§1 – O silêncio da Administração: do indeferimento
ao deferimento tácito; §2 –
Natureza jurídica do ato de deferimento tácito: entre a omissão e o ato
fictício; §3 – Ação de impugnação de
ato administrativo ou ação de condenação à prática do ato devido?; §4 – Conclusões
§1 – O silêncio da Administração: do indeferimento
ao deferimento tácito
A
condenação à prática do ato administrativo legalmente devido pode ser pedida
quando “tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no
dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente
estabelecido” (art. 67.º/1, alínea a)
CPTA). A mesma lógica será aplicada às situações em que o requerimento tenha
sido dirigido a órgão incompetente e este não tenha cumprido o art. 34.º CPA,
remetendo oficiosamente o requerimento ao órgão competente. Nesse caso, também
se considera que pode ser intentada esta ação[1].
A administração deve decidir dentro de noventa dias a contar da apresentação do
requerimento (art. 109.º CPA) e este prazo, por ser um prazo procedimental
administrativo, suspende-se aos sábados, domingos e feriados (art. 72.º CPA).
Ora,
pergunta-se como deverá ser conciliada esta disposição com a norma do CPA que admite
a “faculdade de presumir indeferida a pretensão” apresentada pelo particular “para
poder exercer o respetivo meio legal de impugnação”. Acompanhamos Mário
Aroso de Almeida[2]
quando defende que a introdução da ação de condenação à prática do ato devido
teve o efeito de alterar a interpretação que deve ser dada ao art. 109.º CPA.
Este deve ser lido como admitindo que a falta de decisão administrativa confere
ao interessado a possibilidade de lançar mão do meio de tutela adequado, que
será a ação de condenação à prática do ato devido. De facto, a figura do
indeferimento tácito corresponde a uma ficção legal criada porque no modelo
tradicional do contencioso administrativo era necessário ficcionar a existência
de um ato administrativo de indeferimento, para que se lançasse mão do único
meio de tutela existente à época: a ação de impugnação de ato administrativo,
na altura denominado recurso contencioso.
Hoje em
dia, face à atual redação do CPTA deixou de ser necessário ficcionar um ato de
indeferimento e passou a encarar-se o silêncio da administração como um
pressuposto processual relativo à ação de condenação. Na realidade, o
incumprimento do prazo de decisão é encarada como uma omissão simples. Apenas excecionalmente
a lei admite que essa situação seja encarada como um ato de deferimento tácito.
Tipicamente, a lei prevê esta possibilidade naquelas áreas em que a
Administração, quando decide, opta pelo deferimento das pretensões dos
particulares. Por isso, a lei presume
que, apesar da inércia do órgão competente, essa situação deverá ser equiparada
a um ato de deferimento (cf. Art. 108.º CPA).
Ora, é no
campo particular de deferimento tácito que se coloca a nossa questão: qual o
meio processual adequado para reagir a esta “pseudo decisão”? Será mais adequada a impugnação do ato fictício ou
a condenação ao ato devido? Para responder a esta questão, partiremos da
natureza jurídica do deferimento tácito. Só assim poderemos concluir se este é
um verdadeiro ato que deva ser impugnado ou não.
§2 – Natureza jurídica do ato de
deferimento tácito: entre a omissão e o ato fictício
O deferimento tácito já foi
encarado por um setor da doutrina administrativista como um ato administrativo voluntário,
equivalente à pronúncia expressa da Administração[3].
A lógica subjacente a esta posição seria que se a Administração não profere a
decisão é porque pretende ver associada à sua inércia a decisão de deferimento.
Não podemos
concordar com esta posição. Esta corrente doutrinária parte do princípio, que
consideramos idealista, que, de facto, a Administração analisou todos os
requerimentos que lhe foram apresentados e optou, conscientemente, por uma não
tomada de decisão. Parece-nos, porém, que semelhante posição não procede. Muitas
vezes, a inércia da Administração não será mais do que isso mesmo: inércia. Esta
não ação não equivalerá a qualquer
vontade tácita, a uma ação ou recusa.
Podemos
também adotar uma posição próxima daquela defendida no Acórdão do Tribunal
Central Administrativo Norte 25.10.2007 (Processo n.º 00236), nos termos da
qual a inércia não vale como ato administrativo, é apenas uma ausência da
pronúncia, a falta da regulação pretendida para uma situação concreta[4].
Outra alternativa será considerar o deferimento tácito como uma ficção de ato
administrativo.
Tendemos a
concordar com a primeira posição. Vejamos. A ratio do art. 108.º CPA é, no fundo, tutelar os direitos dos
particulares que, confrontados com uma inércia da Administração, teriam de
recorrer a uma ação de condenação à prática do ato devido. Ora, nas áreas
específicas a que diz respeito o referido artigo, nomeadamente, licenciamento
de obras particulares, alvarás de loteamento, tipicamente a Administração toma
uma decisão favorável ao particular. Assim, consideramos que o art. 108.º CPA
não consagra uma ficção de ato administrativo, mas, antes, uma presunção de
decisão favorável. Esta conceção, apesar de parecer isenta de consequências,
não o é. Na verdade, diremos que não existe ato, o que influenciará, de forma
determinante, o meio processual adequado de reação. Aliás, a considerar o
deferimento tácito como uma ficção de ato administrativo, sempre seria um ato
ilegal, por violação do dever legal de decisão. Podemos, até, ir mais longe e
dizer que, nos dias que correm, o deferimento tácito perdeu a sua razão de ser.
A Administração cada vez lida mais com relações multilaterais, muitas vezes de “massa”,
que obrigam à ponderação de interesses contraditórios. Assim, não seria
procedente o argumento de que o deferimento tácito equivale a situações em que
a Administração decide, normalmente, de forma positiva[5].
§3 – Ação de impugnação de ato
administrativo ou ação de condenação à prática do ato devido?
De forma
consequente com o que defendemos supra,
diremos que o meio processual adequado para reagir contra um ato de deferimento
tácito será uma ação de condenação à prática de ato devido. Pergunta-se, então,
se haverá interesse processual em agir, considerando que a decisão foi
favorável ao particular. Diremos, com Vasco
Pereira da Silva[6],
que haverá interesse em agir, pelo menos, em duas situações:
(i)
Se o deferimento tácito não corresponder integralmente
às pretensões do particular, o que o torna parcialmente desfavorável;
(ii)
Numa situação jurídica multilateral, como é,
tipicamente, o caso de deferimento tácito de avaliação de impacto ambiental
8art. 19.º do DL 69/2000, de 3 de maio), pode o ato ser favorável em relação a
alguns sujeitos e não em relação aos demais. Nessas situações, os sujeitos
prejudicados pela decisão terão, igualmente, interesse em agir.
§4 – Conclusões
Resulta do
exposto as seguintes conclusões:
1.
O art. 109.º do CPA mantém-se em vigor, mas a
sua interpretação deve ser tida como admitindo que a inércia da Administração
concede ao particular a possibilidade de lançar mão do meio processual
adequado;
2.
A inércia da Administração dá, regra geral,
origem a uma ação de condenação à prática do ato devido: art. 72.º/1, alínea a), CPTA;
3.
Apenas se discute qual o meio processual
adequado em caso de deferimento tácito;
4.
Os casos de deferimento tácito correspondem
àquelas situações em que tipicamente a decisão administrativa é favorável ao
particular;
5.
O deferimento tácito não equivale a uma ficção
de ato administrativo, até porque este seria sempre um ato ilegal, por violação
do dever de decisão;
6.
Não sendo um deferimento um ato administrativo
não se pode recorrer à ação administrativa especial de impugnação de ato
administrativo;
7.
O meio processual adequado para reagir contra um
deferimento tácito será a condenação à prática do ato devido;
8.
Haverá interesse em agir por parte dos sujeitos
prejudicados pelo deferimento.
[1] Note-se que existe um
dever legal de decidir nos termos do art. 9.º CPA, relativamente a assuntos que
sejam da competência dos órgãos administrativos em causa e que lhes sejam
apresentados pelos particulares. Só não existirá um dever de decisão quando o
órgão competente já tenha decidido um requerimento na qual formulava o mesmo
pedido, com os mesmos fundamentos de facto e de direito nos dois anos anteriores
e tenha sido objeto de decisão expressa.
[2] Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, 323.
[3] Cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. 1, Lisboa, 1986, 476 ss.
[4] No mesmo sentido, cf. Sérvulo Correia, “O incumprimento do
dever de decidir”, em Justiça Administrativa,
n.º 54, 6-32 (22) e Marcelo Rebelo de
Sousa/ André Salgado Matos, Direito
Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, 2007, 394.
[5] Neste sentido, cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso …cit., 399.
[6] O Contencioso Administrativo do Divã da Psicanálise, 2.ª ed.,
Coimbra, 2009, 400.
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