Direito que a Constituição da
República Portuguesa prevê no seu artigo 52º/ 3 como um direito, liberdade e
garantia de participação política.
Seguindo
uma definição apresentada pelo Professor Paulo
Otero, a acção popular é um mecanismo
através do qual, todos os membros de uma comunidade estão investidos de um
poder de acesso à justiça, visando tutelar situações jurídicas que não são,
todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.
Desta
definição resultam dois elementos
essenciais que permitem caracterizar a acção popular, a saber:
I-
Extensão
da legitimidade activa a todos os cidadãos , independentemente, de terem ou não um interesse
pessoal na defesa dos bens ou valores em causa (mais adiante
passarei a enunciar quais são). Através da acção popular alarga-se a legitimidade a quem não alegue
ser parte numa relação material controvertida, o que conduz, tal como referem
os Professores Gomes Canotilho e Vital
Moreira, na anotação ao artigo 52º/3 da Constituição da República
Portuguesa (doravante, CRP) à debilidade das teorias tradicionais da
legitimidade assentes no “interesse directo e pessoal”, segundo as quais, os
cidadãos só teriam legitimidade para propor uma acção quando se verificasse
directamente a violação de um interesse pessoal/individual;
II-
A
defesa de interesses difusos,
tendo presente que estes se traduzem na «refracção
em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e
complexivamente considerada», definição dada pelos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira na
anotação ao artigo 52º/3 da CRP, justifica-se, por isso, que se reconheça aos
cidadãos uti cives e não uti singuli o direito de acesso aos
tribunais para, individual ou conjuntamente, promover a desses interesses. Com a atribuição deste direito pretende-se tutelar bens e valores constitucionalmente
protegidos, como a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de
vida, a preservação do ambiente e do património cultural, veja-se o disposto no
artigo 52º/3 alínea a) da CRP, bem como no artigo 1º/2 da Lei nº 83/95 de 31 de Agosto a qual regula o Direito de participação
procedimental e de acção popular. Note-se
que, a enumeração dos bens e valores em causa que decorre dos artigos supra citados não é taxativa, contudo e atendendo
à ratio da acção popular, em causa têm
de estar sempre bens e valores de natureza análoga.
Ora,
uma vez caracterizado, em termos gerais, o direito de acção popular, vejamos a
sua concretização ao nível do Contencioso Administrativo.
I – Acção Popular no Contencioso
Administrativo
O
artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (futuramente,
CPTA) determina que «independentemente de
ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e
fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o
Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previsto
na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e
bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o
urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património
cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais», desta
norma resulta que, para além daqueles que aleguem ser parte na relação material
controvertida (critério regal constante do artigo 9º/1 do CPTA) no Contencioso Administrativo são ainda
sujeitos activos o actor popular e o actor público, embora a atenção neste post se concentre apenas na análise da
legitimidade conferida ao actor popular. Prosseguindo, estamos aqui perante o
já referido fenómeno de extensão da legitimidade, a acção popular.
De
acordo com o preceito transcrito, quando refere «nos termos previstos na lei» está em causa a já mencionada Lei nº 83/95 de 31 de Agosto,
a qual estabelece os
termos em que é exercida a legitimidade conferida ao actor popular. Nesta
medida, torna-se imperativo analisar alguns dos preceitos do referido diploma.
Então,
segundo o disposto no artigo 2º/1 e 2 os
titulares do direito de acção popular são:
- Todos os «cidadãos no gozo dos seus direitos
civis e políticos»;
-
As associações e fundações defensoras dos interesses em causa e desde que
verificados os requisitos do artigo 3º. Destes preceitos verificamos que a
legitimidade das associações é uma legitimidade condicionada, isto porque
é-lhes exigido que tenham como propósito a defesa dos interesses em causa e
ainda que exista uma conexão entre as situações que se pretende acautelar e o
fim estatutário das mesmas;
- As autarquias locais «em relação aos interesses
de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição».
Sendo
certo que, a legitimidade conferida é sempre para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das
infracções contra bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o
ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo, património cultural e o
domínio publico, e ainda para assegurar a defesa dos bens do Estado, das
regiões autónomas e das autarquias locais, segundo o disposto artigo 52º/3
da CRP ex vi do artigo 1º/1 da Lei n.º
83/95 de 31 de Agosto.
A
remissão do artigo 9º/2 do CPTA para a Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto tem para o Professor Mário Aroso de Almeida um duplo significado, por um lado
pretende-se a concretização do critério de legitimidade genericamente previsto
no artigo acima referido do CPTA. Por outro lado, prende-se com o regime
processual, na medida em que segundo o disposto nos artigos 13º e seguintes da
Lei n.º 83/95, os processos formulados ao abrigo do direito de acção popular
têm aspectos específicos que determinam a introdução de adaptações ao modelo de
tramitação normal.
Posto este breve apontamento referido pelo Professor Mário Aroso de Almeida e concentrando agora a análise no CPTA, o
mesmo parece prever duas modalidades
distintas de acção popular, são elas: a
genérica prevista no artigo 9º/2, que engloba particulares e pessoas
colectivas; e a de âmbito autárquico ou
local regulada no artigo 55º/2, do qual resulta «a qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é
permitido impugnar as deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais
sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado». A este propósito o Professor
Vasco Pereira da Silva interroga se
se justifica esta dualidade de regimes de acção popular? Ou se pelo contrário,
a acção popular local ou autárquica – de profundas tradições no contencioso de
actos administrativos- acabou por ser absorvida pela acção popular genérica? O
Professor responde, defendendo que a acção popular genérica tutela os mesmos
valores e apresenta requisitos de admissibilidade mais amplos o que
consequentemente conduz à inutilidade da acção popular autárquica. Desde logo,
e como refere o Professor, quando no artigo 9º/2 se estabelece «qualquer
pessoa» é claro que abrange «qualquer eleitor», bem como quando determina «valores
e bens constitucionalmente protegidos» é igualmente claro que também engloba
«os bens e valores autárquicos», assim o Professor conclui que «não subsiste qualquer âmbito de aplicação
próprio da acção popular autárquica, que não esteja já compreendido na acção
popular genérica, que absorveu (ou “engoliu”) literalmente a primeira (…)».
Solução que me parece fazer todo o sentido!
Ainda
a respeito da análise do CPTA em matéria de acção popular, resta referir que em
cada um dos regimes especiais, concretamente, nas acções sobre contratos (artigo
40º/1 alínea b) do CPTA), nas acções de impugnação de actos administrativos
(artigo 55º/1 alínea f) e 55º/2 do CPTA), nas acções de condenação à prática de
actos administrativos (artigo 68º/1 alínea d) do CPTA), nas acções de
impugnação e declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos (artigo
73º/2 do CPTA), existe uma norma que prevê a legitimidade do actor popular.
Ora, tal como refere o Professor Mário
Aroso de Almeida, a existência destas normas nada acrescenta à previsão
geral decorrente do artigo 9º/2 do CPTA, pelo que apenas se justificam numa óptica
de completude e reiteração da legitimidade do actor popular nesses processos.
II – Acção Popular
enquanto garante da função objectiva do Contencioso Administrativo
Não
podia finalizar este post sem antes
assinalar a importante função que a acção popular desempenha no Contencioso Administrativo
enquanto guardiã da vertente objectiva do mesmo. Como sabemos, o Contencioso Administrativo assume, actualmente, uma feição marcadamente
subjectivista, pretendo proteger, sobretudo, os interesses directos e pessoais
dos cidadãos (veja-se o já citado, artigo 9º/1 do CPTA) frente a actuações
lesivas protagonizadas pela Administração Pública. Não obstante, continua igualmente a desempenhar uma
função objectiva, não menos importante! Citando a este propósito o Professor Vasco Pereira da Silva «num Estado de Direito, o Contencioso
Administrativo, para além da função subjectiva, de protecção plena e efectiva
dos direitos dos particulares, desempenha também uma função objectiva de tutela
da legalidade e do interesse público» a qual é imediatamente realizada,
pela extensão de legitimidade activa que a acção popular confere a todos os
cidadãos, «independentemente de terem interesse directo na demanda» – artigo
9º/2 CPTA. Direito constitucionalmente consagrado, mediante o qual se permite
considerar como sujeito processual o actor popular que actua para a defesa de
bens e valores constitucionalmente consagrados, que pertencem a toda a
comunidade.
Assim, constatamos que através da acção popular fica
assegurada não só a defesa da legalidade e do interesse público, mas também a
realização directa da função objectiva do Contencioso. Uma vez que e tal como já referi, a par da função
predominantemente subjectiva que o Contencioso dos nossos dias assume, de
salvaguarda dos direitos subjectivos de cada um dos cidadãos, a qual constituí
um direito fundamental, conforme decorre do artigo 268º/4 da CRP, cabe-lhe
ainda um função objectiva, também ela essencial da Justiça Administrativa. É na
possibilidade de prosseguimento directo da tutela objectiva de valores e bens
constitucionalmente consagrados mediante a actuação do actor popular que fica assegurada que reside
a originalidade do nosso Contencioso Administrativo. E este é, argumento mais
do que suficiente para confirmar a importância da acção popular no nosso
sistema, precisamente no Contencioso Administrativo.
Bibliografia consultada:
Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no
actual Direito português;
Mário Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, Almedina, 2013, páginas 224 a 249;
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, páginas 270 a 273 e ainda as páginas 370 a 372;
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, páginas 268 a
269;
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa
Anotada, volume I, 4ª edição revista, 2007.
Telma Gonçalves, 21020
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