sábado, 1 de novembro de 2014

ESPELHO MEU, ESPELHO MEU, O QUE SOU EU?


O contencioso administrativo prevê a figura do contra-interessado nos artigos 10º, n.º2, 57º e 68º, n.º2, ao contrário do processo civil, em que a figura não é conhecida.
Se no processo civil, no campo da legitimidade, encontramos apenas a figura do autor e do réu, como partes principais, no âmbito do processo administrativo, a par destes, surgem os contra-interessados que não são meros terceiros participantes no processo pelo esquema da intervenção de terceiros existente no processo civil e também previsto no contencioso (artigo 10º, n.º8).

Tratando-se de áreas do direito adjectivo, é de perguntar o porquê da necessidade de autonomizar esta figura num dos âmbitos e não noutro.
Importante é também saber qual a “natureza jurídica” destes contra-interessados ou qual a posição é que eles têm no contencioso administrativo: se são partes, como o autor ou o réu (isto, é se estão na exacta posição destes), se são terceiros (chamados terceiros intervenientes) ou se são um tertium genus.
Sobre estas duas questões, apenas, versará o presente trabalho (não se analisará o que são interessados para efeitos dos artigos 10º/1, 57º e 68º/2, por falta de espaço).

Começando pela segunda questão, vejamos o que tem vindo a ser dito:

Para Paulo Otero, os contra-interessados não constituem uma parte na relação jurídica- administrativa, mas sim terceiros “relativamente ao recorrente e à autoridade recorrida”, apesar de os considerar como “terceiros especiais”, já que se inserem numa relação trilateral ou multipolar, em que os outros lados do triângulo são a Administração e o autor[i].

Para Vasco Pereira da Silva os contra-interessados deveriam ter sido tratados (no CPTA) como verdadeiras partes, pois estes “outra coisa não são que sujeitos principais da relação jurídica multilateral, enquanto titulares de posições jurídicas de vantagem conexas com a da Administração”. Defende ainda que segundo uma interpretação sistemática do CPTA, este nos “obriga a considerar que os contra-interessados são partes no processo, como tal, gozando dos respectivos poderes (e deveres).”

Mário Aroso de Almeida interpretando o artigo 10º, n.º1 CPTA, conclui que os contra-interessados têm a qualidade de partes no litígio, tendo os artigos 57º e 68º, n.º2 a função de densificar o conceito, delimitando-o.[ii]  A esta posição não obsta ao facto de o objecto do processo não se definir “por referência às situações subjectivas dos contra-interessados”, mas sim em relação a uma pretensão de um particular (ou de um próprio ente da Administração) face à Administração, como a impugnação de um acto administrativo[iii].

Vieira de Andrade entende que, conferindo o CPTA aos contra-interessados “todos os poderes processuais próprios das partes”, não podem restar dúvidas “de que os contra-interessados são legalmente concebidos como partes”[iv]. Afirmando mesmo que “os contra-interessados devem, em princípio, considerar-se incluídos quando a lei se refere, sem mais, às partes”[v].

Francisco Paes Marques entende que eles se encontram numa relação paritária com o autor, chegando a esta posição pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e pelo direito de acesso aos tribunais, previstos nos artigos 268º, n.º4 e 20º da CRP, respectivamente. Se o contra-interessado está abrangido pelo previsão de ambos os preceitos (já que este tem uma posição jurídica subjectiva susceptível de ser lesada caso a acção do autor seja procedente), tal como o autor, a protecção legal que lhe é conferida tem de ser equivalente à deste, encontrando-se os dois “numa posição de paridade face ao âmbito de protecção de garantia constitucional”. Afirma mesmo que “estes [os contra-interessados] são partes com interesses contrapostos no âmbito de um determinado litígio” à semelhança do que ocorre no Processo Civil[vi], com a única diferença que em contencioso as relações são (ou podem ser) tri ou multipolares.


O surgimento dos contra-interessados resulta de se ter passado a conceber o contencioso administrativo como um processo de partes e não com o um processo a um acto, caso em que o que se visava em processo era repor a legalidade e não atender às posições subjectivas dos particulares.

Consensual é a ideia de que esta figura surge no seio de uma Administração que cada vez mais pratica actos que produzem efeitos não numa, mas em várias esferas jurídicas de particulares, isto é, ao contrário do que se verifica no âmbito das relações jusprivatistas em que temos duas partes com interesses contrapostos e portanto relações bilaterais, no seio do direito administrativo encontramos relações com vários pólos ou vértices, o que se tem vindo a designar de relações multipolares ou poligonais, pelo que não é de estranhar que no processo administrativo apareçam e não no processo civil, em que as relações se mantêm entre duas partes (aqui a reposta para o surgimento desta figura).

Contudo, apesar desta nova visão da relação jurídica há que ter em atenção o que Rui Machete[vii] afirma: entre o autor do pedido e o terceiro/contra-interessado, “não existe…uma relação jurídica concreta e directa de direito material”, apesar das suas situações jurídicas se condicionarem reciprocamente.
 
De facto, apesar de ser colocado a par da Administração (exige-se a sua presença em juízo, verificando-se um litisconsórcio necessário), sendo também réu, vai a processo defender interesses próprios que não são ou não necessitam de ser convergentes com os da Administração, ou melhor: não obstante o contra-interessado querer, por exemplo, a manutenção de um determinado acto praticado pela Câmara Municipal de Lisboa, tal como esta, deseja-o, muito provavelmente, por motivos/fundamentos diferentes desta.[viii]

Seguindo-se assim Francisco Paes Marques quando afirma, com razão, que os contra-interessados têm uma posição autónoma no processo, “dado que se assim não fosse, o seu chamamento seria inútil, já que os seus interesses seriam plenamente assegurados por via de uma representação a cargo da entidade demandada”[ix]. Também Rui Machete, refere a que as posições do autor e do contra-interessado são fungíveis, no sentido de que se o autor quer x, o contra-interessado quer o contrário de x, ou seja, se numa acção temos A como autor e B como contra-interessado, numa acção proposta por B, temos de ter A como contra-interessado (isto se o objecto do processo for o mesmo), denunciando-se que o contra-interessado não actua para defender o mesmo que a Administração[x].

Exposto isto, cabe tomar posição. A verdade é que a doutrina na sua maioria, pelo menos a das obras consultadas, embora com argumentação diversa, considera o contra-interessado como uma parte “material” e não como um terceiro e para esta posição eu tendo.

Julgo que se pode acrescentar ainda um argumento: O CPTA, ao estatuir que o autor tem de demandar os contra-interessados, a par da outra parte na relação material controvertida, estabelece um litisconsórcio necessário (art.10.º, n.º1 e 57 e 68/2).
Sabe-se que este tipo de legitimidade se verifica entre partes principais (autores ou réus) e ocorre quando não é possível dispor do bem individualmente ou quando é necessário assegurar o efeito útil da acção, ou seja, a composição definitiva dos litígios ou uma solução uniforme para as partes.[xi]
Uma dos fundamentos que é apontado por Paulo Otero[xii] para a legitimidade dos contra-interessados está exactamente relacionado com a ideia do litisconsórcio: o efeito de caso julgado só produzirá efeitos em relação às partes presentes no processo. Não estando (todos) os contra-interessados presentes a decisão poderá a vir mais tarde a ser impugnada, não se alcançando assim a composição definitiva do litígio, ou seja aquilo que todos desejam quando recorrem aos tribunais.

Assim sendo, a nível processual serão partes principais todas aquelas que têm de estar em litígio sob pena de a decisão não produzir os seus efeitos normais. Se os contra-interessados não estiverem em processo a decisão não produz os seus efeitos normais, logo os contra-interessados são partes principais no processo a par do autor e do réu.

Conclui-se assim que que os contra-interessados são verdadeiras partes no contencioso administrativo e não apenas terceiros ou parte acessórias, cuja não presença em processo não afecta o efeito útil da acção (a corroborar esta opção veja-se também a letra da lei, nomeadamente o artigo 10º/8, que refere que permite a aplicação do “esquema” da intervenção de terceiros previsto no processo civil, pelo que há uma distinção entre este número e o 10º/1, 57 e 68º/2 CPTA).




[i] Paulo Otero, Os contra-interessados em contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, página 1074 e 1076;

[ii] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, página 61 e 62;

[iii] Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, página 61;

[iv]  Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 13º Edição, 2014, página 255;

[v] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 13º Edição, 2014, página 256 nota de rodapé 694;

[vi] Francisco Paes Marques, A Efectividade da Tutela de Tereiros no Contencioso Administrativo, página 90 e 91;

[vii] Rui Machete, a Legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano, Volume II, Coimbra Editora, ano  página 620;

[viii] Por exemplo: Paulo Otero, Os contra-interessados em contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, página 1079;

[ix] Francisco Paes Marques, A Efectividade da Tutela de Terceiros no Contencioso Administrativo, página  108;

[x] Rui Machete, a Legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano, Volume II, Coimbra Editora, ano  página 617, quanto ao Ministério Público, mas penso que extensível, o mesmo raciocínio quanto à Administração;

[xi] Miguel Teixeira de Sousa, As partes o objecto e a prova na acção declarativa, página 65, 69 e 70;

[xii] Paulo Otero, Os contra-interessados em contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, páginas 1086 e 1087. 

1 comentário: