A Competência Internacional da
Jurisdição Administrativa
§1.
Considerações
gerais; §2. O âmbito da jurisdição
administrativa;
§3.
A competência
territorial no CPTA; §4. Que solução?
§5.
Reflexões finais
§1. Considerações gerais
Encontrando-nos a estudar matérias de Direito
Internacional Privado e Contencioso Administrativo, indagámo-nos como seriam
tratados pela jurisdição administrativa os litígios que apresentem elementos de
conexão com ordens jurídicas estrangeiras, suscitando assim um problema de
competência internacional. Por estranho que possa parecer, não obtivemos
qualquer resposta, sendo esta questão completamente ignorada pelo ordenamento jurídico administrativo – é como
se o problema nem sequer se colocasse. A verdade, todavia, é que o problema
existe, razão pela qual nos propomos nesta sede a tratá-lo. Destarte, procuraremos
em primeiro lugar conhecer e compreender o âmbito da jurisdição administrativa (§2.), observando de seguida as regras
de competência territorial resultantes do actual Código de Processo nos
Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) (§3.). Estabelecida a base da nossa análise, discutiremos a essa luz
as soluções de que dispomos (§4.), terminando,
enfim, com as nossas breves reflexões sobre o tema (§5.).
§2. O âmbito da jurisdição
administrativa
O
ponto de partida (e chegada) nesta matéria são os arts. 1.º e 4.º do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF). O art. 1.º do ETAF
traduz-se aqui numa cláusula geral e, essencialmente, reproduz quanto é dito no
art. 212.º, n.º 3, da Constituição (doravante, CRP). O art. 4.º do ETAF, por
seu turno, apresenta-se, nos seus vários números e alíneas, como critério
material concretizador do disposto no art. 1.º. Vejamos como tudo se passa.
O
art. 212.º, n.º 3, da CRP (e por conseguinte o art. 1.º do ETAF) consagra como
critério de atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais,
a relação jurídica administrativa, que é, no fundo, a relação jurídica regulada
pelo Direito Administrativo. Ou seja, aquelas relações onde figurem prerrogativas
de autoridade, interesse público, entre outros. Contudo, este critério não é
isento de críticas. É que, passe o pleonasmo, consagra demasiados critérios que
remetem para a destrinça entre direito público e direito privado. É por essa
razão que o critério material do art. 4.º do ETAF é tão importante, ao
concretizar as situações abrangidas pelo art. 212.º da CRP, clarificando assim
o seu âmbito. Não obstante essa sua função, o art. 4.º, ao concretizar, por
vezes diz demais, indo para além daquilo que (supostamente) seria o espírito da
norma do arts. 212.º/3 da CRP e 1.º do ETAF, o que levou a questionar se o
mesmo não seria por essa razão inconstitucional. A doutrina tem entendido que
não[1],
uma vez que se trata de uma norma especial. Ademais, o Tribunal Constitucional[2]
veio já considerar o critério do art. 212.º/3 da CRP como tendencial, admitindo
desvios ao mesmo.
Olhando
agora para a matéria da competência internacional, poderíamos ser conduzidos a
pensar que o ETAF, mormente os preceitos citados, poderiam dar resposta a esta
questão, consagrando algum tipo de regra a esse respeito. Não é assim. As
regras de que o ETAF dispõe são (somente) regras relativas a competência
interna, donde da conjugação dos seus arts. 1.º, 4.º, 24.º, 37.º e 44.º resulta
a distribuição de competência pelos diversos tribunais administrativos. Mas,
não obstante o ETAF não responder, a figura da jurisdição (lato sensu) levanta outro tipo de problemas que em sede de
competência internacional importa observar.
Como
indica Paula Costa e Silva[3]«a concretização de uma competência primária
assume, no contencioso administrativo, um grau de complexidade bem elevado
(...). Os princípios de direito público internacional impõe a ponderação de
limites ao exercício da jurisdição (...).». Os limites a que a autora se
refere estão intimamente ligados com o princípio da imunidade jurisdicional do
Estados, resultante da regra costumeira do par
in parem non habet imperium ne iurisdictionem e segundo o qual nenhum
Estado soberano pode ser submetido, contra a sua vontade, à condição de parte
perante o foro doméstico de outro Estado. Não querendo desenvolver muito esta temática, importa apenas notar que a
imunidade jurisdicional dos Estado é um corolário do princípio da igualdade
entre Estados (positivado no art. 2.º, n.º1, da Carta das Nações Unidas), que
bem se compreende tendo em conta a manutenção das (boas) relações diplomáticas.
Tradicionalmente, diz-nos Eduardo Correia
Baptista[4],
defendia-se que os Estados gozavam de uma imunidade absoluta perante os
tribunais de outros Estados. Esta concepção absoluta da imunidade
relacionava-se com o dogma da absoluta territorialidade do Direito Público, do
qual resultava que «os órgãos de
aplicação de um Estado só aplicariam o Direito público interno.»[5].
Ambas estas concepções evoluiriam e hoje, relativamente à regra da imunidade, é
comummente aceite que a mesma pode sofrer limitações, adoptando-se assim uma
concepção de imunidade restrita, pelo que os Estados só gozam de imunidade
relativamente aos actos praticados ius
imperii, mas já não quanto aos actos ius
gestionis. Por outro lado, admite-se também que um Estado possa renunciar à
sua imunidade, constituindo-se, deste modo, duas excepções à absolutização da
imunidade do Estados, ainda que, em caso de dúvida fundada, a regra prevaleça.[6]Dito
isto, e retomando a nossa análise, importa agora perceber qual a relação entre
a aplicação de direito público, a jurisdição e a competência. Entende Ehlers[7]que
a distinção entre os pressupostos da admissibilidade do exercício de jurisdição
não é comum nos tribunais administrativos, uma vez que dificilmente uma acção
administrativa é instaurada perante um tribunal internacionalmente
incompetente, o que resulta da circunstância da jurisdição dos tribunais
administrativos estar ordenada à aplicação do direito público do Estado, como
aliás já tivemos oportunidade de constatar. E isto é o mesmo que dizer que os
tribunais portugueses tendem a ignorar esta questão, o que se pode comprovar
pela leitura do Ac. do STA n.º4/2010. Se é assim, então esta questão perde a
sua importância, adquirindo a competência territorial o principal foco do
problema e que analisaremos de seguida.
§3. A competência territorial no
CPTA
O
CPTA regula a competência territorial dos tribunais administrativos nos seus
arts. 16.º a 22.º, dispondo para o efeito o seguinte: (i) o art. 16.º do CPTA
consagra a regra geral nesta matéria, que é, ao contrário do que sucede no Código
de Processo Civil (doravante, CPC), a residência habitual do autor; (ii) nos
arts. 17.º a 20.º do CPTA, encontram-se definidas regras especiais, relativas a
matérias atinentes a bens imóveis, responsabilidade civil, contratos, entidades
públicas, etc.; (iii) quanto ao art. 21.º do CPTA, é aqui regulada a competência
territorial quando se trate da cumulação de pedidos, uma regulação que,
todavia, importa conjugar com art. 18.º, n.º 2, do mesmo diploma; (iv) por
último, o art. 22.º do CPTA fixa a regra supletiva no caso de não ser possível
determinar a competência territorial nos termos dos arts. 16.º a 21.º do CPTA.
Numa primeira leitura não se levantam grandes dúvidas neste campo, estes arts.
parecem bastante claros nas suas previsões, na mesma medida em que parece
igualmente claro que nenhum terá aplicação em matéria de competência
internacional. Contudo, uma leitura do CPTA anotado aponta para um caminho
diferente, dando Mário Aroso de Almeida e
Fernandes Cadilha como exemplo de aplicação do art. 22.º do CPTA o caso
das situações plurilocalizadas em que o demandante seja estrangeiro ou, sendo
português, tenha domicílio no estrangeiro e não tenha residência habitual em
Portugal. Abre-se então a porta para uma potencial regulação pelo CPTA da
competência internacional da jurisdição administrativa. Vejamos se assim é.
§4. Que solução?
Tendo em conta o que se acabou de
dizer, apresentam-se, em abstracto, três soluções susceptíveis de dar resposta
a esta lacuna de regulação, de acordo com a doutrina que nos é apresentada por Paula Costa e
Silva[8]
: (i) a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC; (ii) a aplicação conjugada das
regras dos arts. 62.º e 63.º CPC e do art. 22.º do CPTA; (iii) a aplicação isolada
do art. 22.º do CPTA.
(i)
Aplicação
dos arts. 62.º e 63.º do CPC:
a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC é, por força do art. 1.º do CPTA,
aquela que se apresenta mais evidente e de comum acordo com aquilo que parece
ter sido o espírito do legislador – não havendo regulação expressa no CPTA
aplicar-se-iam as normas do CPC, em termos idênticos à da sua aplicação no contencioso
dos tribunais comuns.
(ii)
Aplicação
conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC e do art. 22.º do CPTA: da aplicação, sem mais, deste
conjunto de arts. resultaria que os tribunais administrativos portugueses
seriam, por força da norma subsidiária do art. 22.º do CPTA, competentes sempre
que falhe a concretização de um critério de competência interna, ou seja, poderiam
decidir qualquer conflito plurilocalizado, ainda que este não apresente nenhuma
conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. Uma solução claramente
incomportável. Contudo, se a esta solução se acrescentasse o requisito de uma
conexão relevante com a ordem jurídica interna os seus contornos já seriam
outros. É que se for esse o caso, entende a autora que já é admissível a
aplicação conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC com o art. 22.º do CPTA.
(iii)
Aplicação
isolada do art. 22.º do CPTA:
a aplicação isolada do art. 22.º do CPTA resultaria da característica de dupla funcionalidade
das regras de competência interna, segundo a qual se deve ter por concretizada
uma competência internacional sempre que se verifique a concretização de uma
competência territorial interna. É este o caso do art. 22.º. Além disso, esta
solução é defensável designadamente para este tipo de casos em que não foram
contempladas regras de competência internacional.
A esta luz, vem adoptar a supra
referida autora a terceira solução, sustentando que assim é porque não só não
se levantam obstáculos à tese da dupla funcionalidade, como, por essa razão, o
recurso às regras do CPC é desnecessário. O art. 22.º do CPTA ganha tornar-se-ia,
por esta razão, a norma melhor posicionada para dar resposta a litígios que suscitassem
questões de competência internacional.
§5. Reflexões finais
Aqui chegados, é agora oportuno
deixar algumas das nossas considerações sobre o que acabámos de tratar. Começando
pela a ausência de regulação desta matéria, é de lamentar que assim seja.
Acreditamos que a questão não seja a mais recorrente nos tribunais
administrativos mas, não obstante ser esse o caso e em face do mau tratamento
que estes lhe concedem, não era assim tão descabido regulá-la, o que
lamentavelmente o novo CPTA se olvidou de fazer. Por outro lado, e olhando
agora para as soluções apresentadas no ponto anterior, vemo-nos obrigados a (humildemente)
discordar de Paula Costa e Silva. Não que não compreendamos o seu raciocínio, porque o compreendemos, mas
sim porque por razões de praticabilidade parece-nos mais directa, ou se se
quiser, menos complexa e/ou rebuscada, a solução de admitir que quanto a
matérias de competência internacional, atenta a falta de regulação do CPTA, se
observe o que dispõe o CPC, isto porque os arts. 62.º e 63.º do CPC consagram
critérios para admitir a competência internacional dos tribunais portugueses, o
que não acontece no caso do art. 22.º do ETAF vir a ser aplicado. Ademais, este
art. não deixa de ser um critério recurso, o que, por outro lado, levanta ainda
a questão da sua hiper-exorbitância, à semelhança daquilo que acontece no caso
da segunda solução que nos é apresentada. Enfim, resta apenas a esperança de
que um dia esta questão possa vir a ser objecto da atenção do legislador, atento
aquilo que nos é dito pela velha máxima: "mais vale prevenir do que
remediar".
Tiago
Guerreiro | 22227 | Subturma 6
[1]
Vide, entre outros, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina,
2013, p. 157
[2]
Cfr. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 211/2007 e
302/2008 cit. apud Mário Aroso de
Almeida, Manual (...), p. 158
[3]
Cfr. Paula Costa e Silva, Jurisdição e competência internacional dos
tribunais administrativos: a propósito do Acórdão do STA n.º4/2010, Cadernos de Justiça Administrativa,
Novembro/Dezembro 2010, p. 5
[4]
Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, 2.ª Ed., Vol. I, Almedina,
2004, p. 142
[5]
Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II,
Almedina, 2013, pp. 28 e 29
[6]
Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional (...), pp. 143 e 144, que, sustenta,
contudo, que a primeira das excepções não é, em bom rigor, uma excepção.
[7]
Cit. apud. Paula Costa e Silva, Jurisdição (...), p. 6
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