Pouco
mais de dez anos volvidos desde a mítica reforma do processo administrativo de
2002/2004 chegou recentemente ao conhecimento do público o Anteprojecto de
revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos
Tribunais Administrativos e Fiscais (embora com atraso, tendo em consideração
que aquando da aprovação do actual CPTA se previa a sua revisão para três anos
depois), pelo que se vislumbra no curto prazo uma revisão da legislação
processual administrativa.
Perante
a iminência descrita torna-se da maior utilidade esmiuçar as diferenças e
evoluções do actual regime para aquele que espreita ao virar da esquina. No
presente texto essa reflexão incidirá sobre o alargamento do âmbito da
jurisdição administrativa, sob a batuta do artigo 4º do ETAF e respectivas
alterações, cuja importância se agiganta levando em linha de conta que o artigo
1º, nº 1 perde a sua característica de cláusula geral e passa a remeter apenas
para os “litígios compreendidos
pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º ”. Se dúvidas
houvesse quanto à pertinência do tema as mesmas dissipar-se-iam ao primeiro
olhar sobre a exposição de motivos do projecto de proposta de lei de revisão
dos dois ditos diplomas onde, no tocante ao ETAF, é descrito o alargamento do
âmbito de competência dos tribunais como a “inovação mais significativa”.
1. O actual regime
No
regime ainda em vigor, a matéria do âmbito de jurisdição dos tribunais
administrativos é regulada pelo ETAF, nos artigos 1º, nº 1 e 4º. O 1º, nº 1
reitera o princípio constitucional de que os tribunais administrativos e
fiscais são competentes para dirimir litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas e fiscais (213º, nº 3 CRP). O critério base da relação jurídica
administrativa é depois realizado pelo artigo 4º, que o vem tornar mais
perceptível. O preceito enuncia uma lista de matérias cuja jurisdição
está a cargo dos tribunais administrativos (4º, nº 1), ou deles excluídos (4º,
nº 2 e 3). Muitas delas já teriam a mesma regulação (dentro ou fora da
jurisdição administrativa) pela cláusula geral do artigo 1º, no entanto existe
um grupo de matérias aludidas no 4º ETAF que, pelo artigo 1º do mesmo diploma,
não pertenceriam à jurisdição administrativa por não corresponderem a relações
administrativas e fiscais. Nessa ausência de convergência tem-se entendido que
o artigo 4º ETAF funciona em especialidade face ao artigo 1º. A eventual
inconstitucionalidade do artigo 4º ETAF naquilo que não coincida com o artigo
1º foi levada algumas vezes ao Tribunal Constitucional, que interpretou o 212º,
nº 3 CRP como um critério tendencial.
Em
suma, no actual quadro legislativo a definição do âmbito de jurisdição dos
tribunais administrativos faz-se pela combinação dos critérios do artigo 4º e
1º do ETAF, que vivem em relação de especialidade, apenas se recorrendo ao 1º,
nº 1 quando a legislação avulsa e os critérios (positivos e negativos) do
artigo 4º não derem qualquer resposta à situação em abordagem.
2. O novo ETAF
A proposta de redacção do novo 1º, nº 1 do ETAF contempla
o seguinte texto: “Os tribunais da jurisdição
administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para
administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito
de jurisdição previsto no artigo 4º deste
Estatuto”, tendo
isto como sinónimo a concentração da delimitação do âmbito de jurisdição
administrativa no artigo 4º.
Passando a ser o centro de toda
a delimitação do âmbito de jurisdição administrativa, facilmente se compreende
que este artigo 4º tenha sofrido consideráveis alterações. Estas foram
claramente no sentido de alargar a jurisdição administrativa a mais matérias,
como se comprovará adiante.
Desde logo é-lhe suprimido o
advérbio “nomeadamente”, mas não se torna por isso num elenco fechado, tendo em
consideração que a alínea q) do nº 1 vem novamente abri-lo ao salvaguardar as “relações jurídicas administrativas e
fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
Esta alínea levanta problemas ao nível da conjugação com as normas avulsas que,
no regime actual, subtraem à jurisdição administrativa litígios que, em
princípio, lhe pertenceriam por consubstanciarem relações jurídicas
administrativas. A questão levanta-se até porque, de todo o artigo 4º, mas
particularmente da alínea em análise, parece ressaltar uma intenção
conformadora do legislador no sentido de prevalecer sobre as normas especiais
anteriores. É entendimento da Professora Ana Fernanda Neves que o enunciado
parece “convocar a necessidade da confirmação ou reavaliação de tais
disposições”. Alerta no entanto a Autora para o facto de as virtualidades
derrogatórias da alínea q) serem “temporalmente limitadas”, isto na medida em
que venham a ser introduzidas pelo legislador novas situações de desvio da
jurisdição administrativa que sejam constitucionalmente aceitáveis. A mesma
encara a possibilidade com naturalidade, atentando no facto de a concretização
de uma reserva de jurisdição administrativa absoluta não ter lugar na
generalidade dos países europeus.
Esta alínea q) faz ainda prova
de que o critério da relação jurídico-administrativa continua a ser o “critério
operativo essencial para delimitar o âmbito da jurisdição administrativa”, no
dizer de Licínio Lopes Martins.
Ao nível das novidades trazidas
pelo novo regime, e acompanhando o recém citado Autor, começaríamos por dizer
que em alguns casos estas correspondem a uma evolução pré-anunciada da reforma
de 2002, em função de corresponderem à objectivação de posições doutrinais e/ou
jurisprudenciais quanto ao alargamento do âmbito da jurisdição administrativa a
situações como: i) as actuações ou situações administrativas constituídas em
vias de facto, sem título que as legitime; ii) o pagamento de indemnizações
decorrentes da imposição de sacrifícios por razões de interesse público, assim
como da afectação do conteúdo essencial de direitos; iii) a fixação da justa
indemnização por expropriações, servidões e outras restrições de utilidade
pública; ou ainda iv) ao alargamento de competência dos tribunais administrativos
às situações de concursos de causas envolvendo entidades públicas e privadas
(novo nº 2 do artigo 4º).
Noutros casos as novidades
serão clarificadoras e sistematizadoras, tomando em linha de conta que o que
agora se introduz no artigo 4º já encontra previsão no direito vigente: é o
caso da responsabilidade civil extracontratual pelo exercício da função
política.
A novidade mais expressiva está
no alargamento da jurisdição administrativa a algumas matérias do direito
contra-ordenacional, passando a ser objecto de impugnação nos tribunais
administrativos as decisões da administração em matéria de ambiente,
ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado.
Esta opção legislativa é justificada na exposição de motivos: “porque aos tribunais administrativos
deve ser conferida a competência para julgar todos os litígios que, pela sua
natureza, são verdadeiras relações jurídico-administrativas, optou-se por fazer
ingressar na jurisdição administrativa matérias que, só por razões meramente
pragmáticas e já sem fundamento histórico, estavam atribuídas à jurisdição
comum.”
O novo ETAF devolve ainda à
jurisdição administrativa litígios que estavam subtraídos ao seu âmbito,
nomeadamente a fiscalização dos actos administrativos do presidente do STJ e do
Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente (actuais alíneas b) e c) do
nº 3 do artigo 4º, que opera uma delimitação negativa de jurisdição
administrativa).
O alargamento do âmbito de
jurisdição administrativa demonstra-se também por um argumento quantitativo: se
o actual regime contempla treze alíneas no artigo 4º, o proposto apresenta
dezassete, entre elas a concentração numa única alínea da competência em
matéria de contratos (evitando até algum conflito positivo entre a alínea b)
parte final e alínea e) do actual regime, que assim se juntam com a alínea f)
formando um só preceito, agora plasmado na nova alínea e) ). Registam-se ainda
algumas alterações de redacção e a supressão (pela sua decorrência lógica) da
alínea n) do 4º, nº 1.
3. Um breve olhar sobre as novidades
3.1. A actividade administrativa “em via de facto”: Trata-se de um
litígio atinente a uma relação jurídica materialmente administrativa e não de
direito privado. O exemplo mais típico é o da ocupação/utilização por entidades
expropriantes de bens imóveis não abrangidos pela declaração de utilidade
pública para a construção de obras públicas, mas fisicamente contíguos aos que
por aquela sejam abrangidos. A administração expropriante age em via de facto
(ou seja, sem título jurídico). Acontece que o resultado da actividade
administrativa aqui em causa não deixa de se traduzir numa obra pública, desde
logo por aquele resultado constituir um benefício económico para a
Administração expropriante. Por isto, daqui em diante, estas matérias
pertencerão à jurisdição administrativa.
3.2. Responsabilidade civil das entidades públicas e limitação à regra
da exclusão dos litígios dos contratos individuais de trabalho: A este
título refira-se a adição ao elenco da alínea g) da categoria “trabalhadores”,
que vem consequentemente contrair a limitação do agora nº 4 alínea b): em
matéria de responsabilidade civil extracontratual os litígios serão
administrativos e por estes tribunais julgada.
A este
nível destaca-se ainda a substituição
da expressão “sujeitos privados” por “demais sujeitos”, o que parece querer,
por um lado, afastar conflitos de jurisdição associados à determinação da
qualificação do sujeito ou entidade demandada e, por outro lado, garantir a
inclusão de toda a “actividade pública lesiva”, designadamente dos órgãos do
Estado não integrados na Administração Pública, de acordo com as exigências do
Direito europeu.
3.3. Os “contratos celebrados nos termos da
legislação sobre contratação pública” e a limitação à regra da exclusão dos
contratos privados da administração: no actual modelo, o legislador evitou
a expressão “contrato administrativo” e recusou o critério do sujeito (que só
vingou para a responsabilidade), tendo então apostado numa multiplicidade de
critérios, ou seja, por um nível maior de pormenor. Trata-se das actuais
alíneas b) parte final, e) e f), que surgem na proposta condensadas numa só: a
alínea e). A nova disposição refere-se à “validade dos actos pré-contratuais;
“interpretação, validade e execução de contratos administrativos” e “de
quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre
contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras
entidades adjudicantes”. A primeira impressão é de que, salvo os contratos celebrados nos termos da
contratação pública, os contratos de direito privado celebrados pelas entidades
públicas ficam fora da jurisdição administrativa, embora quando esteja em causa
a sua invalidade por consequência do processo formativo, esta seja de apreciar
nos tribunais administrativos (em função dos fundamentos do pedido). Em segundo
lugar, verifica-se que o legislador faz menção à figura do contrato
administrativo (artigo 1º, nº 1 CCP), tendo perdido os “complexos” em fazê-lo
provavelmente em função do desenvolvimento que o Código dos Contratos Públicos
dá à questão.
3.4. As “situações de concurso” de
entidades públicas e privadas: consiste na previsão do 4º nº 2,
nomeadamente quanto à “competência
para dirimir os litígios nos quais devem ser conjuntamente demandadas entidades
públicas e privadas entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade,
designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos
danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.
Com efeito, evita-se a “duplicação de acções judiciais” e garante-se a
sua plena intervenção numa causa na qual têm decisivo interesse.
3.5. A indemnização pelo sacrifício e a justa indemnização por
expropriações, servidões e outras restrições de utilidade pública: Estes
são litígios historicamente reservados à jurisdição comum, no entanto, conforme
salienta Ana Fernanda Neves, o seu desvio da jurisdição administrativa “deixou
de se justificar”. A Autora acrescenta ainda que a actual solução é coerente
com o artigo 37º, nº 2, alínea g) CPTA, que prevê a possibilidade de acção
judicial de “condenação ao pagamento de indemnizações decorrentes da imposição
de sacrifícios por razões de interesse público” assim como por “afectação do
conteúdo essencial de direitos”.
3.6. A actividade administrativa sancionatória:
as contra-ordenações: Passam a
estar incluídas no âmbito da jurisdição administrativa as “impugnações
judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito
dos ilícitos de mera ordenação social, por violação de normas de direito
administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo,
património cultural e bens do Estado”. A actividade de aplicação de coimas
é, material e procedimentalmente, uma genuína relação jurídica administrativa.
Além disso, pelo menos nas matérias referidas, há uma relação de especialidade
que favorece e aconselha a atribuição de tais litígios aos tribunais
administrativos. Acrescente-se, com Licínio Lopes Martins, que que as razões
históricas que sustentavam o afastamento desta matéria da jurisdição
administrativa já não se verificam hoje.
Ainda assim, frize-se o alerta da professora
Ana Fernanda Neves no sentido de que a generalidade dos litígios relativos a
processos de contraordenação continuam fora da esfera da jurisdição administrativa,
desde logo pela existência do tribunal da concorrência, regulação e supervisão.
Sobre esta
matéria alerta ainda o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e
Fiscais para o facto de ser necessária preparação dos juízes dos tribunais
administrativos para apreciar litígios desta natureza, em função dos seus
pontos de contacto quer com o Processo Penal, quer com o regime geral das
contra-ordenações. É ainda opinião do mesmo Conselho que esta
alínea trará aos tribunais um aumento substancial do volume de processos.
3.7. A delimitação negativa:
O actual nº
2 passa a ser o novo nº 3 do artigo 4º do ETAF e, assim, a delimitação negativa
é feita nos mesmos moldes em que se tem processado (incluindo o seu carácter
exemplificativo, que se mantém). Naquele que passa a ser o nº 4, anterior nº 3,
destaque para o facto de serem suprimidas duas alíneas (b) e c) ), reduzindo
por isso o âmbito da delimitação negativa da jurisdição administrativa, que
passa a conter em si a fiscalização dos actos materialmente administrativos
praticados pelo presidente do STJ e pelo Conselho Superior da Magistratura e
seu presidente.
4. Conclusões
É
inquestionável que é ambição desta revisão do ETAF alargar o âmbito da
jurisdição administrativa. Além de inegavelmente o conseguir, esta evolução
legislativa contempla ainda uma interessante clarificação do actual regime.
Suprime-se a (desnecessária) relação de subsidiariedade do artigo 4º face ao
artigo 1º, nº 1; é tida a prudência de contemplar uma cláusula geral residual,
permitindo dar resposta às relações jurídico-administrativas que se enquadram
nos critérios especiais estipulados no preceito cuja efectividade me parece
mais conseguida do que o era antes pelo advérbio “nomeadamente”; afastam-se
definitivamente alguns equívocos de redacção do 4º e, finalmente e mais
importante, serão de agora em diante atribuídas mais matérias aos tribunais
administrativos do que eram no passado.
A propósito
deste alargamento o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais
manifesta a sua preocupação com a capacidade de resposta dos tribunais ao
alargamento (pedindo inclusivamente o diferimento da entrada em vigor das
alíneas k) e n), respeitantes às duas grandes novidades da indemnização por
expropriação e da matéria contraordenacional, para o ano de 2017), mas a título
pessoal e numa perspectiva apriorística creio que se tratará de excesso de zelo
da parte do Conselho. Mais do que alargar em número esta reforma, parece-me,
vem alargar em coerência e actualização, daí ser bem-vinda.
Bibliografia
- ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo.
Almedina, 2013
- GUERREIRO, Sandra – “O âmbito da jurisdição administrativa na revisão
do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais”
- MARTINS, Licínio Lopes – “Âmbito da jurisdição administrativa no
Estatuto dos Tribunais Amdministrativos e Fiscais revisto”
- NEVES, Ana Fernanda – “Alargamento do âmbito da jurisdição
administrativa”
- http://www.cstaf.pt/Pareceres/CSTAF.Parecer.Revisão%20ETAF_CPTA.pdf
Tiago Quaresma, Subturma 6, Nº
22115
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