domingo, 7 de dezembro de 2014

A Competência Internacional da Jurisdição Administrativa

§1. Considerações gerais; §2. O âmbito da jurisdição administrativa;
§3. A competência territorial no CPTA; §4. Que solução?
§5. Reflexões finais


§1. Considerações gerais
 Encontrando-nos a estudar matérias de Direito Internacional Privado e Contencioso Administrativo, indagámo-nos como seriam tratados pela jurisdição administrativa os litígios que apresentem elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras, suscitando assim um problema de competência internacional. Por estranho que possa parecer, não obtivemos qualquer resposta, sendo esta questão completamente ignorada pelo  ordenamento jurídico administrativo – é como se o problema nem sequer se colocasse. A verdade, todavia, é que o problema existe, razão pela qual nos propomos nesta sede a tratá-lo. Destarte, procuraremos em primeiro lugar conhecer e compreender o âmbito da jurisdição administrativa (§2.), observando de seguida as regras de competência territorial resultantes do actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) (§3.). Estabelecida a base da nossa análise, discutiremos a essa luz as soluções de que dispomos (§4.), terminando, enfim, com as nossas breves reflexões sobre o tema (§5.).

§2. O âmbito da jurisdição administrativa
O ponto de partida (e chegada) nesta matéria são os arts. 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF). O art. 1.º do ETAF traduz-se aqui numa cláusula geral e, essencialmente, reproduz quanto é dito no art. 212.º, n.º 3, da Constituição (doravante, CRP). O art. 4.º do ETAF, por seu turno, apresenta-se, nos seus vários números e alíneas, como critério material concretizador do disposto no art. 1.º. Vejamos como tudo se passa.
O art. 212.º, n.º 3, da CRP (e por conseguinte o art. 1.º do ETAF) consagra como critério de atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais, a relação jurídica administrativa, que é, no fundo, a relação jurídica regulada pelo Direito Administrativo. Ou seja, aquelas relações onde figurem prerrogativas de autoridade, interesse público, entre outros. Contudo, este critério não é isento de críticas. É que, passe o pleonasmo, consagra demasiados critérios que remetem para a destrinça entre direito público e direito privado. É por essa razão que o critério material do art. 4.º do ETAF é tão importante, ao concretizar as situações abrangidas pelo art. 212.º da CRP, clarificando assim o seu âmbito. Não obstante essa sua função, o art. 4.º, ao concretizar, por vezes diz demais, indo para além daquilo que (supostamente) seria o espírito da norma do arts. 212.º/3 da CRP e 1.º do ETAF, o que levou a questionar se o mesmo não seria por essa razão inconstitucional. A doutrina tem entendido que não[1], uma vez que se trata de uma norma especial. Ademais, o Tribunal Constitucional[2] veio já considerar o critério do art. 212.º/3 da CRP como tendencial, admitindo desvios ao mesmo.
Olhando agora para a matéria da competência internacional, poderíamos ser conduzidos a pensar que o ETAF, mormente os preceitos citados, poderiam dar resposta a esta questão, consagrando algum tipo de regra a esse respeito. Não é assim. As regras de que o ETAF dispõe são (somente) regras relativas a competência interna, donde da conjugação dos seus arts. 1.º, 4.º, 24.º, 37.º e 44.º resulta a distribuição de competência pelos diversos tribunais administrativos. Mas, não obstante o ETAF não responder, a figura da jurisdição (lato sensu) levanta outro tipo de problemas que em sede de competência internacional importa observar. 
Como indica Paula Costa e Silva[3]«a concretização de uma competência primária assume, no contencioso administrativo, um grau de complexidade bem elevado (...). Os princípios de direito público internacional impõe a ponderação de limites ao exercício da jurisdição (...).». Os limites a que a autora se refere estão intimamente ligados com o princípio da imunidade jurisdicional do Estados, resultante da regra costumeira do par in parem non habet imperium ne iurisdictionem e segundo o qual nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra a sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado. Não querendo desenvolver muito esta temática, importa apenas notar que a imunidade jurisdicional dos Estado é um corolário do princípio da igualdade entre Estados (positivado no art. 2.º, n.º1, da Carta das Nações Unidas), que bem se compreende tendo em conta a manutenção das (boas) relações diplomáticas. Tradicionalmente, diz-nos Eduardo Correia Baptista[4], defendia-se que os Estados gozavam de uma imunidade absoluta perante os tribunais de outros Estados. Esta concepção absoluta da imunidade relacionava-se com o dogma da absoluta territorialidade do Direito Público, do qual resultava que «os órgãos de aplicação de um Estado só aplicariam o Direito público interno.»[5]. Ambas estas concepções evoluiriam e hoje, relativamente à regra da imunidade, é comummente aceite que a mesma pode sofrer limitações, adoptando-se assim uma concepção de imunidade restrita, pelo que os Estados só gozam de imunidade relativamente aos actos praticados ius imperii, mas já não quanto aos actos ius gestionis. Por outro lado, admite-se também que um Estado possa renunciar à sua imunidade, constituindo-se, deste modo, duas excepções à absolutização da imunidade do Estados, ainda que, em caso de dúvida fundada, a regra prevaleça.[6]Dito isto, e retomando a nossa análise, importa agora perceber qual a relação entre a aplicação de direito público, a jurisdição e a competência. Entende Ehlers[7]que a distinção entre os pressupostos da admissibilidade do exercício de jurisdição não é comum nos tribunais administrativos, uma vez que dificilmente uma acção administrativa é instaurada perante um tribunal internacionalmente incompetente, o que resulta da circunstância da jurisdição dos tribunais administrativos estar ordenada à aplicação do direito público do Estado, como aliás já tivemos oportunidade de constatar. E isto é o mesmo que dizer que os tribunais portugueses tendem a ignorar esta questão, o que se pode comprovar pela leitura do Ac. do STA n.º4/2010. Se é assim, então esta questão perde a sua importância, adquirindo a competência territorial o principal foco do problema e que analisaremos de seguida.
  
§3. A competência territorial no CPTA
O CPTA regula a competência territorial dos tribunais administrativos nos seus arts. 16.º a 22.º, dispondo para o efeito o seguinte: (i) o art. 16.º do CPTA consagra a regra geral nesta matéria, que é, ao contrário do que sucede no Código de Processo Civil (doravante, CPC), a residência habitual do autor; (ii) nos arts. 17.º a 20.º do CPTA, encontram-se definidas regras especiais, relativas a matérias atinentes a bens imóveis, responsabilidade civil, contratos, entidades públicas, etc.; (iii) quanto ao art. 21.º do CPTA, é aqui regulada a competência territorial quando se trate da cumulação de pedidos, uma regulação que, todavia, importa conjugar com art. 18.º, n.º 2, do mesmo diploma; (iv) por último, o art. 22.º do CPTA fixa a regra supletiva no caso de não ser possível determinar a competência territorial nos termos dos arts. 16.º a 21.º do CPTA. Numa primeira leitura não se levantam grandes dúvidas neste campo, estes arts. parecem bastante claros nas suas previsões, na mesma medida em que parece igualmente claro que nenhum terá aplicação em matéria de competência internacional. Contudo, uma leitura do CPTA anotado aponta para um caminho diferente, dando Mário Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha como exemplo de aplicação do art. 22.º do CPTA o caso das situações plurilocalizadas em que o demandante seja estrangeiro ou, sendo português, tenha domicílio no estrangeiro e não tenha residência habitual em Portugal. Abre-se então a porta para uma potencial regulação pelo CPTA da competência internacional da jurisdição administrativa. Vejamos se assim é.

§4. Que solução?
            Tendo em conta o que se acabou de dizer, apresentam-se, em abstracto, três soluções susceptíveis de dar resposta a esta lacuna de regulação, de acordo com a doutrina que nos é apresentada por Paula Costa e Silva[8] : (i) a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC; (ii) a aplicação conjugada das regras dos arts. 62.º e 63.º CPC e do art. 22.º do CPTA; (iii) a aplicação isolada do art. 22.º do CPTA.
(i)                 Aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC: a aplicação dos arts. 62.º e 63.º do CPC é, por força do art. 1.º do CPTA, aquela que se apresenta mais evidente e de comum acordo com aquilo que parece ter sido o espírito do legislador – não havendo regulação expressa no CPTA aplicar-se-iam as normas do CPC, em termos idênticos à da sua aplicação no contencioso dos tribunais comuns.
(ii)               Aplicação conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC e do art. 22.º do CPTA: da aplicação, sem mais, deste conjunto de arts. resultaria que os tribunais administrativos portugueses seriam, por força da norma subsidiária do art. 22.º do CPTA, competentes sempre que falhe a concretização de um critério de competência interna, ou seja, poderiam decidir qualquer conflito plurilocalizado, ainda que este não apresente nenhuma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa. Uma solução claramente incomportável. Contudo, se a esta solução se acrescentasse o requisito de uma conexão relevante com a ordem jurídica interna os seus contornos já seriam outros. É que se for esse o caso, entende a autora que já é admissível a aplicação conjugada dos arts. 62.º e 63.º do CPC com o art. 22.º do CPTA.
(iii)             Aplicação isolada do art. 22.º do CPTA: a aplicação isolada do art. 22.º do CPTA resultaria da característica de dupla funcionalidade das regras de competência interna, segundo a qual se deve ter por concretizada uma competência internacional sempre que se verifique a concretização de uma competência territorial interna. É este o caso do art. 22.º. Além disso, esta solução é defensável designadamente para este tipo de casos em que não foram contempladas regras de competência internacional.
            A esta luz, vem adoptar a supra referida autora a terceira solução, sustentando que assim é porque não só não se levantam obstáculos à tese da dupla funcionalidade, como, por essa razão, o recurso às regras do CPC é desnecessário. O art. 22.º do CPTA ganha tornar-se-ia, por esta razão, a norma melhor posicionada para dar resposta a litígios que suscitassem questões de competência internacional.

§5. Reflexões finais
            Aqui chegados, é agora oportuno deixar algumas das nossas considerações sobre o que acabámos de tratar. Começando pela a ausência de regulação desta matéria, é de lamentar que assim seja. Acreditamos que a questão não seja a mais recorrente nos tribunais administrativos mas, não obstante ser esse o caso e em face do mau tratamento que estes lhe concedem, não era assim tão descabido regulá-la, o que lamentavelmente o novo CPTA se olvidou de fazer. Por outro lado, e olhando agora para as soluções apresentadas no ponto anterior, vemo-nos obrigados a (humildemente) discordar de Paula Costa e Silva. Não que não compreendamos o seu raciocínio, porque o compreendemos, mas sim porque por razões de praticabilidade parece-nos mais directa, ou se se quiser, menos complexa e/ou rebuscada, a solução de admitir que quanto a matérias de competência internacional, atenta a falta de regulação do CPTA, se observe o que dispõe o CPC, isto porque os arts. 62.º e 63.º do CPC consagram critérios para admitir a competência internacional dos tribunais portugueses, o que não acontece no caso do art. 22.º do ETAF vir a ser aplicado. Ademais, este art. não deixa de ser um critério recurso, o que, por outro lado, levanta ainda a questão da sua hiper-exorbitância, à semelhança daquilo que acontece no caso da segunda solução que nos é apresentada. Enfim, resta apenas a esperança de que um dia esta questão possa vir a ser objecto da atenção do legislador, atento aquilo que nos é dito pela velha máxima: "mais vale prevenir do que remediar". 

Tiago Guerreiro | 22227 | Subturma 6




[1] Vide, entre outros, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013,  p. 157
[2] Cfr. Os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os  211/2007 e  302/2008 cit. apud Mário Aroso de Almeida, Manual (...), p. 158
[3] Cfr. Paula Costa e Silva, Jurisdição e competência internacional dos tribunais administrativos: a propósito do Acórdão do STA n.º4/2010,  Cadernos de Justiça Administrativa, Novembro/Dezembro 2010, p. 5
[4] Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, 2.ª Ed., Vol. I, Almedina, 2004, p. 142
[5] Cfr. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Vol. II, Almedina, 2013, pp. 28 e 29
[6] Cfr. Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional (...), pp. 143 e 144, que, sustenta, contudo, que a primeira das excepções não é, em bom rigor, uma excepção.
[7] Cit. apud. Paula Costa e Silva, Jurisdição (...), p. 6
                [8] cfr. Paula Costa e Silva, Jurisdição (...), pp. 10 a 13.

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