sábado, 1 de novembro de 2014

Ministério Público: do papel para a realidade do contencioso administrativo




Breve enquadramento histórico:

Antes de fazer uma análise actualista do Ministério Público no plano do Contencioso Administrativo em Portugal, cumpre abordar (como forma de enquadramento histórico) o surgimento deste órgão. O Decreto de 1832, visando o funcionamento próximo dos tribunais comuns, fez surgir assim o Ministério como órgão no Contencioso Administrativo através de uma vertente funcional e não tanto orgânica.

Ao referido órgão competia:
- a transmissão por escrito de uma opinião fundamentada, opinião essa que seria mencionada no final do processo pelo relator;
- a função de responder em todos os processos, mesmo que não fosse parte;
- a promoção do cumprimento das leis;
- a disposição da Acção Pública (que, nas palavras do Professor Sérvulo Correia, se traduz no “…poder de agir em juízo administrativo, titulado por um órgão do Estado ou outra pessoa colectiva inserida na Administração, dirigido à obtenção de uma pronúncia jurisdicional de mérito sobre uma pretensão de repressão da violação da legalidade democrática numa situação determinada e concreta ou devida à atividade normativa da Administração”) contra deliberações ilegais das câmaras municipais.

Findando o século XIX, as funções do Ministério Público já denotavam uma certa complexidade, assistindo-se a um dualismo orgânico relativamente às suas funções: por um lado, existiam os Agentes directamente provindos da administração; pelo outro, os Magistrados encontravam-se inseridos num corpo especializado e hierarquizado.
No entanto, apesar do progresso que se sentia no plano das funções, relativamente à natureza dos interesses prosseguidos era necessário colmatar a indefinição da mesma, sendo que o interesse na preservação da legalidade administrativa defendia-se através da acção pública.
Indo ao encontro do pensamento do Professor supra citado, a ambiguidade existente na participação do Ministério Público no Contencioso Administrativo manteve-se até aos anos 1984-1985. O Ministério Público aqui apenas intervinha na defesa da legalidade quando fosse parte ou em representação do Estado.

No plano constitucional, mormente a partir da revisão de 1989 surge, através do princípio da tutela jurisdicional e plena, o direito de acesso à justiça administrativa como José Carlos Vieira de Andrade enuncia de um “direito fundamental dos administrados a uma proteção jurisdicional efetiva (substancial e procedimental) ”.


Da reforma aos dias de hoje:

O Ministério Público, enquanto sujeito do processo administrativo, é dotado de uma elevada importância em virtude dos diversos papéis que desempenha nos tribunais administrativos, nomeadamente o seu papel representativo do Estado, como promotor da realização do interesse público e como defensor da legalidade democrática.
A legalidade democrática genericamente traduz-se pelo conjunto de normas constitucionais e outros actos normativos materiais que se desenvolve através de uma prática permanente de todos os órgãos e agentes do Estado e também dos cidadãos.
Cabe, assim, ao Ministério Público a verificação de que a função jurisdicional está a ser exercida em conconrdância com a Constituição e a Lei Administrativa, ou seja, de resolver conflitos e defender interesses suscitados entre os órgãos do Estado ou órgãos e agentes do Estado e da Administração Pública e os particulares - artigo  51º do ETAF.

No anterior sistema processual, o Ministério Público tinha uma intervenção de cariz processual, permitindo-lhe arguir nulidades, suscitar a regularização da petição inicial e requerer diligências instrutórias.

A reforma do Contencioso Administrativo estabeleceu-se através de um modelo subjetivista, consagrando o processo administrativo um processo de partes e que expande os poderes decisórios do juíz perante a administração, aumentando assim a perda de algum excesso de mediatismo do Ministério, que contribui para o equilíbrio dos poderes dos intervenientes processuais.

Não obstante, também existem apontamentos objectivistas no regime, no tocante à legitimidade processual activa (referente à impugnação de atos administrativos) e quantos aos poderes que continuam a reconhecer-se ao Ministério Público como figura auxiliadora da justiça na defesa da legalidade (relativamente à impugnação de normas).
Através da leitura do artigo 11º/2 1ª parte, retira-se que o Ministério Público representa o Estado sendo que, por vezes, o faz de seu advogado como o Professor Mário Aroso de Almeida exemplifica, nas acções administrativas comuns que sejam propostas contra o Estado em matéria de responsabilidade civil ou relativamente a contratos.
O artigo 85º do CPTA altera fortemente o modelo tradicional de intervenção do Ministério Público nos processos em que este não se figure como parte, concedendo a este o poder de intervir nos processos administrativos em que não seja parte e que sigam a forma de acção administrativa especial. Segundo Aroso de Almeida, tal intervenção é justificada em função da matéria que esteja em causa “… em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº2 do artigo 9º do CPTA.”

Estatuto do MP:

Ao introduzir a questão relativa ao Estatuto do Ministério Público (EMP) não se pode deixar de o fazer em paralelo com a aplicação da C.R.P., começando pelo artigo 219º/1 CRP que indica que compete ao Ministério Público “…representar o Estado, defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.

Pela leitura do artigo 20º/1 da C.R.P. observa-se que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais com o propósito da defesa dos seus direitos e interesses não podendo a justiça ser negada por insuficiência de meios económicos.

Conjugando o artigo 219º C.R.P. com o artigo 51º ETAF e artigo 3º/1 do EMP, retira-se as diversas funções relevantes no plano administrativo do Ministério Público. 
Assim, retiramos como funções: a defesa da legalidade (através da fiscalização da constitucionalidade dos actos normativos); a representação do Estado e outros entes públicos assim como ausentes e incapazes; e, a defesa dos grandes interesses colectivos e difusos.

Percorrendo mais detalhadamente os vários preceitos legais do CPTA referentes aos poderes do Ministério Público, constata-se que cabe a este, pela sua legitimidade activa, iniciativa processual.

Como primeira demonstração surge a designada “Acção Pública”, que legitima o Ministério a:
- impugnar actos administrativos e normas (artigos 55º/1 b) e 73º/3);
- formular pedidos relacionados com a validade e execução de contratos (artigos 40º/1 b) e nº2 c));
- defender valores e bens comunitários, numa “acção popular pública” (artigo 9º);
- pedir intimações para informações, consultas e passagem de certidões (artigo 104º/2);
- assumir a posição de autor, nos processos de impugnação de actos iniciados por particulares, como garantia da prossecução do processo, em caso de desistência (artigo 62º).

Em segundo lugar, como “Auxiliar de Justiça” (amicus curiae), o Ministério Público intervindo, ainda que de forma imparcial, na defesa de direitos fundamentais, valores comunitários ou interesses públicos especialmente relevantes, dispõe de poderes processuais importantes nas acções administrativas especiais iniciadas por particulares. 
Detém o poder de pronúncia na fase preparatória sobre o mérito da causa (incluindo poder de arguição de vícios não invocados pelo impugnante) e, alguns poderes de iniciativa no âmbito da instrução (artigo 85º) e nos recursos jurisdicionais, onde dá parecer sobre o mérito do recurso (artigo 146º).

Como terceiro ponto demonstrativo dos seus poderes, temos a Representação do Estado, nomeadamente nas acções administrativas em que o mesmo é parte, contudo intervindo aqui como defensor da legalidade (artigo 11º/2).

Por último, é da competência ainda do Ministério, a Representação de outras pessoas colectivas públicas ou de outros interessados, como por exemplo os incapazes, incertos ou ausentes e os trabalhadores e as respectivas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social – artigo 3º a) e d) do EMP.

Após o supra exposto, no que diz respeito ao EMP deve ter-se especial atenção aos artigos 3º, 5º e 53º do EMP, pois demonstram-se ser os mais importantes nesta temática.
No tocante ao artigo 3º/º1, alínea a) este enuncia que cabe ao Ministério Público “representar o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta”.
Já o artigo 5º do EMP regula a Intervenção Principal e Acessória do Ministério Público. Por Intervenção Principal entende-se aquela em que o Ministério representa ou é o principal representante da parte; por Intervenção Acessória entende-se aquela pelo qual o Ministério apenas tem de promover o que tiver por conveniente, para zelar pelos interesses que lhe são confiados.

Conclusão:
 
Em suma, há que referir que o Ministério Público enquanto órgão continua a deter importantes poderes de iniciativa e intervenção processual para a defesa da legalidade, do interesse público e de bens comunitários ou valores socialmente relevantes, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, e os bens do Estado, regiões autónomas e das autarquias locais (como supra mencionado), mas a sua actuação no âmbito da Acção Pública tem-se verificado cada vez menos, sendo que na prática a actuação do Ministério Público através de Acções Públicas é quase inexistente.
Como razões justificativas para tal facto podem apontar-se o défice de apoios técnicos, a falta de um adequado modelo de organização, falta de formação profissional e de cooperação.


Ana Rapoula, Nº 20968, 4º ano subturma6



Bibliografia
Andrade, José Carlos Vieira de; A Justiça Administrativa, Almedina, 2ª edição, 2007.

Almeida, Mário Aroso de; Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010.

Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2009, 2ª edição.

Correia, José Manuel Sérvulo; A Reforma do Contencioso Administrativo e as funções do Ministério Público – Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, 2001.

Dias, Mário Gomes; Mendes, Carlos Sousa; Ministério Público que Futuro, 2013, 2ª edição.

Marçalo, Paula; Estatuto do Ministério Público Anotado, Coimbra Editora, 2011.

Miranda, Jorge; Medeiros, Rui; Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007.




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