quinta-feira, 30 de outubro de 2014

(In)constitucionalidade do recurso hierárquico necessário?



Na sociedade em que vivemos, uma pessoa reúne em si vários "eus" que convivem paralelamente numa teia de lógicas, regras, direitos e deveres, por umas vezes tão diversas e por outras tão semelhantes. Cada um encontrará em si o "eu" ser vivo, o "eu" membro de uma família, o "eu" cidadão. Certamente que a maioria encontrará em si um "eu" benfiquista, assim como de certeza que existe uma versão de nós que se apelida de "eu" administrado. É esta última aceção da nossa singela e particular presença neste mundo que relevará neste post, focando-se, todavia, um aspeto primordial de um administrado: a tutela dos seus direitos e interesses. 

No epicentro da tutela dos direitos e interesses dos administrados encontra-se um preceito constitucional da maior importância – o Artigo 268.º, nomeadamente os seus n.os  4 e 5 – que consagra um direito à tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados. Trata-se de um afloramento do direito à tutela jurisdicional que, genericamente, já decorria do Artigo 20.º da nossa Constituição, justificando-se esta consagração específica por a lei reconduzir a efetivação dessa tutela dos administrados à utilização de meios processuais próprios, cuja competência incumbe à jurisdição administrativa, enquanto ordem jurisdicional específica que é [1].
Apertando novamente o círculo que baliza este post, falaremos de uma vertente garantística do Direito Administrativo português em relação aos particulares (administrados). Escreveu Paulo Otero que existe uma consagração legal de três tipos de garantias: as garantias materiais ou substantivas, as garantias procedimentais stricto sensu e as garantias impugnatórias[2]. É nestas últimas que reside o busílis da nossa questão.

 Entendida a garantia impugnatória como um meio pelo qual o particular impugna um ato administrativo junto da própria Administração, esta reveste especial importância pelo facto desta última poder apreciar as suas decisões não apenas perante o prisma da legalidade, que limita os tribunais, mas também perante uma vertente de mérito (de oportunidade e conveniência)[3]. Debate-se a potencial relação de prejudicialidade das garantias impugnatórias face ao princípio do acesso à justiça administrativa (Artigo 12.º do Código do Procedimento Administrativo), nomeadamente em relação à garantia impugnatória aqui focada, o recurso hierárquico, e a sua necessidade (obrigatoriedade) prévia a uma via contenciosa.

Comece-se por definir recurso hierárquico, instituto há muito recortado com nitidez nos quadros do direito administrativo. Nas doutas palavras de Marcello Caetano, que não define, mas delimita, recurso hierárquico corresponde a situações em que a autoridade que praticou o ato está sujeita ao poder de superintendência de uma outra, pode interpor-se um recurso hierárquico, que consiste em solicitar do superior hierárquico ou de autoridade que exerça o poder de superintendência sobre o autor do ato impugnado a revogação ou substituição deste”[4]. Recurso hierárquico é o recurso administrativo mediante o qual se impugna o ato de um órgão subalterno perante o seu superior hierárquico, a fim de obter a respetiva revogação ou substituição[5]. Esta é uma definição que integra o recurso hierárquico num género, o recurso administrativo, caracterizando-o pela relação hierárquica existente entre o autor do ato impugnado e a autoridade ad quem[6].  
Completando, e vendo o recurso hierárquico de um outro prisma, diríamos, com Marcelo Rebelo de Sousa, que este é um “mecanismo através do qual o superior hierárquico pode exercer os seus poderes de intervenção sobre o resultado do exercício de competências do subalterno, designadamente os poderes de supervisão e de substituição, assegurando-se assim a preferência de princípio pela sua vontade sobre a dos escalões hierarquicamente inferiores, em coerência com as suas responsabilidade e legitimidade democrática acrescidas”[7].

 Sobre a dicotomia recurso hierárquico necessário e facultativo, esta apareceu entre nós com Marcello Caetano em 1944, moldando a questão no facto de o subalterno autor do ato impugnado ter competência ou não para a prática de atos definitivos e executórios diretamente impugnáveis por via contenciosa[8]. No fundo, a distinção operava de uma forma simples, dependendo da admissibilidade ou não de um novo ato de um superior hierárquico que “corrigisse” o ato anterior, sem necessidade de recurso ao tribunal. Faria sentido numa lógica em que o ato de um subalterno não seria final (ou definitivo), portanto não valeria a pena gastar o tempo dos tribunais quando o assunto poderia ser resolvido “em casa”. Impunha-se, portanto, a interposição de um recurso hierárquico. Se o ato já fosse definitivo, a possibilidade de recurso hierárquico seria facultativa, uma vez que estava já aberta a porta dos tribunais.

Dali e daqui se inferia a defesa do particular contra o ato ofensivo dos seus interesses. Não se tratava, portanto, apenas daquele lugar que já vem de infância onde os nossos problemas apenas mentalmente desaparecem, mas personalizava-se um irmão mais velho que aparece em luta contra um bully. Isto sem, no entanto, se recorrer à professora da primária que efetivamente resolvia a questão. 

A necessidade do recurso hierárquico em caso de ato administrativo não definitivo e não executório era patente no Artigo 25.º, 1 da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, com cobertura constitucional no primitivo Artigo 269.º, 2 CRP. Como já foi dito, entendia-se que a garantia contenciosa com fundamento em ilegalidade não seria necessária enquanto o ato não fosse definitivo. Era este o entendimento tradicional, uma vez que o recurso ao tribunal era entendido como o meio próprio a utilizar sempre que estivesse em causa a legalidade de atos administrativos, expressos ou tácitos, positivos ou negativos, em ordem a obter apenas a cassação desses atos[9]

Com a revisão constitucional de 1989, afastou-se a noção autoritária[10] de ato definitivo e executório para a impugnabilidade contenciosa, optando-se por uma formulação mais abrangente: ato administrativo lesivo de direitos e interesses dos particulares, independentemente do seu caráter definitivo e executório. Tal mudança levou ao sério levantamento de dúvidas, na doutrina, quanto à constitucionalidade do já referido Artigo 25.º, 1 LPTA e das regras que dele explícita e implicitamente se inferiam. Três posições se assumiram[11]: duas a favor da inconstitucionalidade, uma a título de inconstitucionalidade superveniente (Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho, Vasco Pereira da Silva, Paulo Otero) e outra com fundamento na violação do princípio da reserva de lei, admitindo a conformidade constitucional de recursos hierárquicos necessários especificamente estabelecidos por lei desde que respeitados os requisitos constitucionais de restrição do direito fundamental de impugnação dos atos administrativos lesivos (André Salgado de Matos)[12]. Do lado da não inconstitucionalidade, pronunciaram-se Vieira de Andrade, Rogério Ehrhardt Soares, Freitas do Amaral. Segundo Rogério Ehrhardt Soares, o que o Artigo 268.º, 4 constante da revisão de 1989 verdadeiramente quer dizer é que “não pode recusar-se a garantia contenciosa quando há um ato administrativo. Não nos diz que voltas é que esse recurso contencioso pode ser obrigado a dar para defesa de outros valores, caso não ponha em perigo a garantia de acionabilidade”[13].

No entanto, como aponta Paulo Otero[14], com esta última posição ficam duas perguntas por responder: se o legislador constituinte queria deixar tudo como estava anteriormente, porquê alterar a redação subtraindo aquela importante parte? Alterado o preceito, qual a utilidade prática desta alteração constitucional, neste entendimento? 

Não se poderá dar seguimento a uma posição que negue qualquer significado à alteração constitucional, muito embora tenha sido esse o entendimento da jurisprudência dos tribunais administrativos e do próprio Tribunal Constitucional, ainda alicerçados no enquadramento tradicional e no espírito que presidiu à elaboração da LPTA em 1985. A título de exemplo, pelo Tribunal Constitucional, cf. Acórdãos TC n.os 226/95, 435/98, 84/99 e 105/99. 

É, portanto, de se lamentar que quer os tribunais administrativos quer o Tribunal Constitucional tenham ficado aquém do que lhes era exigível na promoção do direito à tutela jurisdicional efetiva no domínio da totalidade dos atos administrativos[15]. Convenhamos: não é a Constituição (Artigo 268.º,4) que se deve interpretar conforme a lei (Artigo 25.º, 1 LPTA), mas sim a lei ordinária que se deve submeter e adaptar à Constituição, de onde resultaria uma inconstitucionalidade superveniente do mencionado preceito legal.[16]

Lamenta-se, ainda, o vincado formalismo que a noção de ato definitivo encerra enquanto pressuposto de uma tutela jurisdicional, ou o mesmo entendimento mesmo quando a Constituição foi revista, quando o cerne da questão não deveria ser o caráter definitivo ou não do ato mas sim o ato em si enquanto lesivo de direitos e interesses dos particulares. Ressalva o Tribunal Constitucional, no Acórdão TC nº 499/96, que a interposição de recurso hierárquico não obsta, em caso de deferimento deste, a interposição de recurso contencioso, apenas diferindo-se o prazo de entrada deste último, sem o restringir nem inutilizar.

No entanto, como dispara Vasco Pereira da Silva, a latente inconstitucionalidade de uma norma que imponha o recurso hierárquico não está nos casos em que o particular não é prejudicado, mas sim em todos os outros em que o administrado vê impedido o seu direito de tutela jurisdicional e de impugnação de um ato administrativo lesivo apenas por não ter submetido tempestivamente um recurso hierárquico[17], entendimento que parece difícil de se contestar.

Com a revogação da LPTA, em 2003, e com a entrada do Código do Procedimento dos Tribunais Administrativos a questão ficou mais definida. A opção do legislador aparece clara: o Artigo 51.º, 1 estabelece a impugnabilidade contenciosa de todos os atos administrativos com eficácia externa – nomeadamente os que lesem posições jurídicas subjetivas dos particulares – incluindo os atos praticados por subalternos; o Artigo 59.º, 5 não impede a impugnação de atos administrativos na pendência dos recursos hierárquicos que os tenham por objeto, o que revela uma escolha pela noção facultativa do recurso hierárquico. Por outras palavras, é possível afirmar que o critério da definitividade (vertical) foi substituído pelo critério da lesão dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Deste modo, a divisão entre recursos hierárquicos necessários ou facultativos remonta a querelas mais históricas que atuais, no que se assiste ao moderno direito administrativo, que justifica um regime comum de recursos hierárquicos, salvo a utilidade face ao nível das competências decisórias do órgão ad quem sobre o ato recorrido, uma vez que o tipo de ato expressa também a natureza da competência e o maior ou menor grau de dependência decisória do seu autor [18]. No entanto, pequenos resquícios aparecem, aqui e ali, de normas que impõem a necessidade de recurso hierárquico prévio a uma intervenção jurisdicional. 

Assiste-se a uma boa jurisprudência na interpretação dessas normas, julgando-as inconstitucionais[19], admitindo-se de recursos contenciosos sem o requisito do recurso hierárquico. Mas tal sem lhes vedar completamente a sobrevivência, em situações específicas, desde que respeitados os requisitos constitucionais da restrição de direitos, liberdades e garantias[20].

Álvaro Diogo da Silveira Marçal Barba de Meneses
n.º 20643
Subturma 6


[1] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pp. 608 e ss.
[2] Cf. Paulo Otero, As Garantias Impugnatórias dos Particulares no Código do Procedimento Administrativo, separata Scientia Iurídica, T. XLI (nº 235/237), 1992
[3] Cf. Paulo Otero, As Garantias …, cit.
[4] Cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2013 (reimpressão da 10ª edição), parte III, apud Freitas do amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Vol. I, Atlântida Editora, 1981, pp. 27 e ss. (p. 169).
[5] Cf. Freitas do Amaral, Conceito…, cit., 27 ss.
[6] Cf. Freitas do Amaral, Conceito …, cit.
[7] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Publicações Dom Quixote, 2010, pp. 221 e ss
[8] Cf. Freitas do Amaral, Conceito …, p. 169
[9] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição …, p. 609
[10] Nas palavras de Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, p. 208
[11] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Direito…, cit., p. 222
[12] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Direito…, cit., p. 222
[13] Cf. Rogério Ehrhardt Soares, O Acto Administrativo, in Scientia Iuridica, tomo XXXIX, 1990, pág. 33
[14] Cf. Paulo Otero, As garantias…, cit.
[15] Cf. Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição…, cit., pp. 610 e 611
[16] Cf. Paulo Otero, As garantias…, cit.
[17] Cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, p. 209
[18] Cf. Paulo Otero, As Garantias…, cit.
[19] Cf. por todos, ver o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28.12.2006 (Processo n.º 01061/06), onde se escreve (e acompanhando Vasco Pereira da Silva, De Necessário a Útil…, cit., CJA n.º 47, p. 21 e ss) “a impugnação dita necessária é hoje um condicionamento desnecessário, porque afinal, face aos citados preceitos do CPTA [Artigos 51.º e 59.º], a impugnação administrativa tem sempre carácter facultativo e suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto, sem prejuízo do administrado poder impugnar contenciosamente o acto (…) o que significa que a impugnação necessária perdeu qualquer utilidade, já que a sua única razão de ser era permitir o recurso contencioso”
[20] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado de Matos, Direito…, cit.

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