o prazo de entrada deste último, sem o
restringir nem inutilizar.
No entanto, como dispara Vasco Pereira da Silva, a latente
inconstitucionalidade de uma norma que imponha o recurso hierárquico não está
nos casos em que o particular não é prejudicado, mas sim em todos os outros em
que o administrado vê impedido o seu direito de tutela jurisdicional e de
impugnação de um ato administrativo lesivo apenas por não ter submetido
tempestivamente um recurso hierárquico[17], entendimento que parece difícil de se contestar.
Com a revogação da LPTA, em 2003, e com a
entrada do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos a questão ficou
mais definida. A opção do legislador aparece clara: o Artigo 51.º, 1 estabelece
a impugnabilidade contenciosa de todos os atos administrativos com eficácia
externa – nomeadamente os que lesem posições jurídicas subjetivas dos
particulares – incluindo os atos praticados por subalternos; o Artigo 59.º, 5
não impede a impugnação de atos administrativos na pendência dos recursos
hierárquicos que os tenham por objeto, o que revela uma escolha pela noção
facultativa do recurso hierárquico. Por outras palavras, é possível afirmar que
o critério da definitividade (vertical) foi substituído pelo critério da lesão
dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Deste modo, a divisão entre recursos
hierárquicos necessários ou facultativos remonta a querelas mais históricas que
atuais, no que se assiste ao moderno direito administrativo, que justifica um
regime comum de recursos hierárquicos, salvo a utilidade face ao nível das
competências decisórias do órgão ad quem
sobre o ato recorrido, uma vez que o tipo de ato expressa também a natureza da
competência e o maior ou menor grau de dependência decisória do seu autor [18]. No entanto, pequenos resquícios aparecem, aqui e ali, de normas
que impõem a necessidade de recurso hierárquico prévio a uma intervenção
jurisdicional.
Assiste-se a uma boa jurisprudência na
interpretação dessas normas, julgando-as inconstitucionais[19], admitindo-se de recursos contenciosos sem o requisito do
recurso hierárquico. Mas tal sem lhes vedar completamente a sobrevivência, em
situações específicas, desde que respeitados os requisitos constitucionais da
restrição de direitos, liberdades e garantias[20].
Álvaro Diogo da Silveira Marçal Barba de Meneses
n.º 20643
Subturma 6
[1] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III,
Coimbra Editora, 2007, pp. 608 e ss.
[2] Cf. Paulo Otero,
As Garantias Impugnatórias dos
Particulares no Código do Procedimento Administrativo, separata Scientia Iurídica, T. XLI (nº 235/237), 1992
[3] Cf. Paulo Otero, As Garantias …, cit.
[4] Cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2013
(reimpressão da 10ª edição), parte III, apud
Freitas do amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico,
Vol. I, Atlântida Editora, 1981, pp. 27 e ss. (p. 169).
[5] Cf. Freitas do Amaral, Conceito…, cit., 27 ss.
[6] Cf. Freitas do Amaral, Conceito …, cit.
[7] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de
Matos, Direito Administrativo
Geral, Tomo III, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 221 e ss
[8] Cf. Freitas do Amaral, Conceito …, p. 169
[9] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição …, p. 609
[10] Nas
palavras de Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Almedina, 2009, p. 208
[11] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de
Matos, Direito…, cit., p. 222
[12] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de
Matos, Direito…, cit., p. 222
[13] Cf. Rogério Ehrhardt Soares, O Acto Administrativo, in Scientia Iuridica,
tomo XXXIX, 1990, pág. 33
[14] Cf. Paulo Otero, As garantias…, cit.
[15] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição…, cit., pp. 610 e 611
[16] Cf. Paulo Otero, As garantias…, cit.
[17] Cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, p. 209
[18] Cf. Paulo Otero, As Garantias…, cit.
[19] Cf. por
todos, ver o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.12.2006 (Processo
n.º 01061/06), onde se escreve (e acompanhando Vasco
Pereira da Silva, De Necessário a
Útil…, cit., CJA n.º 47, p. 21 e ss) “a
impugnação dita necessária é hoje um condicionamento desnecessário, porque
afinal, face aos citados preceitos do CPTA [Artigos 51.º e 59.º], a
impugnação administrativa tem sempre carácter facultativo e suspende o prazo de
impugnação contenciosa do acto, sem prejuízo do administrado poder impugnar
contenciosamente o acto (…) o que significa que a impugnação necessária perdeu
qualquer utilidade, já que a sua única razão de ser era permitir o recurso
contencioso”
[20] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de
Matos, Direito…, cit.
Visto.
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