Alea iacta
est [1]: o fim da bipolaridade e a
nova “acção administrativa”
Em
primeiro lugar, cumpre clarificar que esta publicação debruça-se sobre o estudo das
formas de processo no âmbito do contencioso administrativo, designadamente,
sobre as formas de processo não-urgente e o fim da sua dualidade assinalada pelo
Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [2] (doravante
designado por ARCPTA).
Sem
negligenciar conceitos-chave, pergunta-se, o se entende por “forma de
processo”? Processo é um termo que tem origem no latim “processu” e que
significa método, sistema, modo de fazer uma coisa ou acção judicial [3].
Assim, facilmente se compreende que “forma de processo” corporize o modelo de tramitação
que cada acção deve observar desde a sua propositura até ao momento em que o
tribunal irá pronunciar a sentença.
Foi
com a reforma do contencioso administrativo português de 2002-2004 que se
consagrou o modelo bipolar a que o nosso título alude, sendo que recebe esta
designação pelo facto de abraçar duas formas processuais contrastantes – a
acção administrativa comum (adiante AAC) e a acção administrativa especial
(adiante AAE). Neste contexto, não se deve descurar a importância que consubstanciou
esta reforma, tendo sido uma grande refêrencia, senão mesmo “a” referência, na
medida em que reiterou a substância do Estado enquanto Estado de Direito, isto
é, reafirmando a sua limitação perante a lei e pela observação e respeito dos
direitos fundamentais dos cidadãos. Com efeito, este foi o marco que ratificou
o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no
artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2º do
CPTA [4] que é reputado pelo Professor Vasco
Pereira da Silva como a “pedra angular do processo administrativo”. A par com
os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, verificamos que foi
neste âmbito que foram lançados os alicerces para um modelo conexo à protecção
plena e efectiva dos cidadãos, por meio de sentenças que passaram a cumprir um
amplo leque de efeitos, desde o reconhecimento de direitos à impugnação de
actos administrativos. Assim, os tribunais administrativos assumiram o papel
principal na sua essência, sem limitações “traumáticas”. Querendo isto
significar que deixou de existir a clássica circunscrição dos poderes de pronúncia
do juiz diante dos actos administrativos. Como é que isto foi superado? Precisamente
com a edificação da acção administrativa especial que passou a prever a expressa
condenação da Administração.
Cabe
então desenredar de forma sumária o que separa a acção administrativa comum da
acção administrativa especial: a acção administrativa comum, estatuída nos
artigos 37º a 45º do CPTA, engloba os pedidos em que não esteja em causa a
avaliação ou emissão de um acto administrativo ou de uma norma, – concretizando
- diz essencialmente respeito ao antigo contencioso de acções, ou seja, ao
âmbito da responsabilidade civil e dos contratos administrativos. A AAC tem um
campo de aplicação definido negativamente. A explicação para esta afirmação
reside na análise do artigo 37º/1 que nos diz que a acção seguirá esta forma de
processo sempre que não seja de empregar nenhuma norma especial declaradamente
prevista no código ou em legislação avulsa. Ou seja, isto exprime que concernem
no âmbito da AAC os litígios jurídico-administrativos que não se envolvam na
incidência característica dos restantes meios processuais. A AAC tem a sua
tramitação estatuída nos termos do Código do Processo Civil, por via da
remissão do artigo 35º/1 do CPTA.
Por
sua vez, no que diz respeito à acção administrativa especial, a sua consagração
consta nos artigos 46º a 96º do CPTA e tem como âmbito as pretensões
resultantes da prática ou omissão de actos administrativos e/ou de normas.
Substantificando o preceito, inserem-se na acção administrativa especial os litígios
que originem a impugnação de actos administrativos, a condenação à prática dos
actos administrativos legalmente devidos e a declaração de ilegalidade de uma
norma ou da escassez da mesma. Por conseguinte, a AAE constitui o agir
específico da Administração, ou seja, o seu cerne.
- Contexto pré e pós-reforma 2002-2004
Na
salvaguarda do modelo dualista temos, desde logo, a voz do Professor Sérvulo
Correia que o lucubra como a senda mais lógica, de tal forma que deveria ser
perpetuada a designação de “recurso de anulação” para o meio impugnatório, na
medida em que seria uma forma de “respeito pelo nosso património
jurídico-cultural”[5].
Efectivamente, na sua óptica a tramitação da AAE tratar-se-ia de um sucedâneo
directo do predecessor recurso contencioso. Para abduzir a outra face da moeda,
isto é, a opção pelo modelo unitário, o Professor Sérvulo Correia aponta o
facto de o processo civil - visto como a base a seguir - não ser idóneo para
regular os litígios em causa, posto que por dizerem respeito a relações
jurídico-administrativas, revestem uma singularidade própria que,
consequentemente, reivindica uma forma processual própria.
Do
outro lado da bancada, o Professor Mário Aroso de Almeida expôs a sua
discordância face à argumentação do Professor Sérvulo Correia. Para o Autor a
tramitação da AAE não é similar ao predecessor recurso contencioso. Por seu
lado, sustenta que a tramitação em apreço conforma a adequação do modelo do
processo declarativo comum do Código de Processo Civil às particularidades que
configuram o processo administrativo. Para ilustrar esta ideia, é assinalado o
exemplo da cumulação de pedidos consagrada nos artigos 4º e 5º do CPTA em que
se estipula que quando estejam a par uma AAC e uma AAE, a primeira seja
absorvida pela segunda – aqui manifesta-se uma aproximação ao processo civil.
Por
conseguinte, olhando de forma crítica a escolha do modelo bipolar, o Professor
Mário Aroso de Almeida examinava a incorporação das duas formas de processo
numa única que seguisse a tramitação da AAE, tendo em linha de conta que esta
foi orquestrada para se harmonizar com a AAC. Desde logo, esta via iria
solucionar o problema do delineamento do âmbito de cada acção, evitando o apoio
em critérios algo fortuitos.
Nesta
conjuntura, o Professor Vasco Pereira da Silva também se afasta da linha de
ideias do Professor Sérvulo Correia e dirige uma prepotente argumentação em
defesa do modelo unitário. Desde logo, ao rebater os “traumas” que estão na
base da bipolaridade das formas de processo em análise. Que “traumas” são
esses? De forma simplificada cumpre ilustrar que são duas concepções que
marcaram o Direito Administrativo na fase da sua “infância” e são, em primeiro
lugar, a continuidade da lógica da excepcionalidade do Direito Administrativo
face ao Direito Civil e, em segundo lugar, a ideia de poder administrativo como
forma de habilitar fórmulas processuais excepcionais para actos e regulamentos
administrativos, o que conduz a um balizamento cada vez mais restrito do
contencioso administrativo. Note-se que estes “traumas” já estão ultrapassados,
tendo em consideração que traduzem o arquétipo de uma Administração autoritária
e agressiva. Como o Professor afirma, a manutenção deste modelo dual
apresenta-se arcaica para o actual quadro do Direito Administrativo, visto que
estamos no contexto de uma Administração prestadora, típica do Estado social.
Por
outro lado, o Professor também critica a nomenclatura da acção administrativa
especial. Repare-se novamente no caso da cumulação de pedidos em que se determina
que quando estejam a par uma AAC e uma AAE, a primeira seja absorvida pela
segunda: na prática, o que se passa é que este regime vai fazer com que a acção
administrativa especial se torne comum e, por sua vez, a acção administrativa
comum se torne especial, defendendo o Professor que houve uma troca de nomes.
Sem mais delongas, no âmago desta análise, conclui-se que o caminho mais harmonizado a percorrer é o do modelo unitário.
Sem mais delongas, no âmago desta análise, conclui-se que o caminho mais harmonizado a percorrer é o do modelo unitário.
No
entanto, não pode deixar de ser feita uma nota para espelhar as qualidades que
o modelo bipolar trouxe – como já foi mencionado, foi graças à edificação da
acção administrativa especial que se auferiram possibilidades antes omissas,
como a condenação à prática de actos devidos e a impugnação de normas. Por
outro lado, como analisa o Professor Vasco Pereira da Silva, a acção
administrativa comum integra uma acção “multipedidos”[6], pela qual se pode deduzir pretensões de
simples reconhecimento, constitutivas, inibitórias e ressarcitórias, além de revestir
um potencial de meio residual para todos os pedidos que não se enquadrem na
acção especial, em deferência ao princípio da tutela plena e efectiva, plasmado
no artigo 2º do CPTA.
- Actualidade
Actualmente,
e com um atraso notável face ao estipulado na Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro,
está em curso a revisão do CPTA – sendo caso para dizer: mais vale tarde do que
nunca.
Como se pode extrair do preâmbulo do ARCPTA, uma das questões mais expressivas da revisão em curso trata-se do esqueleto das formas de processo e do consequente regime. O que vai mudar? O título do presente estudo já acarreta o destapar do véu e indicia-nos que a era da bipolaridade entre acção administrativa comum e acção administrativa especial está a chegar ao fim. A fórmula prevista diz respeito à consagração de uma única acção administrativa que vai passar a abarcar todos os pedidos que outrora eram repartidos entre a AAC e a AAE, – artigo 37º ARCPTA[7] – não obstante sejam ressalvadas algumas especialidades – veja-se, por exemplo, nas acções de condenação à prática de acto devido os artigos 66º a 71º ARCPTA.
Como será a tramitação da nova acção administrativa? Esta nova forma de processo será submetida ao regime que, até aqui, correspondia à acção administrativa especial, mas com alterações que decorrem da sua harmonização com o novo regime do Código do Processo Civil, embora “procurando dar resposta a problemas que não se colocam em processo civil e, nos restantes domínios, consagrando, quando tal se justifica, soluções diferenciadas”[8] . Significa isto que será feita a adesão ao modelo de acção única, também intitulado como “modelo latino”, perfilhado nas reformas processuais francesa, italiana e espanhola.
Como se pode extrair do preâmbulo do ARCPTA, uma das questões mais expressivas da revisão em curso trata-se do esqueleto das formas de processo e do consequente regime. O que vai mudar? O título do presente estudo já acarreta o destapar do véu e indicia-nos que a era da bipolaridade entre acção administrativa comum e acção administrativa especial está a chegar ao fim. A fórmula prevista diz respeito à consagração de uma única acção administrativa que vai passar a abarcar todos os pedidos que outrora eram repartidos entre a AAC e a AAE, – artigo 37º ARCPTA[7] – não obstante sejam ressalvadas algumas especialidades – veja-se, por exemplo, nas acções de condenação à prática de acto devido os artigos 66º a 71º ARCPTA.
Como será a tramitação da nova acção administrativa? Esta nova forma de processo será submetida ao regime que, até aqui, correspondia à acção administrativa especial, mas com alterações que decorrem da sua harmonização com o novo regime do Código do Processo Civil, embora “procurando dar resposta a problemas que não se colocam em processo civil e, nos restantes domínios, consagrando, quando tal se justifica, soluções diferenciadas”[8] . Significa isto que será feita a adesão ao modelo de acção única, também intitulado como “modelo latino”, perfilhado nas reformas processuais francesa, italiana e espanhola.
Será
curioso notar que, com o decorrer do tempo, a experiência com a dualidade de
acções foi fazendo com que todas as vozes se unissem para o mesmo lado da
balança e o próprio Professor Sérvulo Correia salientou que após dez anos de
aplicação do CPTA, “ganhou-se a experiência e a profundidade de visão
suficientes para o estabelecimento de uma única ação principal não urgente”[9] .
A
escolha pelo modelo bipolar, embora tenha sido um bom passo dentro
da rota entre o contencioso da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e
Fiscais (LPTA) e o CPTA, a verdade é que no contexto actual já não é plausível.
Como já vimos, é um modelo cujas premissas apresentam-se obsoletas e que
suscita problemas formais, conduzindo a algum arbítrio no delineamento do
âmbito de cada acção, isto tendo em linha de conta que é propício a induzir em
dúvida quanto ao tipo de acção a deduzir. De facto, o percurso a prosseguir - e
a consequente tramitação - deve ser claro, simples e pautado por uma regulação
exaustiva, mas que permita uma adaptação ao caso concreto. Assim, parece ser
possível afirmar que a constituição de uma única acção administrativa impõe-se
como um factor de segurança e clareza para a comunidade jurídica.
A
partir do estudo do ARCPTA, é interessante constatar que a estrutura da acção
administrativa especial de impugnação de actos administrativos conserva-se
quase na íntegra. Neste ponto, como o Professor Vasco Pereira da Silva explanou
em sede de aula teórica, o que sucedeu foi que o legislador preocupou-se em
regular mais o velho do que o novo, isto é, quis transformar as coisas velhas
em novas ao dar-lhes um novo conteúdo. Como se observa, o legislador tratou com
bastante detalhe esta matéria, nomeadamente, aspectos que já existiam antes - basta contemplar a correspondência entre os números dos artigos do CPTA e do
ARCPTA. A explicação mais imediata para a exaustividade é o facto de o
legislador ter sentido a necessidade de demarcar esta AAE do recurso directo de
anulação para uma melhor adaptação ao actual contencioso administrativo.
Cumulativamente,
da análise do ARCPTA deve ser feita referência ao regime do novo artigo 78º-A, que
procura fortalecer a tutela da posição do autor perante o encargo que lhe é
imposto de mencionar os contra-interessados na petição inicial. Ao mesmo tempo,
devem ser referidos os regimes dos artigos 87º-A a 87º-C, que abarcam adaptações
pontuais ao regime da audiência prévia e do saneador – sendo o artigo 87º-A/2
de relevar, na medida em que consagra o princípio da adequação processual
(cabendo perguntar o porquê de uma localização tão encapuzada). No entanto, a
formulação do artigo 87º-A/2 - “Para efeitos do disposto na alínea e) do número
anterior, o juiz pode determinar a adoção da tramitação processual adequada às
especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais
ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”[10] – em conjunto com o artigo 87º-B/2 que prevê a
dispensa de debate prévio (não obstante o direito a reclamação) deixa algumas
reservas, uma vez que transfere tamanha maleabilidade para o juiz. Isto é, uma
vez que se passa do 8 para o 80 a cautela espreita - resta esperar para ver como
irá funcionar. Outro aspecto a salientar prende-se com a nova norma do artigo
5º/1 do ARCPTA que manda adoptar o processo urgente sempre que haja cumulação
de pedidos urgente e não urgente, em homenagem ao princípio da celeridade e da
economia processual.
No
entanto, e porque há sempre o reverso da moeda, que empecilhos poderão advir? Reflectindo
que as normas do ARCPTA equivalem, em grande parte, à reprodução dos preceitos
que regulam actualmente a acção administrativa especial, será que se irão adequar
aos litígios que agora se submetem à acção administrativa comum? A meu ver,
creio que os primeiros tempos após a mudança sejam susceptíveis de acarretar
alguma confusão neste aspecto, sendo a solução delegada para a jurisprudência e
doutrina. Não obstante, estamos diante de um bom passo para amodernar o
processo administrativo.
Embora
H. G. Wells diga que "o caminho com menos obstáculos é o caminho do
perdedor"[11] e tendo em conta que cada
processo é um caminho, no caso do processo administrativo será antes de almejar
o caminho mais simples possível, de preferência sem obstáculos.
Ana Vicente - nº 20919
- Bibliografia:
ALMEIDA,
Mário Aroso de - O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. Almedina,
2004 (3ª ed.).
ALMEIDA,
Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. Almedina, 2013.
AMARAL,
Diogo Freitas do; ALMEIDA, Mário Aroso de - Grandes Linhas da Reforma do
Contencioso Administrativo. Almedina, 2007 (3ª ed.).
SILVA,
Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise.
Almedina, 2009 (2ª ed.).
SILVA,
Vasco Pereira da, “Todo o Contencioso Administrativo se tornou de plena
jurisdição”. Cadernos de Justiça
Administrativa. nº 34 (2002)
Visto.
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