domingo, 30 de novembro de 2014

A suspensão de eficácia do acto administrativo no âmbito das providências cautelares impugnatórias: da patologia à cura.



1.    Introdução. O Regime Vigente.


De acordo com o artigo 128º do CPTA em vigor, quando seja requerida a suspensão da eficácia de um acto administrativo, a autoridade administrativa, uma vez recebido o duplicado do requerimento, não pode iniciar ou prosseguir a execução do acto, salvo se, mediante resolução fundamentada, reconhecer, no prazo de 15 dias, que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público (nº 1). Ou seja, a recepção do duplicado do requerimento cautelar tem o efeito automático de impedir a execução do acto, efeito esse que só se levanta se, no prazo de 15 dias, a entidade requerida proferir resolução fundamentada. A execução que seja levada a cabo sem a resolução fundamentada ou que, sendo-o, veja contrariada a sua fundamentação, é considerada indevida nos termos do nº 3 do artigo em análise. Atalhando, o que faz o artigo 128º é regular a situação em que fica colocada a entidade requerida entre o momento em que recebe o duplicado do requerimento (que, para Mário Aroso de Almeida, se trata do momento da citação do processo cautelar – 117º) mediante o qual tenha sido pedida a suspensão cautelar da eficácia administrativa de um acto por si praticado e aquele em que o tribunal se vem a pronunciar sobre o mesmo pedido. Durante esse período a entidade, em princípio, não pode iniciar ou prosseguir os actos de execução do acto impugnado, e se o fizer pode ver esses mesmos actos considerados ineficazes pelo tribunal. No fundo está em causa evitar o periculum in mora do processo cautelar, prevenindo que possam resultar para o requerente danos de um eventual atraso do tribunal, paralisando-se assim o acto por completo.
A regra é, portanto, que toda e qualquer entidade administrativa que recebe a informação da interposição de uma providência cautelar com vista a suspender a eficácia do seu acto fica ope legis proibida de o executar.
Ao instituir no nº 4 do o incidente de declaração de ineficácia dos eventuais actos de execução indevida, o art. 128º dispensa o interessado de impugnar a resolução fundamentada e os actos jurídicos de execução dela decorrentes. Considerando que não havia fundamento para o levantamento unilateral por parte de Administração para o levantamento da suspensão, o Código vem permitir que o interessado reaja directamente contra os actos de execução, pedindo que o juiz os declare ineficazes.

2.    Problemas do presente


O artigo 128º tem gerado desde o seu surgimento bastante controvérsia. A principal razão desta é o tema que nos propomos a trazer para o presente post e prende-se com a circunstância da proibição de executar poder ser levantada pela própria entidade requerida, através de uma resolução fundamentada, sem prévia intervenção do juiz cautelar. Para prevenir eventuais abusos, o CPTA introduziu o prazo de 15 dias para a emissão da resolução fundamentada, o que em vez de melhorar ainda contribuiu mais para o problema: acabam por ser emitidas resoluções fundamentadas que noutras circunstâncias nem o seria, em função da urgência da decisão.
Na verdade, para a administração iniciar ou prosseguir com a execução do acto, basta-lhe que profira um acto administrativo onde justifique que o diferimento da execução seria gravemente prejudicial para o interesse público. O grande problema é que quem tem competência para aferir sobre a existência de prejuízo para o interesse público é, não o juiz, mas a própria administração, que é também parte no próprio processo. Ou seja: é a administração quem, verdadeiramente, decide se suspende ou não a execução do seu próprio acto. A contradição está à vista: num processo jurisdicional que corre perante um tribunal é uma das partes que pode, unilateralmente, decidir se fica ou não proibida de executar o acto administrativo que está a ser impugnado. E isto comprova-se, conforme diz Ana Gouveia Martins, com um olhar sobre a prática administrativa, pois constata-se que é habitual da parte da administração invocar sistematicamente grave prejuízo para o interesse público e praticar uma “política de facto consumado”, conforme lhe chama Diogo Calado, “frustrando a tutela cautelar constitucionalmente garantida”.  Sobre esta circunstância dizia já Freitas do Amaral*, ainda no âmbito da LPTA (cujo artigo 80º é o “progenitor” do actual 128º CPTA), que esta solução é como “uma nova modalidade do privilégio de execução prévia, gravosa para os particulares e desprestigiante para os tribunais”.
Note-se que a já aludida possibilidade oferecida ao particular através da faculdade de declaração de ineficácia dos actos de execução (128º, nºs 3 e 4) quando se conclua pela improcedência dos fundamentos da resolução de nada servirá quando o acto tenha já sido executado e, pela sua natureza, assuma contornos de irreversibilidade. Mais: conforme afirma Rui Guerra da Fonseca, “Quando a administração fundamente razoavelmente, ainda que de forma sumária, a grave prejudicialidade para o interesse público na não execução do acto suspendido, ou o interessado consegue demonstrar a respectiva desroazoabilidade, ou o juiz não terá prática alternativa que não aceitar a bondade da resolução administrativa”, nestes termos, conclui dizendo que a solução actual da resolução fundamentada “introduz um novo elemento relativizador da própria posição dos tribunais”.
Apesar das críticas passíveis de fazer a este sistema, é bom salientar que o esforço do legislador em colocar limites à proibição de execução do acto é de aplaudir. É interessante a opção pela salvaguarda interesse público  subjacente à prática do acto quando superior ao do particular na suspensão da execução (até por razões de imperativo constitucional – 266º, nº 1 CRP ). O problema está, não na limitação, mas no modo como esta é praticada, tornando-se numa autêntica faculdade da administração.


3.    O Anteprojecto do novo CPTA. Soluções encontradas


Identificando o problema, a proposta constante do Anteprojecto de revisão do CPTA vem ensaiar uma solução. Esta passa por duas alterações fundamentais, que passamos a esmiuçar.
Em primeiro lugar vem impor que seja o juiz a decidir sobre o levantamento do efeito suspensivo, a pedido da entidade requerida ou outros interessados, em caso de prejuízo grave para o interesse público. Trata-se de uma correcção directa do problema anteriormente descrito. Agora é o juiz que decide a priori sobre a existência de um “grave prejuízo para o interesse público”, deixando de ser a administração a levantar por si própria o efeito suspensivo por mera invocação de tal prejuízo.
Mais: o preceito vem agora acrescentar ainda que os prejuízos poderão ser “noutros interesses envolvidos”, desde que acarretem uma consequência lesiva “claramente desproporcionada” ou seja, nem só o prejuízo ao interesse público pode relevar para efeitos do levantamento da suspensão do acto, acautelando-se deste modo a posição dos contra-interessados.  No entanto, esta só será relevante em caso de haver uma grande discrepância entre este interesse preterido e o interesse na suspensão de execução do acto. Esta solução vem dar razão a Vieira de Andrade que vinha chamando a atenção para este problema, exemplificando: “Esta desprotecção do contra-interessado é ainda mais chocante quando se trate de pedidos infundados, que podem representar o mero despeito de concorrentes preteridos, que não têm qualquer hipótese séria de serem escolhidos”. É por situações como esta citada que Diogo Calado defende que o juiz possa olhar à possibilidade de procedência ou improcedência do processo para aligeirar o critério do “grave prejuízo para o interesse público”.
Ainda nos termos desta primeira alteração refira-se igualmente que se deixou cair o prazo de 15 dias para efectuar o requerimento do levantamento, pelo que este poderá ser apresentado a todo o tempo (até ao óbvio limite, conforme diz Rui Guerra da Fonseca, do momento do trânsito em julgado da decisão sobre a própria providência).

A segunda alteração fundamental é mais inovadora, passando agora a ser possível à administração iniciar imediatamente (ou continuar) a execução do acto com base em situação de estado de necessidade. Representa isto que o novo CPTA não ignora que possam existir situações limite, em que a administração não possa ficar privada de executar os seus actos. Há situações em que a actuação da administração assume um carácter urgente e não pode aguardar uma decisão do juiz. A inovação para o sistema anterior surge na elevação das exigências para que se possa acionar esse dispositivo do levantamento unilateral da suspensão de execução do acto. Há, em nosso entender, uma tentativa do legislador em tornar este regime verdadeiramente excepcional, invertendo a tendência anterior de “enfiar pela janela” do interesse público tudo o que não passava “pela porta” em função da suspensão automática de execução do acto.
Vem então o 128º, nº 1 do novo CPTA dizer que, apesar de ser proibida a execução do acto, esta pode ser iniciada em casos de “estado de necessidade”. Mas o que é, para este efeito, estado de necessidade? Sérvulo Correia entende que a figura do estado de necessidade tem no direito administrativo uma dogmática própria, com pressupostos de aplicação específicos e diferentes face aos que se aplicam nos outros ramos de direito. Nestes termos, o 3º, nº 2 CPA será o afloramento mais paradigmático desta figura no Direito Administrativo (existindo ainda a utilização do estado de necessidade nos termos do 151º, nº 1 do mesmo diploma), pelo que se importará a figura para o 128º, nº 1 do CPTA. Assim, o início de execução do acto administrativo, suspenso por efeito da interposição em juízo da providência cautelar, será válido “desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados doutro modo, tendo os lesados o direito a ser indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da administração”. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, no Código de Procedimento Administrativo comentado, densificam esta fórmula, com recurso aos seguintes requisitos: i) Ocorrência de factos graves e anormais, em circunstâncias excepcionais; ii) Existência de um perigo iminente para o interesse público; iii) impossibilidade de fazer face àqueles factos pelos meios normais da legalidade; e iv) Que a situação de necessidade não tenha sido provocada por culpa do órgão que agora pretende actuar em estado de necessidade.
A respeito do estado de necessidade diz Rui Guerra da Fonseca que este é, na verdade, uma exigência constitucional em momentos em que, reunidos os respectivos pressupostos, o estrito cumprimento da legalidade administrativa é prejudicial aos administrados de modo incompatível com a lei fundamental, com a própria ideia de direito que lhe subjaz.
Facilmente se percebe, pois, que a fórmula em causa se tornou francamente mais exigente (em nosso entender, o suficiente para não ser invocada de forma ligeira e recorrente) face à actual cláusula de “grave prejuízo ao interesse público”. A solução parece interessante, na medida em que não extrema a suspensão a ponto de rigidificar de forma irreversível a dependência de autorização judicial para o seu levantamento, mas (parece) conseguir resolver o problema do abuso da figura do interesse público para resolver todo e qualquer problema de suspensão de execução do acto.  O que se trata, com o estado de necessidade (e conjugando os nºs 1 e 2 do 128º CPTA), é de uma habilitação a ultrapassar o incidente processual de submissão da resolução fundamentada a apreciação judicial, desde que em conformidade com os requisitos da figura aplicada.
A questão que se impõe é, pois, a de aferir (com a evidente incerteza inerente a uma avaliação apriorística) se não será esta figura do estado de necessidade usada do mesmo modo perverso que é actualmente a do interesse público. Parece-nos que não. O conceito de “interesse público” é francamente indeterminado e de difícil contraditório por parte do interessado, deixando (conforme já se explicou) o juiz sem outra alternativa, em caso de fundamentação razoável da administração e de insuficiente resposta do interessado, que não a de aceitar o levantamento da suspensão (ainda que não o pretendesse fazer). O estado de necessidade é um conceito muito mais densificável e já doutrinariamente densificado, cujos pressupostos objectivos de aplicação são controláveis pelo juiz. Esta é uma situação que, naturalmente, reduz a “margem de manobra” da administração para usar de forma inadvertida a figura. Por outro lado, o próprio artigo 128º acaba por reduzir o interesse para a administração em aplicar o dispositivo em análise, visto que da conjugação do nº 5 com o nº 2 resulta que, se pedido o levantamento com urgência, o juiz promoverá uma audiência oral, no prazo de quarenta e oito horas, no termo do qual a decisão é tomada de imediato. Assim, só quando seja desrazoável esperar por esse (tão curto) prazo, a administração, apoiada nos requisitos do estado de necessidade, poderá avançar para a aplicação da figura. Em princípio, parece-nos, tanto a rigidificação dos requisitos como a imposição de uma alternativa altamente expedita deverão ser suficientes para terminar com o “autolevantamento” da suspensão de execução do acto de forma leviana e infundada.

4.    Conclusão


O Projecto do CPTA vem consagrar um sistema de três níveis de urgência. Em primeiro lugar consagra aquela que deverá ser a solução regra: interposição de uma providência cautelar destinada a suspender eficácia de um acto, determina a proibição de execução do mesmo, salvaguardando-se a utilidade da providência. Em segundo lugar existe a situação de, derivado de grave prejuízo para interesse público ou em função de consequências claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, é necessário agir-se com urgência executando-se o acto administrativo suspenso, após decisão judicial tomada em termos bastante breves que o permita. Em terceiro lugar, surgem as situações com urgência máxima, em que é possível começar ou continuar de imediato a execução do acto, desde que verificada uma situação de estado de necessidade administrativo, o que só acontecerá em situações de limite de urgência.

Em nosso entender a “cura” encontrada adequa-se à “patologia” do sistema actual. Efectivamente, perante a necessidade de ponderar vários valores, como seja o periculum in mora da decisão sobre a providência cautelar, o interesse público e ainda os interesses dos contra-interessados, o sistema proposto consegue (em princípio), uma interessante coexistência entre todos eles. Se correctamente aplicado, o sistema deverá permitir que os actos cuja suspensão de execução verdadeiramente lese o interesse público prossigam a sua execução, mas também conseguirá em princípio impedir que a Administração se sobreponha a competências judiciais, devolvendo ao juiz um poder que sempre devia ter sido seu.
Por tudo isto, aplaudimos a solução encontrada e somos bastante optimistas quanto à sua boa aplicação futura.

Tiago Quaresma, nº 22115, Subturma 6




Bibliografia


-       ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. Almedina, 2013

-       MARTINS, Ana Gouveia – A Tutela Cautelar no Contencioso Administrativo (em especial, nos procedimentos de formação de contratos), Coimbra, Coimbra Editora, 2005

-       CALADO, Diogo – O novo regime da suspensão de eficácia de acto administrativo no âmbito das providências cautelares impugnatórias

-       ANDRADE, Vieira de –A Justiça Administrativa (Lições), 11ª Edição, Almedina, 2011

-       FONSECA, Rui Guerra da - A suspensão de eficácia de actos administrativos no projecto de revisão do Código de Procedimento nos Tribunais Administrativos

-       OLIVEIRA, Mário Esteves de / GONÇALVES, Pedro Costa / AMORIM, J. Pacheco de – Código do Procedimento Administrativo, Comentado, Coimbra, Almedina, 2ª edição, 2007


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