O contencioso administrativo prevê a
figura do contra-interessado nos artigos 10º, n.º2, 57º e 68º, n.º2, ao
contrário do processo civil, em que a figura não é conhecida.
Se no processo civil, no campo da
legitimidade, encontramos apenas a figura do autor e do réu, como partes
principais, no âmbito do processo administrativo, a par destes, surgem os
contra-interessados que não são meros terceiros participantes no processo pelo
esquema da intervenção de terceiros existente no processo civil e também previsto
no contencioso (artigo 10º, n.º8).
Tratando-se de áreas do direito
adjectivo, é de perguntar o porquê da necessidade de autonomizar esta figura
num dos âmbitos e não noutro.
Importante é também saber qual a
“natureza jurídica” destes contra-interessados ou qual a posição é que eles têm
no contencioso administrativo: se são partes, como o autor ou o réu (isto, é se
estão na exacta posição destes), se são terceiros (chamados terceiros
intervenientes) ou se são um tertium
genus.
Sobre estas duas questões, apenas,
versará o presente trabalho (não se analisará o que são interessados para
efeitos dos artigos 10º/1, 57º e 68º/2, por falta de espaço).
Começando pela segunda questão,
vejamos o que tem vindo a ser dito:
Para Paulo Otero, os contra-interessados não constituem uma parte na
relação jurídica- administrativa, mas sim terceiros “relativamente ao recorrente
e à autoridade recorrida”, apesar de os considerar como “terceiros especiais”,
já que se inserem numa relação trilateral ou multipolar, em que os outros lados
do triângulo são a Administração e o autor[i].
Para Vasco Pereira da Silva os contra-interessados deveriam ter sido
tratados (no CPTA) como verdadeiras partes, pois estes “outra coisa não são que
sujeitos principais da relação jurídica multilateral, enquanto titulares de
posições jurídicas de vantagem conexas com a da Administração”. Defende ainda
que segundo uma interpretação sistemática do CPTA, este nos “obriga a
considerar que os contra-interessados são partes no processo, como tal, gozando
dos respectivos poderes (e deveres).”
Mário
Aroso de Almeida
interpretando o artigo 10º, n.º1 CPTA, conclui que os contra-interessados têm a
qualidade de partes no litígio, tendo os artigos 57º e 68º, n.º2 a função de
densificar o conceito, delimitando-o.[ii] A esta posição não obsta ao facto de o
objecto do processo não se definir “por referência às situações subjectivas dos
contra-interessados”, mas sim em relação a uma pretensão de um particular (ou
de um próprio ente da Administração) face à Administração, como a impugnação de
um acto administrativo[iii].
Vieira
de Andrade entende
que, conferindo o CPTA aos contra-interessados “todos os poderes processuais
próprios das partes”, não podem restar dúvidas “de que os contra-interessados
são legalmente concebidos como partes”[iv]. Afirmando mesmo que “os
contra-interessados devem, em princípio, considerar-se incluídos quando a lei se
refere, sem mais, às partes”[v].
Francisco
Paes Marques entende
que eles se encontram numa relação paritária com o autor, chegando a esta
posição pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e pelo direito de
acesso aos tribunais, previstos nos artigos 268º, n.º4 e 20º da CRP,
respectivamente. Se o contra-interessado está abrangido pelo previsão de ambos
os preceitos (já que este tem uma posição jurídica subjectiva susceptível de
ser lesada caso a acção do autor seja procedente), tal como o autor, a protecção
legal que lhe é conferida tem de ser equivalente à deste, encontrando-se os
dois “numa posição de paridade face ao âmbito de protecção de garantia
constitucional”. Afirma mesmo que “estes [os contra-interessados] são partes
com interesses contrapostos no âmbito de um determinado litígio” à semelhança
do que ocorre no Processo Civil[vi], com a única diferença
que em contencioso as relações são (ou podem ser) tri ou multipolares.
O surgimento dos contra-interessados
resulta de se ter passado a conceber o contencioso administrativo como um
processo de partes e não com o um processo a um acto, caso em que o que se
visava em processo era repor a legalidade e não atender às posições subjectivas
dos particulares.
Consensual é a ideia de que esta
figura surge no seio de uma Administração que cada vez mais pratica actos que
produzem efeitos não numa, mas em várias esferas jurídicas de particulares,
isto é, ao contrário do que se verifica no âmbito das relações jusprivatistas
em que temos duas partes com interesses contrapostos e portanto relações
bilaterais, no seio do direito administrativo encontramos relações com vários
pólos ou vértices, o que se tem vindo a designar de relações multipolares ou
poligonais, pelo que não é de estranhar que no processo administrativo apareçam
e não no processo civil, em que as relações se mantêm entre duas partes (aqui a
reposta para o surgimento desta figura).
Contudo, apesar desta nova visão da
relação jurídica há que ter em atenção o que Rui Machete[vii] afirma: entre o autor do
pedido e o terceiro/contra-interessado, “não existe…uma relação jurídica
concreta e directa de direito material”, apesar das suas situações jurídicas se
condicionarem reciprocamente.
De facto, apesar de ser colocado a par
da Administração (exige-se a sua presença em juízo, verificando-se um
litisconsórcio necessário), sendo também réu, vai a processo defender
interesses próprios que não são ou não necessitam de ser convergentes com os da
Administração, ou melhor: não obstante o contra-interessado querer, por
exemplo, a manutenção de um determinado acto praticado pela Câmara Municipal de
Lisboa, tal como esta, deseja-o, muito provavelmente, por motivos/fundamentos
diferentes desta.[viii]
Seguindo-se assim Francisco Paes
Marques quando afirma, com razão, que os contra-interessados têm uma posição
autónoma no processo, “dado que se assim não fosse, o seu chamamento seria
inútil, já que os seus interesses seriam plenamente assegurados por via de uma
representação a cargo da entidade demandada”[ix]. Também Rui Machete,
refere a que as posições do autor e do contra-interessado são fungíveis, no
sentido de que se o autor quer x, o contra-interessado quer o contrário de x,
ou seja, se numa acção temos A como autor e B como contra-interessado, numa acção
proposta por B, temos de ter A como contra-interessado (isto se o objecto do
processo for o mesmo), denunciando-se que o contra-interessado não actua para
defender o mesmo que a Administração[x].
Exposto isto, cabe tomar posição. A
verdade é que a doutrina na sua maioria, pelo menos a das obras consultadas,
embora com argumentação diversa, considera o contra-interessado como uma parte
“material” e não como um terceiro e para esta posição eu tendo.
Julgo que se pode acrescentar ainda um
argumento: O CPTA, ao estatuir que o autor tem de demandar os
contra-interessados, a par da outra parte na relação material controvertida,
estabelece um litisconsórcio necessário (art.10.º, n.º1 e 57 e 68/2).
Sabe-se que este tipo de legitimidade
se verifica entre partes principais (autores ou réus) e ocorre quando não é
possível dispor do bem individualmente ou quando é necessário assegurar o
efeito útil da acção, ou seja, a composição definitiva dos litígios ou uma
solução uniforme para as partes.[xi]
Uma dos fundamentos que é apontado por
Paulo Otero[xii]
para a legitimidade dos contra-interessados está exactamente relacionado com a
ideia do litisconsórcio: o efeito de caso julgado só produzirá efeitos em
relação às partes presentes no processo. Não estando (todos) os
contra-interessados presentes a decisão poderá a vir mais tarde a ser
impugnada, não se alcançando assim a composição definitiva do litígio, ou seja
aquilo que todos desejam quando recorrem aos tribunais.
Assim sendo, a nível processual serão
partes principais todas aquelas que têm de estar em litígio sob pena de a
decisão não produzir os seus efeitos normais. Se os contra-interessados não
estiverem em processo a decisão não produz os seus efeitos normais, logo os
contra-interessados são partes principais no processo a par do autor e do réu.
Conclui-se assim que que os
contra-interessados são verdadeiras partes no contencioso administrativo e não
apenas terceiros ou parte acessórias, cuja não presença em processo não afecta
o efeito útil da acção (a corroborar esta opção veja-se também a letra da lei,
nomeadamente o artigo 10º/8, que refere que permite a aplicação do “esquema” da
intervenção de terceiros previsto no processo civil, pelo que há uma distinção
entre este número e o 10º/1, 57 e 68º/2 CPTA).
[i] Paulo
Otero, Os contra-interessados em
contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério
Soares, página 1074 e 1076;
[ii] Mário
Aroso de Almeida, O Novo Regime do
Processo nos Tribunais Administrativos, página 61 e 62;
[iii] Mário
Aroso de Almeida, O Novo Regime do
Processo nos Tribunais Administrativos, página 61;
[iv] Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 13º Edição, 2014, página 255;
[v] Vieira
de Andrade, Justiça Administrativa,
Almedina, 13º Edição, 2014, página 256 nota de rodapé 694;
[vi]
Francisco Paes Marques, A Efectividade da
Tutela de Tereiros no Contencioso Administrativo, página 90 e 91;
[vii] Rui
Machete, a Legitimidade dos
contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais, Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano, Volume II, Coimbra Editora,
ano página 620;
[viii] Por
exemplo: Paulo Otero, Os
contra-interessados em contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Rogério Soares, página 1079;
[ix] Francisco
Paes Marques, A Efectividade da Tutela de
Terceiros no Contencioso Administrativo, página 108;
[x] Rui
Machete, a Legitimidade dos
contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais, Estudos
em Homenagem ao Prof. Doutor Marcello Caetano, Volume II, Coimbra Editora,
ano página 617, quanto ao Ministério
Público, mas penso que extensível, o mesmo raciocínio quanto à Administração;
[xi] Miguel
Teixeira de Sousa, As partes o objecto e
a prova na acção declarativa, página 65, 69 e 70;
[xii] Paulo
Otero, Os contra-interessados em
contencioso administrativo, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério
Soares, páginas 1086 e 1087.
Visto.
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