quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O fim da bipolaridade e a nova “acção administrativa”

Alea iacta est [1]: o fim da bipolaridade e a nova “acção administrativa”


Em primeiro lugar, cumpre clarificar que esta publicação debruça-se sobre o estudo das formas de processo no âmbito do contencioso administrativo, designadamente, sobre as formas de processo não-urgente e o fim da sua dualidade assinalada pelo Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [2] (doravante designado por ARCPTA).

Sem negligenciar conceitos-chave, pergunta-se, o se entende por “forma de processo”? Processo é um termo que tem origem no latim “processu” e que significa método, sistema, modo de fazer uma coisa ou acção judicial [3]. Assim, facilmente se compreende que “forma de processo” corporize o modelo de tramitação que cada acção deve observar desde a sua propositura até ao momento em que o tribunal irá pronunciar a sentença.

Foi com a reforma do contencioso administrativo português de 2002-2004 que se consagrou o modelo bipolar a que o nosso título alude, sendo que recebe esta designação pelo facto de abraçar duas formas processuais contrastantes – a acção administrativa comum (adiante AAC) e a acção administrativa especial (adiante AAE). Neste contexto, não se deve descurar a importância que consubstanciou esta reforma, tendo sido uma grande refêrencia, senão mesmo “a” referência, na medida em que reiterou a substância do Estado enquanto Estado de Direito, isto é, reafirmando a sua limitação perante a lei e pela observação e respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos. Com efeito, este foi o marco que ratificou o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 2º do CPTA [4] que é reputado pelo Professor Vasco Pereira da Silva como a “pedra angular do processo administrativo”. A par com os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, verificamos que foi neste âmbito que foram lançados os alicerces para um modelo conexo à protecção plena e efectiva dos cidadãos, por meio de sentenças que passaram a cumprir um amplo leque de efeitos, desde o reconhecimento de direitos à impugnação de actos administrativos. Assim, os tribunais administrativos assumiram o papel principal na sua essência, sem limitações “traumáticas”. Querendo isto significar que deixou de existir a clássica circunscrição dos poderes de pronúncia do juiz diante dos actos administrativos. Como é que isto foi superado? Precisamente com a edificação da acção administrativa especial que passou a prever a expressa condenação da Administração.

Cabe então desenredar de forma sumária o que separa a acção administrativa comum da acção administrativa especial: a acção administrativa comum, estatuída nos artigos 37º a 45º do CPTA, engloba os pedidos em que não esteja em causa a avaliação ou emissão de um acto administrativo ou de uma norma, – concretizando - diz essencialmente respeito ao antigo contencioso de acções, ou seja, ao âmbito da responsabilidade civil e dos contratos administrativos. A AAC tem um campo de aplicação definido negativamente. A explicação para esta afirmação reside na análise do artigo 37º/1 que nos diz que a acção seguirá esta forma de processo sempre que não seja de empregar nenhuma norma especial declaradamente prevista no código ou em legislação avulsa. Ou seja, isto exprime que concernem no âmbito da AAC os litígios jurídico-administrativos que não se envolvam na incidência característica dos restantes meios processuais. A AAC tem a sua tramitação estatuída nos termos do Código do Processo Civil, por via da remissão do artigo 35º/1 do CPTA.
Por sua vez, no que diz respeito à acção administrativa especial, a sua consagração consta nos artigos 46º a 96º do CPTA e tem como âmbito as pretensões resultantes da prática ou omissão de actos administrativos e/ou de normas. Substantificando o preceito, inserem-se na acção administrativa especial os litígios que originem a impugnação de actos administrativos, a condenação à prática dos actos administrativos legalmente devidos e a declaração de ilegalidade de uma norma ou da escassez da mesma. Por conseguinte, a AAE constitui o agir específico da Administração, ou seja, o seu cerne.

  • Contexto pré e pós-reforma 2002-2004

Na salvaguarda do modelo dualista temos, desde logo, a voz do Professor Sérvulo Correia que o lucubra como a senda mais lógica, de tal forma que deveria ser perpetuada a designação de “recurso de anulação” para o meio impugnatório, na medida em que seria uma forma de “respeito pelo nosso património jurídico-cultural”[5]. Efectivamente, na sua óptica a tramitação da AAE tratar-se-ia de um sucedâneo directo do predecessor recurso contencioso. Para abduzir a outra face da moeda, isto é, a opção pelo modelo unitário, o Professor Sérvulo Correia aponta o facto de o processo civil - visto como a base a seguir - não ser idóneo para regular os litígios em causa, posto que por dizerem respeito a relações jurídico-administrativas, revestem uma singularidade própria que, consequentemente, reivindica uma forma processual própria.

Do outro lado da bancada, o Professor Mário Aroso de Almeida expôs a sua discordância face à argumentação do Professor Sérvulo Correia. Para o Autor a tramitação da AAE não é similar ao predecessor recurso contencioso. Por seu lado, sustenta que a tramitação em apreço conforma a adequação do modelo do processo declarativo comum do Código de Processo Civil às particularidades que configuram o processo administrativo. Para ilustrar esta ideia, é assinalado o exemplo da cumulação de pedidos consagrada nos artigos 4º e 5º do CPTA em que se estipula que quando estejam a par uma AAC e uma AAE, a primeira seja absorvida pela segunda – aqui manifesta-se uma aproximação ao processo civil.
Por conseguinte, olhando de forma crítica a escolha do modelo bipolar, o Professor Mário Aroso de Almeida examinava a incorporação das duas formas de processo numa única que seguisse a tramitação da AAE, tendo em linha de conta que esta foi orquestrada para se harmonizar com a AAC. Desde logo, esta via iria solucionar o problema do delineamento do âmbito de cada acção, evitando o apoio em critérios algo fortuitos.

Nesta conjuntura, o Professor Vasco Pereira da Silva também se afasta da linha de ideias do Professor Sérvulo Correia e dirige uma prepotente argumentação em defesa do modelo unitário. Desde logo, ao rebater os “traumas” que estão na base da bipolaridade das formas de processo em análise. Que “traumas” são esses? De forma simplificada cumpre ilustrar que são duas concepções que marcaram o Direito Administrativo na fase da sua “infância” e são, em primeiro lugar, a continuidade da lógica da excepcionalidade do Direito Administrativo face ao Direito Civil e, em segundo lugar, a ideia de poder administrativo como forma de habilitar fórmulas processuais excepcionais para actos e regulamentos administrativos, o que conduz a um balizamento cada vez mais restrito do contencioso administrativo. Note-se que estes “traumas” já estão ultrapassados, tendo em consideração que traduzem o arquétipo de uma Administração autoritária e agressiva. Como o Professor afirma, a manutenção deste modelo dual apresenta-se arcaica para o actual quadro do Direito Administrativo, visto que estamos no contexto de uma Administração prestadora, típica do Estado social.
Por outro lado, o Professor também critica a nomenclatura da acção administrativa especial. Repare-se novamente no caso da cumulação de pedidos em que se determina que quando estejam a par uma AAC e uma AAE, a primeira seja absorvida pela segunda: na prática, o que se passa é que este regime vai fazer com que a acção administrativa especial se torne comum e, por sua vez, a acção administrativa comum se torne especial, defendendo o Professor que houve uma troca de nomes. 
Sem mais delongas, no âmago desta análise, conclui-se que o caminho mais harmonizado a percorrer é o do modelo unitário.

No entanto, não pode deixar de ser feita uma nota para espelhar as qualidades que o modelo bipolar trouxe – como já foi mencionado, foi graças à edificação da acção administrativa especial que se auferiram possibilidades antes omissas, como a condenação à prática de actos devidos e a impugnação de normas. Por outro lado, como analisa o Professor Vasco Pereira da Silva, a acção administrativa comum integra uma acção “multipedidos”[6], pela qual se pode deduzir pretensões de simples reconhecimento, constitutivas, inibitórias e ressarcitórias, além de revestir um potencial de meio residual para todos os pedidos que não se enquadrem na acção especial, em deferência ao princípio da tutela plena e efectiva, plasmado no artigo 2º do CPTA.

  • Actualidade

Actualmente, e com um atraso notável face ao estipulado na Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro, está em curso a revisão do CPTA – sendo caso para dizer: mais vale tarde do que nunca. 
Como se pode extrair do preâmbulo do ARCPTA, uma das questões mais expressivas da revisão em curso trata-se do esqueleto das formas de processo e do consequente regime. O que vai mudar? O título do presente estudo já acarreta o destapar do véu e indicia-nos que a era da bipolaridade entre acção administrativa comum e acção administrativa especial está a chegar ao fim. A fórmula prevista diz respeito à consagração de uma única acção administrativa que vai passar a abarcar todos os pedidos que outrora eram repartidos entre a AAC e a AAE, – artigo 37º ARCPTA[7]  – não obstante sejam ressalvadas algumas especialidades – veja-se, por exemplo, nas acções de condenação à prática de acto devido os artigos 66º a 71º ARCPTA. 
Como será a tramitação da nova acção administrativa? Esta nova forma de processo será submetida ao regime que, até aqui, correspondia à acção administrativa especial, mas com alterações que decorrem da sua harmonização com o novo regime do Código do Processo Civil, embora “procurando dar resposta a problemas que não se colocam em processo civil e, nos restantes domínios, consagrando, quando tal se justifica, soluções diferenciadas”[8] . Significa isto que será feita a adesão ao modelo de acção única, também intitulado como “modelo latino”, perfilhado nas reformas processuais francesa, italiana e espanhola.

Será curioso notar que, com o decorrer do tempo, a experiência com a dualidade de acções foi fazendo com que todas as vozes se unissem para o mesmo lado da balança e o próprio Professor Sérvulo Correia salientou que após dez anos de aplicação do CPTA, “ganhou-se a experiência e a profundidade de visão suficientes para o estabelecimento de uma única ação principal não urgente”[9] .
A escolha pelo modelo bipolar, embora tenha sido um bom passo dentro da rota entre o contencioso da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais (LPTA) e o CPTA, a verdade é que no contexto actual já não é plausível. Como já vimos, é um modelo cujas premissas apresentam-se obsoletas e que suscita problemas formais, conduzindo a algum arbítrio no delineamento do âmbito de cada acção, isto tendo em linha de conta que é propício a induzir em dúvida quanto ao tipo de acção a deduzir. De facto, o percurso a prosseguir - e a consequente tramitação - deve ser claro, simples e pautado por uma regulação exaustiva, mas que permita uma adaptação ao caso concreto. Assim, parece ser possível afirmar que a constituição de uma única acção administrativa impõe-se como um factor de segurança e clareza para a comunidade jurídica.

A partir do estudo do ARCPTA, é interessante constatar que a estrutura da acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos conserva-se quase na íntegra. Neste ponto, como o Professor Vasco Pereira da Silva explanou em sede de aula teórica, o que sucedeu foi que o legislador preocupou-se em regular mais o velho do que o novo, isto é, quis transformar as coisas velhas em novas ao dar-lhes um novo conteúdo. Como se observa, o legislador tratou com bastante detalhe esta matéria, nomeadamente, aspectos que já existiam antes - basta contemplar a correspondência entre os números dos artigos do CPTA e do ARCPTA. A explicação mais imediata para a exaustividade é o facto de o legislador ter sentido a necessidade de demarcar esta AAE do recurso directo de anulação para uma melhor adaptação ao actual contencioso administrativo.

Cumulativamente, da análise do ARCPTA deve ser feita referência ao regime do novo artigo 78º-A, que procura fortalecer a tutela da posição do autor perante o encargo que lhe é imposto de mencionar os contra-interessados na petição inicial. Ao mesmo tempo, devem ser referidos os regimes dos artigos 87º-A a 87º-C, que abarcam adaptações pontuais ao regime da audiência prévia e do saneador – sendo o artigo 87º-A/2 de relevar, na medida em que consagra o princípio da adequação processual (cabendo perguntar o porquê de uma localização tão encapuzada). No entanto, a formulação do artigo 87º-A/2 - “Para efeitos do disposto na alínea e) do número anterior, o juiz pode determinar a adoção da tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”[10] – em conjunto com o artigo 87º-B/2 que prevê a dispensa de debate prévio (não obstante o direito a reclamação) deixa algumas reservas, uma vez que transfere tamanha maleabilidade para o juiz. Isto é, uma vez que se passa do 8 para o 80 a cautela espreita - resta esperar para ver como irá funcionar. Outro aspecto a salientar prende-se com a nova norma do artigo 5º/1 do ARCPTA que manda adoptar o processo urgente sempre que haja cumulação de pedidos urgente e não urgente, em homenagem ao princípio da celeridade e da economia processual.

No entanto, e porque há sempre o reverso da moeda, que empecilhos poderão advir? Reflectindo que as normas do ARCPTA equivalem, em grande parte, à reprodução dos preceitos que regulam actualmente a acção administrativa especial, será que se irão adequar aos litígios que agora se submetem à acção administrativa comum? A meu ver, creio que os primeiros tempos após a mudança sejam susceptíveis de acarretar alguma confusão neste aspecto, sendo a solução delegada para a jurisprudência e doutrina. Não obstante, estamos diante de um bom passo para amodernar o processo administrativo.
Embora H. G. Wells diga que "o caminho com menos obstáculos é o caminho do perdedor"[11] e tendo em conta que cada processo é um caminho, no caso do processo administrativo será antes de almejar o caminho mais simples possível, de preferência sem obstáculos.


Ana Vicente - nº 20919

  • Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de - O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. Almedina, 2004 (3ª ed.).
ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. Almedina, 2013.
AMARAL, Diogo Freitas do; ALMEIDA, Mário Aroso de - Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo. Almedina, 2007 (3ª ed.).
SILVA, Vasco Pereira da – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Almedina, 2009 (2ª ed.).
SILVA, Vasco Pereira da, “Todo o Contencioso Administrativo se tornou de plena jurisdição”. Cadernos de Justiça Administrativa. nº 34 (2002)

[1] “A sorte está lançada”.
[4] Artigo 2º  Tutela jurisdicional efectiva:
 1 - O princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão.(...).
[5] Cfr. SÉRVULO CORREIA, “O recurso contencioso no projecto de reforma: Unidade ou pluralidade de meios processuais principais no contencioso administrativo”, in Estudos de Direito processual Administrativo, coord. José Manuel Sérvulo Correia, Rui Medeiros e Bernardo Ayala, Lisboa, 2001.
[6] Cfr. VASCO PEREIRA DA SILVA, “Todo o contencioso administrativo...”.
[7] Artigo 37º:
1 - Seguem a forma da ação administrativa, com a tramitação regulada no Capítulo III do presente Título, os processos que tenham por objeto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da competência dos tribunais administrativos e que, nem neste Código, nem em legislação avulsa, sejam objecto de regulação especial.
2 - Seguem, designadamente, a forma da ação administrativa os processos que tenham por objecto litígios relativos a:
a) Impugnação de atos administrativos;
b) Condenação à prática de atos administrativos devidos, nos termos da lei ou de vínculo contratualmente assumido;
c) Condenação à não emissão de atos administrativos;
d) Impugnação de normas emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo;
e) Condenação à emissão de normas devidas ao abrigo de disposições de direito administrativo;
f) Reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo;
g) Reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições;
h) Condenação à adoção ou abstenção de comportamentos pela Administração Pública ou por particulares;
i) Condenação da Administração à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime;
j) Condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que diretamente decorram de normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um ato administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que podem ter por objeto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto;
k) Responsabilidade civil das pessoas coletivas, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, incluindo ações de regresso;
l) Condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público, assim como da afetação do conteúdo essencial de direitos;
m) Interpretação, validade ou execução de contratos;
n) Enriquecimento sem causa;
o) Relações jurídicas entre entidades administrativas.
3 – (…).
4 - Os processos para fixação da justa indemnização devida por expropriações, servidões e restrições de utilidade pública regem-se pelo disposto no Código das Expropriações.
[9] Cfr.SÉRVULO CORREIA, “Da ação administrativa especial à nova ação administrativa”.
[10] A alínea e) do nº 1 do artigo 87º-A permite ao juiz determinar “a adequação formal, a simplificação ou a agilização do processo”, no âmbito da audiência prévia ou com dispensa desta.
[11] http://www.goodreads.com/quotes/649263-the-path-of-least-resistance-of-the-path-of-the

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