Contencioso administrativo e arbitragem
O texto que
agora se escreve tem como objecto a arbitragem em Direito Administrativo. De
facto, daquilo que já tive oportunidade de constatar no âmbito da disciplina de
Direito Processual Civil, e daquilo que vou lendo nos manuais de Contencioso
Administrativo, a Licenciatura em Direito, mormente nas suas cadeiras de
contencioso, parece não dar a devida importância a este tema. Ao lado das
matérias relacionadas com o contencioso nos tribunais de jurisdição
obrigatória, judiciais ou administrativos, só é referida, marginalmente, a
matéria da arbitragem, como se de um “patinho feio” se tratasse. Ainda assim,
apesar de tal lacuna se sujeitar à crítica, a mesma é compreensível, dada a
escassez de tempo existente. Por isso mesmo, surgem ideias como a criação deste
blog, dando-se a oportunidade aos
alunos para aprofundarem e debaterem temas que não podem ser objecto de
tratamento mais detalhado em sede de aulas teóricas e práticas.
Comecemos pelo
princípio, isto é, por explicar no que consiste a arbitragem. De facto, como
explica Fausto de Quadros[1], ao
lado do exercício da função jurisdicional do Estado (artigo 202º, CRP)
protagonizada pelos tribunais de jurisdição obrigatória, existe o exercício
dessa mesma função assente na existência de uma jurisdição voluntária. Do que
acaba de ser dito retira-se, pois, que uma mesma incumbência – exercício da
função jurisdicional do Estado constitucionalmente prevista – pode ser realizada
de formas diversas – ou através de uma jurisdição obrigatória ou, por seu
turno, através de uma jurisdição voluntária onde assenta a arbitragem. Veja-se
a importância desta matéria, tão bem plasmada numa decisão do STJ[2],
onde se refere que “o árbitro não é um
conciliador, a decisão arbitral não é uma transacção; o árbitro é um juíz e a
sua decisão é uma sentença. Só que se a decisão arbitral tivesse efeitos
meramente privados, entre as partes, a utilidade dos seus efeitos seria muito
reduzida. É então que a lei, no nosso caso a Lei Fundamental, tendo em conta as
reconhecidas vantagens da arbitragem, equipara essa função jurisdicional dos
tribunais arbitrais à função jurisdicional dos tribunais judiciais. Desta
forma, os tribunais arbitrais não deixam de ser instituições de natureza
privada para se transforarem em órgãos do Estado, O Estado é que, reconhecendo
a utilidade pública da arbitragem voluntária, quebra o monopólio do exercício da
função jurisdicional pelos seus órgãos atribuindo à decisão os efeitos próprios
da sentença judicial: a força de caso julgado e a força executiva”. Parece, pois, inequívoco que a arbitragem é
uma forma de exercício da função jurisdicional de grande utilidade, cuja
dignidade constitucional se retira do próprio artigo 209º, nº2, CRP.
De facto, como
refere MANUEL FERNANDO DOS SANTOS SERRA3, não existe qualquer
relação de complementaridade dos tribunais arbitrais em relação aos tribunais
do Estado. O que existe, de facto, é uma relação de alternatividade entre ambos[3].
Quais são,
porém, as vantagens da arbitragem que lhe conferem tamanha utilidade. Como nos
refere Fausto de Quadros[4]
existem duas ordens de vantagens: maior celeridade na resolução do litígio (o
que, para efeitos de prova, é importantíssimo) e maior tecnicidade no processo
de tomada de decisões para efeitos de sentença (as partes, no processo de
nomeação dos árbitros – artigos 8º, 9º e 10º, LAV[5],
podem atender às suas áreas de especialização). Por último, acrescentamos uma
outra vantagem: a maior preponderância que se dá à flexibilização do processo
(tão bem visível na faculdade conferida as partes naquilo que é a modelação das
regras do processo, sem prejuízo de, no artigo 30º, LAV, estar sempre garantido
o princípio do contraditório), isto é, o modo mais rígido como o litígio será
resolvido em sede de um tribunal administrativo pode ser atenuado na convenção
de arbitragem regulada nos artigos 1º e seguintes da LAV (em matéria de prova,
por exemplo). Note-se, como já foi dito, que um árbitro de um tribunal
arbitral, seja ele ad hoc ou
permanente, tem exactamente os mesmos deveres deontológicos e de independência
tal qual um juiz de um tribunal judicial. Para esse efeito, atentemos no artigo
9º, n.º3, LAV, garantido pelo regime das
incompatibilidades previsto no artigo 10º do mesmo diploma.
Depois desta
breve introdução, importa ver em concreto como é que a arbitragem é tratada no
Direito Administrativo. Para o efeito, é importante atentar nos artigos 180º e
seguintes, CPTA. Assim sendo, logo no artigo 180º, CPTA, refere-se que, sempre
que esteja em causa matérias de contratos, bem como de actos administrativos
tendentes à sua execução, excluindo-se, pois, os actos destacáveis
pré-contratuais (alínea a), de responsabilidade civil extracontratual (alínea
b) – ainda que, atento o artigo 185º, CPTA, matérias relacionadas com matéria
de responsabilidade civil por prejuízos decorrentes de actos praticados no
exercício das funções política, legislativa e jurisdicional estejam vedadas à
arbitragem[6]
–, de actos administrativos que podem ser revogados sem fundamento na sua
invalidade, nos termos da lei substantiva (alínea c) e de matérias referentes a
litígios emergentes de uma relação jurídica de emprego público, quando não estejam
em questão direitos indisponíveis e que não resultem de acidente de trabalho ou
de doença profissional (alínea d), tais questões podem ser resolvidas com
recurso aos tribunais arbitrais. De facto, após atentarmos no artigo 181º,
CPTA, que remete a constituição e funcionamento dos tribunais arbitrais para a
LAV, conclui-se que o artigo 180º, CPTA é conciliável com o artigo
1º, LAV, que vem definir quais os litígios que podem ser resolvidos num
tribunal judicial. Assim sendo, de acordo com este artigo, qualquer litígio
respeitante a interesses de natureza patrimonial pode ser resolvido num
tribunal arbitral, mediante decisão das partes, desde que lei especial não
submeta o conhecimento de tal matéria ao conhecimento de um tribunal judicial
ou a arbitragem obrigatória[7]
(como é o caso de em alguns domínios no âmbito contratual. Depois de uma
leitura dos números 2, 3 e 4, também definidores das matérias que podem ser
objecto de conhecimento por parte de um tribunal arbitral, o artigo 1º, n.º5
vem referir que o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público podem
celebrar convenções de arbitragem, desde que autorizados por lei ou se tais
convenções tiverem por objecto litígios de direito privado (nunca esquecendo,
pois, que a Administração, ao lado de uma actuação de Direito Público,
desenvolve grande parte da sua actividade ao abrigo do Direito Privado,
actuação essa objecto de reflexão na tese de doutoramento de Maria João Estorninho[8]).
Relativamente à
Reforma do Contencioso Administrativo que se avizinha e que tem vindo a ser
preparada nos últimos tempos, há que referir que a redacção do artigo 180º,
CPTA foi alterada. De acordo com o texto do projecto, já se admite o recurso à
arbitragem quando está em causa um acto destacável do procedimento
pré-contratual (alínea a) – o que não acontece com a actual redacção da alínea
a), n.º1, artigo 180º, CPTA, que apenas se refere aos actos relativos à
execução do contrato –, quando está em causa um acto administrativo,
eliminando-se a limitação anteriormente prevista aos actos administrativos que
possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade, nos termos da lei
substantiva. Assim sendo, aumenta-se o âmbito da jurisdição arbitral no
projecto do artigo 180º, CPTA. Infelizmente,
mantém-se a norma constante do artigo 185º, CPTA, tão criticada por Fausto de Quadros, entre outros,
revelando ainda alguns tiques de despotismo do nosso legislador.
Desta breve exposição retiramos,
pois, algumas conclusões, a saber:
i.
Os tribunais arbitrais têm dignidade
constitucional conferida pela Constituição e, entre estes e os tribunais de
jurisdição obrigatória estabelece-se uma relação de alternatividade;
ii.
O recurso aos tribunais arbitrais confere certas
vantagens, como a celeridade, a maior tecnicidade na tomada de uma decisão para
efeitos de sentença e uma maior flexibilização do processo;
iii.
Algumas convenções de arbitragem vêm restringir
o acesso aos tribunais administrativos ou judiciais, ainda que, por razões de
celeridade e efectividade processual, o Tribunal Constitucional não as
considere aniquiladoras do direito ao acesso aos tribunais;
iv.
A Reforma do Contencioso Administrativo, no seu
projecto apresentado, inclui alterações no âmbito do artigo 180º, CPTA que
aumentam o âmbito de jurisdição dos tribunais arbitrais;
João Maria da Cunha Empis Turma A
Subturma 6
Aluno n.º 21992
[1] Cfr.
Fausto
de Quadros, “A arbitragem em
Direito Administrativo, in Mais Justiça Administrativa e Fiscal, org.
Centro de Arbitragem Administrativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 105 e
ss.
[2] Cfr. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bd2dd7246cb2af8680257825004127f7?OpenDocument
que, nesta matéria, cita Francisco Cortez, A Arbitragem
Voluntária em Portugal, in O Direito, ano 124, 1992, IV, pg.555
[3] Cfr.
Manuel Fernando dos Santos Serra, “A Arbitragem Administrativa em
Portugal: Evolução Recente e Perspectivas”, in Mais Justiça Administrativa e
Fiscal, org. Centro de Arbitragem Administrativa, Coimbra, Coimbra Editora,
2010, p. 23
[4] Cfr. Fausto
de Quadros, …,p. 104 e ss.
[5] Cfr. Lei
da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 63/2012, de 14 de Dezembro)
[6] Neste
sentido, veja-se a critica feita por Fausto de Quadros, no texto já citado,
página 110, referindo-se ao carácter autoritário do Direito Administrativo em
algumas das suas soluções. Parece-nos,
também, este ser um “trauma de infância” do Direito Administrativo, recuperando
um conceito utilizado por Vasco Pereira
da Silva em Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Coimbra, Almedina, 2013.
[7] Solução
cuja constitucionalidade é questionada por Isabel
Celestes M. Fonseca, “A arbitragem
administrativa: uma realidade com futuro”, in A Arbitragem Administrativa e
Tributária – Problemas e Desafios, Coimbra, Almedina, 2012, p. 63, na medida em
que não está na disposição das partes a relação de alternatividade que se deve
estabelecer entre os tribunais arbitrais e os tribunais de jurisdição
obrigatória. Note-se, no entanto, que o Tribunal Constitucional tem vindo a
aceitar uma limitação desta alternatividade que se estabelece entre arbitragem
e tribunais de jurisdição obrigatória em nome de valores como a celeridade e
efectividade processuais.
[8] Cfr. Maria
João Estorninho, A Fuga para
o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 2009.
Visto.
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