domingo, 2 de novembro de 2014

Acção Popular no Contencioso Administrativo dos nossos dias

Direito que a Constituição da República Portuguesa prevê no seu artigo 52º/ 3 como um direito, liberdade e garantia de participação política.

Seguindo uma definição apresentada pelo Professor Paulo Otero, a acção popular é um mecanismo através do qual, todos os membros de uma comunidade estão investidos de um poder de acesso à justiça, visando tutelar situações jurídicas que não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais.

Desta definição resultam dois elementos essenciais que permitem caracterizar a acção popular, a saber:

I-                   Extensão da legitimidade activa a todos os cidadãos , independentemente, de terem ou não um interesse pessoal na defesa dos bens ou valores em causa (mais adiante passarei a enunciar quais são). Através da acção popular alarga-se a legitimidade a quem não alegue ser parte numa relação material controvertida, o que conduz, tal como referem os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, na anotação ao artigo 52º/3 da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) à debilidade das teorias tradicionais da legitimidade assentes no “interesse directo e pessoal”, segundo as quais, os cidadãos só teriam legitimidade para propor uma acção quando se verificasse directamente a violação de um interesse pessoal/individual;

II-                 A defesa de interesses difusos, tendo presente que estes se traduzem na «refracção em cada indivíduo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada», definição dada pelos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação ao artigo 52º/3 da CRP, justifica-se, por isso, que se reconheça aos cidadãos uti cives e não uti singuli o direito de acesso aos tribunais para, individual ou conjuntamente, promover a desses interesses. Com a atribuição deste direito pretende-se tutelar bens e valores constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural, veja-se o disposto no artigo 52º/3 alínea a) da CRP, bem como no artigo 1º/2 da Lei nº 83/95 de 31 de Agosto a qual regula o Direito de participação procedimental e de acção popular. Note-se que, a enumeração dos bens e valores em causa que decorre dos artigos supra citados não é taxativa, contudo e atendendo à ratio da acção popular, em causa têm de estar sempre bens e valores de natureza análoga.

Ora, uma vez caracterizado, em termos gerais, o direito de acção popular, vejamos a sua concretização ao nível do Contencioso Administrativo.

 I – Acção Popular no Contencioso Administrativo

O artigo 9º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (futuramente, CPTA) determina que «independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previsto na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais», desta norma resulta que, para além daqueles que aleguem ser parte na relação material controvertida (critério regal constante do artigo 9º/1 do CPTA) no Contencioso Administrativo são ainda sujeitos activos o actor popular e o actor público, embora a atenção neste post se concentre apenas na análise da legitimidade conferida ao actor popular. Prosseguindo, estamos aqui perante o já referido fenómeno de extensão da legitimidade, a acção popular.

De acordo com o preceito transcrito, quando refere «nos termos previstos na lei» está em causa a já mencionada Lei nº 83/95 de 31 de Agosto, a qual estabelece os termos em que é exercida a legitimidade conferida ao actor popular. Nesta medida, torna-se imperativo analisar alguns dos preceitos do referido diploma.

Então, segundo o disposto no artigo 2º/1 e 2 os titulares do direito de acção popular são:

 - Todos os «cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos»;

- As associações e fundações defensoras dos interesses em causa e desde que verificados os requisitos do artigo 3º. Destes preceitos verificamos que a legitimidade das associações é uma legitimidade condicionada, isto porque é-lhes exigido que tenham como propósito a defesa dos interesses em causa e ainda que exista uma conexão entre as situações que se pretende acautelar e o fim estatutário das mesmas;

 - As autarquias locais «em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição».

Sendo certo que, a legitimidade conferida é sempre para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo, património cultural e o domínio publico, e ainda para assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, segundo o disposto artigo 52º/3 da CRP ex vi do artigo 1º/1 da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto.  

A remissão do artigo 9º/2 do CPTA para a Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto tem para o Professor Mário Aroso de Almeida um duplo significado, por um lado pretende-se a concretização do critério de legitimidade genericamente previsto no artigo acima referido do CPTA. Por outro lado, prende-se com o regime processual, na medida em que segundo o disposto nos artigos 13º e seguintes da Lei n.º 83/95, os processos formulados ao abrigo do direito de acção popular têm aspectos específicos que determinam a introdução de adaptações ao modelo de tramitação normal. 

Posto este breve apontamento referido pelo Professor Mário Aroso de Almeida e concentrando agora a análise no CPTA, o mesmo parece prever duas modalidades distintas de acção popular, são elas: a genérica prevista no artigo 9º/2, que engloba particulares e pessoas colectivas; e a de âmbito autárquico ou local regulada no artigo 55º/2, do qual resulta «a qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as deliberações adoptadas por órgãos das autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado». A este propósito o Professor Vasco Pereira da Silva interroga se se justifica esta dualidade de regimes de acção popular? Ou se pelo contrário, a acção popular local ou autárquica – de profundas tradições no contencioso de actos administrativos- acabou por ser absorvida pela acção popular genérica? O Professor responde, defendendo que a acção popular genérica tutela os mesmos valores e apresenta requisitos de admissibilidade mais amplos o que consequentemente conduz à inutilidade da acção popular autárquica. Desde logo, e como refere o Professor, quando no artigo 9º/2 se estabelece «qualquer pessoa» é claro que abrange «qualquer eleitor», bem como quando determina «valores e bens constitucionalmente protegidos» é igualmente claro que também engloba «os bens e valores autárquicos», assim o Professor conclui que «não subsiste qualquer âmbito de aplicação próprio da acção popular autárquica, que não esteja já compreendido na acção popular genérica, que absorveu (ou “engoliu”) literalmente a primeira (…)». Solução que me parece fazer todo o sentido!

Ainda a respeito da análise do CPTA em matéria de acção popular, resta referir que em cada um dos regimes especiais, concretamente, nas acções sobre contratos (artigo 40º/1 alínea b) do CPTA), nas acções de impugnação de actos administrativos (artigo 55º/1 alínea f) e 55º/2 do CPTA), nas acções de condenação à prática de actos administrativos (artigo 68º/1 alínea d) do CPTA), nas acções de impugnação e declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos (artigo 73º/2 do CPTA), existe uma norma que prevê a legitimidade do actor popular. Ora, tal como refere o Professor Mário Aroso de Almeida, a existência destas normas nada acrescenta à previsão geral decorrente do artigo 9º/2 do CPTA, pelo que apenas se justificam numa óptica de completude e reiteração da legitimidade do actor popular nesses processos.

II – Acção Popular enquanto garante da função objectiva do Contencioso Administrativo

Não podia finalizar este post sem antes assinalar a importante função que a acção popular desempenha no Contencioso Administrativo enquanto guardiã da vertente objectiva do mesmo. Como sabemos, o Contencioso Administrativo assume, actualmente, uma feição marcadamente subjectivista, pretendo proteger, sobretudo, os interesses directos e pessoais dos cidadãos (veja-se o já citado, artigo 9º/1 do CPTA) frente a actuações lesivas protagonizadas pela Administração Pública. Não obstante, continua igualmente a desempenhar uma função objectiva, não menos importante! Citando a este propósito o Professor Vasco Pereira da Silva «num Estado de Direito, o Contencioso Administrativo, para além da função subjectiva, de protecção plena e efectiva dos direitos dos particulares, desempenha também uma função objectiva de tutela da legalidade e do interesse público» a qual é imediatamente realizada, pela extensão de legitimidade activa que a acção popular confere a todos os cidadãos, «independentemente de terem interesse directo na demanda» – artigo 9º/2 CPTA. Direito constitucionalmente consagrado, mediante o qual se permite considerar como sujeito processual o actor popular que actua para a defesa de bens e valores constitucionalmente consagrados, que pertencem a toda a comunidade. 

Assim, constatamos que através da acção popular fica assegurada não só a defesa da legalidade e do interesse público, mas também a realização directa da função objectiva do Contencioso. Uma vez que e tal como já referi, a par da função predominantemente subjectiva que o Contencioso dos nossos dias assume, de salvaguarda dos direitos subjectivos de cada um dos cidadãos, a qual constituí um direito fundamental, conforme decorre do artigo 268º/4 da CRP, cabe-lhe ainda um função objectiva, também ela essencial da Justiça Administrativa. É na possibilidade de prosseguimento directo da tutela objectiva de valores e bens constitucionalmente consagrados mediante a actuação do actor popular que fica assegurada que reside a originalidade do nosso Contencioso Administrativo. E este é, argumento mais do que suficiente para confirmar a importância da acção popular no nosso sistema, precisamente no Contencioso Administrativo. 

Bibliografia consultada:

Paulo Otero, A acção popular: configuração e valor no actual Direito português;
Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, páginas 224 a 249;
Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, páginas 270 a 273 e ainda as páginas 370 a 372;
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, páginas 268 a 269;
GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição revista, 2007.

Telma Gonçalves, 21020


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