segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

O Contencioso de urgência: a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias


O Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA) prevê no seu título IV os processos urgentes, que se dividem nas categorias de impugnações (contencioso eleitoral e pré-contratual) e de intimações (para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões e para a protecção de direitos, liberdades e garantias), vejam-se os artigos 97.º a 111.º do Código. Como refere o Professor Viera de Andrade, trata-se de processos urgentes principias que se distinguem quer dos processos principais não urgentes, quer dos processos cautelares, pois que o tipo de questões que a eles estão associadas exigem que se obtenha uma resolução definitiva do mérito da causa num espaço de tempo curto, caracterizam-se pela celeridade ou prioridade, tal como decorre do artigo 36.º do CPTA.
Não obstante o enquadramento geral supra, neste post dedicar-me-ei apenas à análise de um dos processos urgentes - a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias. A escolha por este processo prende-se apenas com a importância dos direitos em causa.

£ Contexto

A criação do processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, tem na sua génese a necessidade que há muito se fazia sentir de instituir no nosso ordenamento jurídico, a figura do recurso de amparo – destinado a condenar comportamentos, por parte da Administração, lesivos de direitos fundamentais. Pressupõe a existência de um tribunal superior com competência de revisão circunscrita à apreciação deste tipo de situações.
Em Portugal, a primeira tentativa de introdução desta figura ocorre aquando da revisão constitucional de 1989, no entanto, a pretensão não se afigurou vitoriosa. Mais tarde, na revisão de 1997, ocorre uma segunda tentativa que embora não tenha surtido os efeitos inteiramente pretendidos, apresentou alguns avanços com o aditamento do número 5 ao artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), o qual prescreve: “Para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.” Este preceito vem atribuir ao legislador um espaço de manobra para a criação de tais procedimentos.
Nesta medida, à data da revisão, olhando para o ordenamento jurídico português, era no contencioso administrativo que se afigura premente introduzir um procedimento capaz de tutelar de forma célere e eficaz eventuais violações dos direitos, liberdades e garantias praticadas por parte da Administração. É então, neste contexto, que surge a criação do processo urgente de imitação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, especificamente regulado nos artigos 109.º a 111.º do CPTA.


£ Caracterização e Regime

Como acima referi, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias encontra-se prevista no CPTA nos artigos 109.º a 111.º.

Olhando para o regime, cumpre discutir as seguintes questões:

 I - O âmbito de intervenção do processo de intimação

Sendo certo que se trata de um processo bem mais abrangente que a determinação que resulta do artigo 20.º/5 da CRP, ainda assim se coloca a questão de saber se abrange apenas os direitos, liberdades e garantidas previstos na Constituição, bem como os de natureza análoga, visto que nos termos do artigo 17.º da CRP, o regime daqueles se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga, ou se pode ainda estender-se à protecção de situações subjectivas que resultam de concretizações legislativas de direitos fundamentais. Questão que tem dividido a doutrina.
Para o Professor Viera de Andrade, “a utilização desta acção deve (…) limitar-se às situações em esteja em causa directa e imediatamente o exercício do próprio direito, liberdade ou garantia ou direito análogo.”, assim verificamos que o Professor não admite a extensão do âmbito de aplicação do processo de intimação, circunscrevendo-o à protecção de direitos, liberdades ou garantias previstos na Constituição, incluindo naturalmente os de natureza análoga. Também Carla Amado Gomes apresenta algumas hesitações no que respeita ao alargamento do processo de intimação a direitos que não decorram do texto constitucional. Considera que a abrangência da Lei Fundamental e as respectivas revisões a que está sujeita levam a que surgindo um direito de origem legal este venha a ser constitucionalizado e aí a questão deixa de se colocar; para além disto, correr-se-ia o risco de “reduzir a operacionalidade do meio, por afogamento dos tribunais” em consequência do vasto alcance que a intimação poderia revestir; por fim, a Constituição no elenco dos seus direitos fundamentais tende a esgotar aqueles que são reconhecidos pela sociedade. Com fundamente nestes argumentos segue a mesma linha de pensamento do Professor Vieira de Andrade.

Em sentido contrário e portanto admitindo a extensão, sobretudo no domínio de direitos sociais, está o Professor Jorge Reis Novais e também parece estar o Professor Mário Aroso de Almeida, bem como alguma jurisprudência[1]. Na minha opinião, a razão está com estes professores, na medida em que, actualmente as actuações lesivas por parte da Administração são cada vez mais frequentes. Para além disto, e como todos bem sabemos, numa relação entre a Administração e um particular, este é sempre a parte mais fraca. Como tal, deve adoptar-se uma perspectiva cada vez mais abrangente, isto é, que vise acautelar um maior número de direitos dos particulares. Estas razões afiguram-se suficientes para defender o alargamento do âmbito destes processos de intimação a outros direitos que não decorram do texto constitucional.

II- Pressupostos

O número 1 do artigo 109.º estabelece os pressupostos que devem estar verificados para a concessão da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, trata-se de requisitos mínimos indispensáveis para que se possa recorrer a este processo urgente.

Exige-se:

1     - Necessidade de urgência na decisão, sem qual se deverá recorrer a uma acção administrativa normal- comum ou especial- pois que é este o meio normal de defesa dos direitos fundamentais. Como refere o Professor Viera de Andrade o grau de urgência dependerá das circunstâncias do caso, sendo que em regra, bastará que haja perigo de lesão séria dos direitos, liberdades e garantias;

2    - Esteja em causa o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia e que a conduta positiva ou negativa exigida se revele apta a assegurar esse exercício. O preenchimento deste pressuposto requer a verificação de dois aspectos, primeiro: a existência de uma situação jurídica individualizada respeitante a um direito, liberdade e garantia; e em segundo: a ocorrência, in casu, de uma ameaça ou violação desses direitos, que só possa ser reparada mediante o processo urgente de intimação;

3   - A indispensabilidade da intimação, por não ser possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar, nos termos do artigo 131.º do CPTA. Tal como refere o Professor Mário Aroso de Almeida estamos perante um pressuposto específico do processo de intimação, dele decorre o carácter subsidiário deste meio processual face ao decretamento provisório de qualquer providência cautelar, prevista no artigo acima citado. Para o Professor e também para Carla Amado Gomes (embora encare a subsidiariedade de uma forma muito mais ampla do que aquela que resulta da letra la lei. Com fundamento nos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da proporcionalidade entende que, à semelhança daquilo que ocorre em processo civil, se deva exigir, em contencioso administrativo, uma adequação entre o interesse e a via utilizada – “(…) não depende apenas da impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de qualquer providência, antes tem também como pressuposto a inexistência de qualquer outro meio processual de defesa de direitos, liberdades e garantias.”) estamos perante um pressuposto processual negativo, isto porque, requisito só está verificado se não for possível ou suficiente recorrer a uma providência cautelar.

Na análise deste requisito o Professor Viera de Andrade, alia a indispensabilidade com a necessidade de uma decisão de mérito urgente, ou seja, entende o Professor que embora se verifique um perigo de lesão dos direitos, liberdades e garantias, quando este possa ser devidamente impedido através do recurso aos processos de tramitação normal, o processo de intimação revela-se dispensável e como não se deve a ele recorrer.  

Ainda a propósito deste pressuposto, na prática, têm-se levantado a questão de saber se não estando verificado o seu preenchimento, o processo de intimação pode ser convolado num processo cautelar. Parece não haver grande divergência a este respeito, pois que a generalidade da doutrina e a jurisprudência, têm defendido a convolação. O que bem se compreende pela índole dos direitos em causa, que ao exigirem uma especial urgência na obtenção de uma decisão que assegure o seu exercício em tem útil, não deve quando seja indevidamente intentado o processo de intimação, ser absolvida a instância. Opção que se justifica, desde logo, como assinala o Professor Mário Aroso de Almeida, pelo princípio da tutela jurisdicional efectiva e do imperativo constitucional de efectividade dos direitos, liberdades e garantias.
Ora, uma vez verificados os pressupostos acima referidos, o processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias pode ser intentado nos termos do artigo 109.º/1 do CPTA.

III- A legitimidade

O pressuposto processual da legitimidade tem sempre de ser apreciado segundo dois planos: o activo e o passivo. Quanto ao primeiro, todos aqueles aleguem e provem ser titulares de direitos, liberdades e garantias que sejam lesados ou que se encontrem sob ameaça de lesão, terão legitimidade para requerer a intimação. Carla Amado Gomes, com base no disposto no artigo 12.º/2 da CRP, entende que o requerente tanto pode ser uma pessoa singular como uma pessoa colectiva (especificamente, privada).
Para além destes, resta averiguar se também será de admitir a legitimidade do actor público e do actor popular. Em sentido negativo está Carla Amado Gomes, considera tratar-se de uma acção exclusivamente subjectivista, constituída por direitos individuas que não se confundem com os direitos de fruição colectiva, e assim sendo não há como conferir legitimidade activa ao actor público e ao actor popular. Contrariamente, o Professor Vieira de Andrade, admite que quando estejam em causa, por exemplo, direitos fundamentais em matéria de ambiente e desde que seja respeitada a disponibilidade legítima de tais direitos pelos seus titulares, possa ser conferida legitimidade. O Professor entende que “o facto de estarem em causa posições subjectivas – e não meros interesses indiferenciados de fruição de bens colectivos- não exclui necessariamente a legitimidade popular, nem exige para esta uma previsão expressa.”

Quanto ao segundo plano – a legitimidade passiva - decorre do artigo 109.º/1 e 2 que o processo de intimação tanto pode ser intentado contra a Administração, como contra particulares (veja-se quanto a estes também, o artigo 10.º/7 do CPTA).

IV - Tribunal competente

Segundo o disposto no artigo 4.º/1 alínea a) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF) para apreciar os litígios que tenham como objecto a tutela de direitos fundamentais são competentes os Tribunais Administrativos. Tendo presente os diferentes critérios existentes para aferir qual o tribunal concretamente competente no seio da jurisdição administrativa, verificamos que em razão da hierarquia são competentes os Tribunais Administrativos de Círculo, segundo o disposto no artigo 44.º/1, 1ª parte, do ETAF, pois que não estamos perante uma das excepções que decorrem da segunda parte do referido preceito; em razão território, as regras decorrem dos artigos 16.º a 22.º do CPTA, no coso em concreto estamos no âmbito do critério especial do artigo 20.º/5, que determina que estes processos de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias devem ser instaurados “no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão pretendidos”.

Então, nos termos de todos os preceitos enunciados para a apreciação dos processos de intimação, são competentes os Tribunais Administrativos de Círculo, em primeira instância, da área onde deva ter ligar a acção ou omissão devida.  

V – Tramitação

O processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, é como já tive oportunidade de referir um processo principal e urgente, ora como tal, pretende-se obter com urgência uma decisão definitiva sobre o mérito da causa. A urgência caracterizadora destes processos reflecte-se na sua tramitação, vejamos os artigos 110.º e 111.º do CPTA, bem como o artigo 36.º/2, que estabelece que “ Os processos urgentes correm em tempo de férias, com dispensa de vistos prévios, mesmo em fase de recurso jurisdicional, e os actos da secretaria são praticados no próprio dia, com precedência sobre quaisquer outros.”

Centrando a atenção nos artigos 110.º e 111.º verificamos que a lei estabelece vários andamentos possíveis para o processo, conforme a complexidade e o grau de urgência dos mesmos.

Assim temos:

1-    Para os processos simples e de urgência normal/ordinária- a lei confere ao requerido um prazo de sete dias para responder (artigo 110.º/1) e ao juiz um prazo de cinco dias para decidir, uma vez concluídas as diligências necessárias (artigo 110.º/2);

2-   Para os processos dotados de alguma complexidade e com uma urgência normal/moderada - aqueles que impliquem uma análise mais detalhada, o número 3 do artigo 110.º remete para tramitação estabelecida para a acção administrativa especial, embora com os prazos reduzidos a metade;

3-  Para os processos dotados de uma especial urgência, previstos no artigo 111.º, o juiz pode optar por encurtar o prazo de resposta do requerido (artigo 111.º/1) são os processos que o Professor Mário Aroso de Almeida classifica como “mais rápido que o normal”; ou então, naqueles que o Professor qualifica como “ultra-rápido” o juiz pode optar por realizar no prazo de quarente e oito horas, uma audiência oral, finda a qual decidirá de imediato.  

Note-se que, como refere o Professor Viera de Andrade o processo de intimação é sempre um processo urgente, no entanto, face a cada caso concreto compete ao juiz aferir o grau de urgência em causa e assim adoptar a tramitação mais adequada.

V- Sentença e execução

No que respeita ao conteúdo da sentença que irá por termo ao processo de intimação, este pode assumir dois tipos de efeitos, a saber:

 1- Efeito condenatório – segundo o previsto no artigo 110.º/4 o tribunal determina que o requerido adopte uma determinada conduta, positiva ou negativa, podendo estabelecer um prazo para o cumprimento, bem como o responsável. E ainda nos termos do número 5 do mesmo artigo, é-lhe ainda possível estabelecer, para o caso de incumprimento, a aplicação de uma sanção pecuniária compulsória;

 2 - Efeito executivo/substitutivo- quando esteja em causa, nos termos do artigo 109.º/3, a obtenção “de um acto administrativo estritamente vinculado, designadamente de um acto administrativo já praticado”, é conferido ao tribunal a possibilidade de proferir uma sentença que irá substituir o dever da Administração. Quando tenha este efeito a sentença visa produzir os mesmos efeitos do acto devido, substituindo aquele que foi recusado ou omitido.

Trate-se de uma situação excepcional, consentida pelo carácter urgente do processo em causa. Já que em circunstâncias normais e no âmbito dos processos declarativos, ao juiz nunca são conferidos estes poderes de substituição, há sempre que recorrer a um processo executivo, conforme decorre dos artigos 164.º/4 e 167.º/6 do CPTA.  

Relativamente à execução da sentença, apenas referir que se aplicam as regras gerais de execução das sentenças, e que como acima ficou dito, a lei prevê a possibilidade de fixação de sanção pecuniária compulsória para o caso de incumprimento.

VI – Recurso

A possibilidade de interpor recurso tem ser vista de dois prismas, primeiro: se a decisão é favorável ao requerente; segundo: se a decisão não é favorável ao requerente.
Na primeira situação, sendo a decisão favorável ao requerente o interesse em interpor recurso coloca-se do lado do requerido. Nos termos do artigo 142.º/1 CPTA, a possibilidade de recurso dependerá do valor da causa, e terá um efeito meramente devolutivo, neste sentido, Carla Amado Gomes e Viera de Andrade.
Já na segunda situação, quando o pedido de intimação for julgado improcedente e por isso a decisão afigura-se desfavorável ao requerente, é sempre recorrível, independentemente do valor da causa, nos termos do artigo 142.º/3 alínea a) do CPTA, sendo que nestes casos, também o recurso segue a tramitação urgente. Opção que se justifica pela relevância e natureza dos direitos em causa.


Bibliografia consultada:

Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013;
Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 13ª edição, Almedina, Coimbra,
2014;
CARLA AMADO GOMES, Pretexto, contexto e texto da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias" in Estudo em homenagem ao Professor Doutor Inocência Galvão Telles, vol., 2003.


Telma Gonçalves, nº 21020



[1] O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 6/Junho/2007, sendo que o tribunal considerou: “Preenche a previsão do art.º 109º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, justificando a intimação célere da entidade administrativa a adoptar uma conduta, a situação de uma funcionária que padece de uma doença do foro oncológico e, com base nesse facto, pretende ser submetida urgentemente a Junta Médica de Revisão com vista a obter a aposentação, ao abrigo das normas especiais do Decreto-Lei n.º 173/2001

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