domingo, 7 de dezembro de 2014

Reação ao deferimento tácito: impugnação ou condenação?




§1 O silêncio da Administração: do indeferimento ao deferimento tácito; §2 ­– Natureza jurídica do ato de deferimento tácito: entre a omissão e o ato fictício; §3 – Ação de impugnação de ato administrativo ou ação de condenação à prática do ato devido?; §4 – Conclusões

            §1 O silêncio da Administração: do indeferimento ao deferimento tácito

            A condenação à prática do ato administrativo legalmente devido pode ser pedida quando “tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido” (art. 67.º/1, alínea a) CPTA). A mesma lógica será aplicada às situações em que o requerimento tenha sido dirigido a órgão incompetente e este não tenha cumprido o art. 34.º CPA, remetendo oficiosamente o requerimento ao órgão competente. Nesse caso, também se considera que pode ser intentada esta ação[1]. A administração deve decidir dentro de noventa dias a contar da apresentação do requerimento (art. 109.º CPA) e este prazo, por ser um prazo procedimental administrativo, suspende-se aos sábados, domingos e feriados (art. 72.º CPA).        
            Ora, pergunta-se como deverá ser conciliada esta disposição com a norma do CPA que admite a “faculdade de presumir indeferida a pretensão” apresentada pelo particular “para poder exercer o respetivo meio legal de impugnação”. Acompanhamos Mário Aroso de Almeida[2] quando defende que a introdução da ação de condenação à prática do ato devido teve o efeito de alterar a interpretação que deve ser dada ao art. 109.º CPA. Este deve ser lido como admitindo que a falta de decisão administrativa confere ao interessado a possibilidade de lançar mão do meio de tutela adequado, que será a ação de condenação à prática do ato devido. De facto, a figura do indeferimento tácito corresponde a uma ficção legal criada porque no modelo tradicional do contencioso administrativo era necessário ficcionar a existência de um ato administrativo de indeferimento, para que se lançasse mão do único meio de tutela existente à época: a ação de impugnação de ato administrativo, na altura denominado recurso contencioso.
            Hoje em dia, face à atual redação do CPTA deixou de ser necessário ficcionar um ato de indeferimento e passou a encarar-se o silêncio da administração como um pressuposto processual relativo à ação de condenação. Na realidade, o incumprimento do prazo de decisão é encarada como uma omissão simples. Apenas excecionalmente a lei admite que essa situação seja encarada como um ato de deferimento tácito. Tipicamente, a lei prevê esta possibilidade naquelas áreas em que a Administração, quando decide, opta pelo deferimento das pretensões dos particulares. Por isso, a lei presume que, apesar da inércia do órgão competente, essa situação deverá ser equiparada a um ato de deferimento (cf. Art. 108.º CPA).
            Ora, é no campo particular de deferimento tácito que se coloca a nossa questão: qual o meio processual adequado para reagir a esta “pseudo decisão”? Será mais adequada a impugnação do ato fictício ou a condenação ao ato devido? Para responder a esta questão, partiremos da natureza jurídica do deferimento tácito. Só assim poderemos concluir se este é um verdadeiro ato que deva ser impugnado ou não. 

            §2 ­– Natureza jurídica do ato de deferimento tácito: entre a omissão e o ato fictício

            O deferimento tácito já foi encarado por um setor da doutrina administrativista como um ato administrativo voluntário, equivalente à pronúncia expressa da Administração[3]. A lógica subjacente a esta posição seria que se a Administração não profere a decisão é porque pretende ver associada à sua inércia a decisão de deferimento.
            Não podemos concordar com esta posição. Esta corrente doutrinária parte do princípio, que consideramos idealista, que, de facto, a Administração analisou todos os requerimentos que lhe foram apresentados e optou, conscientemente, por uma não tomada de decisão. Parece-nos, porém, que semelhante posição não procede. Muitas vezes, a inércia da Administração não será mais do que isso mesmo: inércia. Esta não ação não equivalerá a qualquer vontade tácita, a uma ação ou recusa.
            Podemos também adotar uma posição próxima daquela defendida no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte 25.10.2007 (Processo n.º 00236), nos termos da qual a inércia não vale como ato administrativo, é apenas uma ausência da pronúncia, a falta da regulação pretendida para uma situação concreta[4]. Outra alternativa será considerar o deferimento tácito como uma ficção de ato administrativo.
            Tendemos a concordar com a primeira posição. Vejamos. A ratio do art. 108.º CPA é, no fundo, tutelar os direitos dos particulares que, confrontados com uma inércia da Administração, teriam de recorrer a uma ação de condenação à prática do ato devido. Ora, nas áreas específicas a que diz respeito o referido artigo, nomeadamente, licenciamento de obras particulares, alvarás de loteamento, tipicamente a Administração toma uma decisão favorável ao particular. Assim, consideramos que o art. 108.º CPA não consagra uma ficção de ato administrativo, mas, antes, uma presunção de decisão favorável. Esta conceção, apesar de parecer isenta de consequências, não o é. Na verdade, diremos que não existe ato, o que influenciará, de forma determinante, o meio processual adequado de reação. Aliás, a considerar o deferimento tácito como uma ficção de ato administrativo, sempre seria um ato ilegal, por violação do dever legal de decisão. Podemos, até, ir mais longe e dizer que, nos dias que correm, o deferimento tácito perdeu a sua razão de ser. A Administração cada vez lida mais com relações multilaterais, muitas vezes de “massa”, que obrigam à ponderação de interesses contraditórios. Assim, não seria procedente o argumento de que o deferimento tácito equivale a situações em que a Administração decide, normalmente, de forma positiva[5]

            §3 – Ação de impugnação de ato administrativo ou ação de condenação à prática do ato devido?

            De forma consequente com o que defendemos supra, diremos que o meio processual adequado para reagir contra um ato de deferimento tácito será uma ação de condenação à prática de ato devido. Pergunta-se, então, se haverá interesse processual em agir, considerando que a decisão foi favorável ao particular. Diremos, com Vasco Pereira da Silva[6], que haverá interesse em agir, pelo menos, em duas situações:
(i)                 Se o deferimento tácito não corresponder integralmente às pretensões do particular, o que o torna parcialmente desfavorável;
(ii)               Numa situação jurídica multilateral, como é, tipicamente, o caso de deferimento tácito de avaliação de impacto ambiental 8art. 19.º do DL 69/2000, de 3 de maio), pode o ato ser favorável em relação a alguns sujeitos e não em relação aos demais. Nessas situações, os sujeitos prejudicados pela decisão terão, igualmente, interesse em agir. 

            §4 – Conclusões

            Resulta do exposto as seguintes conclusões:
1.      O art. 109.º do CPA mantém-se em vigor, mas a sua interpretação deve ser tida como admitindo que a inércia da Administração concede ao particular a possibilidade de lançar mão do meio processual adequado;
2.      A inércia da Administração dá, regra geral, origem a uma ação de condenação à prática do ato devido: art. 72.º/1, alínea a), CPTA;
3.      Apenas se discute qual o meio processual adequado em caso de deferimento tácito;
4.      Os casos de deferimento tácito correspondem àquelas situações em que tipicamente a decisão administrativa é favorável ao particular;
5.      O deferimento tácito não equivale a uma ficção de ato administrativo, até porque este seria sempre um ato ilegal, por violação do dever de decisão;
6.      Não sendo um deferimento um ato administrativo não se pode recorrer à ação administrativa especial de impugnação de ato administrativo;
7.      O meio processual adequado para reagir contra um deferimento tácito será a condenação à prática do ato devido;
8.      Haverá interesse em agir por parte dos sujeitos prejudicados pelo deferimento.


[1] Note-se que existe um dever legal de decidir nos termos do art. 9.º CPA, relativamente a assuntos que sejam da competência dos órgãos administrativos em causa e que lhes sejam apresentados pelos particulares. Só não existirá um dever de decisão quando o órgão competente já tenha decidido um requerimento na qual formulava o mesmo pedido, com os mesmos fundamentos de facto e de direito nos dois anos anteriores e tenha sido objeto de decisão expressa.
[2] Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, 323.
[3] Cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. 1, Lisboa, 1986, 476 ss.
[4] No mesmo sentido, cf. Sérvulo Correia, “O incumprimento do dever de decidir”, em Justiça Administrativa, n.º 54, 6-32 (22) e Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral, tomo III, Lisboa, 2007, 394.
[5] Neste sentido, cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso …cit., 399.
[6] O Contencioso Administrativo do Divã da Psicanálise, 2.ª ed., Coimbra, 2009, 400.

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