Declaração de ilegalidade de
normas com força obrigatória geral no actual cpta e no projecto de reforma do
contencioso administrativo em curso
§1.
Introdução. §2. O regime da declaração de ilegalidade com força obrigatória
geral no actual CPTA. §.3. O regime da declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral na proposta de revisão do CPTA.
§1. Introdução.
No âmbito da
Reforma do Processo Civil da qual resultou, em Setembro de 2013, a entrada em
vigor do Novo Código do Processo Civil (CPC 2013), foram muitos aqueles que constataram
que, apesar de formalmente estarmos perante um diploma novo, com alterações de
forma e algumas de conteúdo, não existir uma verdadeira revisão material quanto
às soluções adoptadas[1]. Também
em sede de Contencioso Administrativo existe já uma Proposta de Lei com as
alterações que devem constar de um reformado CPTA e ETAF. Não nos interessa
saber se, no geral, estamos perante uma verdadeira reforma ou não do
Contencioso Administrativo. Consideramos que, para tal exercício, é sempre
necessário atentarmos no comportamento dos tribunais e ver, na prática, como é
que são aplicadas as soluções pré e pós reforma. Mais do que no plano teórico,
onde se preconizam grandes mudanças, a reforma tem e só pode ser avaliada no
plano da prática, isto é, no momento da aplicação do Direito.
Uma dos planos a
reformar é o da declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral
no Contencioso Administrativo. Como refere o ponto 49 da Exposição de Motivos
da Proposta de Revisão do Contencioso Administrativo, a reforma em curso passa
pela “Revisão dos pressupostos do regime
de impugnação de normas e condenação à emissão das mesmas, com a indicação de
quem é que pode pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral
de norma imediatamente operativa ou de quem é que pode pedir a declaração de
ilegalidade de norma imediatamente operativa que incorra nos fundamentos de
ilegalidade previstos no artigo 281.º da Constituição da República;”.
Desta forma,
dado o que aqui já foi exposto, propomos examinar, apenas no plano teórico, as
alterações que se propõem no âmbito da reforma relativamente à mateira da
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral das normas
regulamentares. Com a entrada em vigor de um CPTA reformado já será possível aferir
se houve, ou não, uma verdadeira reforma (só aí que que se pode analisar o
direito em “acção”). Agora, ficamo-nos pelo plano meramente teórico.
§2. O regime da declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral no actual CPTA.
O regime de
impugnação de normas regulamentares encontra-se previsto nos artigos 72.º e ss. do CPTA. Como nos refere Aroso de Almeida[2],
existe uma dualidade de regimes no que concerne à impugnação de normas
regulamentares, consoante o âmbito da eficácia da pronúncia pedido ao tribunal:
declaração de ilegalidade de norma regulamentar com força obrigatória geral e
sem força obrigatória geral. Sendo regimes diferentes, também os pressupostos o
são, existindo, porém, um pressuposto comum: a inexistência de prazo para a
dedução de pedido cujo objecto seja a declaração de ilegalidade (com força
obrigatória geral ou não) de determinada norma regulamentar – e não do
regulamento no seu todo[3] – ,
tal como refere o artigo 74.º, CPTA. Aqui trataremos, apenas, do primeiro caso.
O principal
efeito da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de uma norma
regulamentar é o da sua eliminação na ordem jurídica, dotada de efeitos
retroactivos e implicando a repristinação das normas que eventualmente tenha
revogado, nos termos do artigo 76.º, n.º1, CPTA. Ainda assim, à semelhança da
solução consagrada no artigo 282.º, n.º4, CRP, o CPTA prevê, no seu artigo
76.º, n.º2, CPTA, que “o tribunal pode determinar que os efeitos da decisão se
produzam apenas a partir da data do trânsito em julgado da sentença quando
razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público de
excepcional relevo, devidamente fundamentadas, o justifiquem”. Ainda assim, a
retroactividade não prejudica os casos julgados e os actos administrativos que
já não possam ser impugnados – artigo 114.º, CPA – nem, por isso, revogados em
virtude da ilegalidade da norma em que se fundamentaram.
O pedido de
declaração de ilegalidade com força obrigatória geral não se pode basear nos
fundamentos previstos no artigo 281.º, n.º1, CRP (artigo 72.º, n.º2, CPTA)[4].
Nos termos do
artigo 73.º, n.º1, CPTA, existem dois grandes pressupostos para a dedução do
pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral:
(i) a mesma pode ser pedida por quem seja
prejudicado pela aplicação da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em
momento próximo, (ii) desde que a
aplicação da norma tenha sido recusada por qualquer tribunal, em três casos
concretos, com fundamento na sua ilegalidade[5].
Como refere Aroso de Almeida[6],
mesmo que se encontrem preenchidos os requisitos para que o Autor possa deduzir
um pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral nos termos
aqui descritos, por uma questão estratégica – e, acrescentamos, algo egoísta –
o mesmo pode limitar-se a pedir a declaração da sua ilegalidade no caso
concreto (neste sentido, veja-se o artigo 73.º, n.º2, CPTA), evitando que o
tribunal opte por aplicar a situação prevista no artigo 76.º, n.2, CPTA (já
referido).
Analisemos, com maior detalhe, os pressupostos
acima referidos. Em primeiro lugar, dada a dualidade de regimes já referida,
importa fazer uma destrinça entre normas imediatamente operativas e normas
mediatamente operativas. As primeiras produzem os seus efeitos instantaneamente
na esfera jurídica dos seus destinatários, independentemente de intermediação
de um acto administrativo que possibilite a sua aplicação ao caso concreto.
Como refere o Tribunal Central Administrativo Sul no seu Acórdão de 12.01.2012
(Proc. 08224/11), são imediatamente operativas “em virtude dos seus efeitos se produzirem imediatamente na ordem
jurídica interna sem dependência de acto administrativo concreto e individualizado
na esfera jurídica de cada um”; as segundas são aquelas que, dado o
carácter altamente abstracto e geral da norma, pressupõem a existência de um
acto administrativo mediador-concretizador que, in casu, possibilite a aplicação da norma. Pela leitura do artigo
73.º, n.º1 e n.º2, CPTA, e de acordo com a distinção que agora se fez, caso
estejamos perante uma norma imediatamente operativa, o lesado poderá formular o
pedido de declaração de ilegalidade, mas os efeitos da decisão judicial serão
circunscritos ao caso concreto, não se verificando a eliminação da norma na
ordem jurídica. Relativamente às normas mediatamente operativas, na medida em
que não se projectam directamente, na esfera jurídica dos cidadãos, pressupondo
um acto administrativo intermediador, admitem declaração da sua ilegalidade com
força obrigatória geral com os respectivos efeitos que lhe estão inerentes[7]
(desde que, claro, esteja preenchido o pressuposto de declaração de ilegalidade
da norma em três casos concretos). Note-se que, também uma norma imediatamente
operativa pode ser declarada ilegal com efeito erga omnes, desde que verificado o pressuposto dos três casos
concretos referidos no artigo 73.º, n.º1, CPTA[8]. É
nesse sentido que se deve, pois, entender a ressalva prevista no início da
redacção do artigo 73.º, n.º2, CPA referente, expressamente, às normas
imediatamente operativas. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Sul, de 16.10.2008 (Proc. 01743/06) onde se refere que “decorre do art.º 73º nºs 1 e 2 do CPTA que,
para obter a declaração de ilegalidade da norma com força obrigatória geral
independentemente de se tratar de normas imediatamente operativas ou de normas
mediatamente operativas, é necessário preencher o pressuposto estabelecido na
parte final do nº 1, ou seja, que a aplicação da norma em questão tenha sido
recusada em três casos concretos por um qualquer tribunal.”.
O outro
pressuposto aplicativo é o da lesão ou da ameaça de lesão de direitos ou de
interesses legalmente protegidos (“por quem seja prejudicado pela aplicação da
norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo”). Na esteira de Aroso de Almeida e de Fernandes Cadilha[9],
“haverá lesão se a norma for imediatamente operativa ou, sendo mediatamente
operativa, o interessado tiver sido já sujeito passivo de uma estatuição
concreta adoptada com base nessa norma; haverá simples ameaça de lesão se,
sendo a norma mediatamente operativa, se tornar previsível que o particular
venha a ser destinatário de um acto administrativo de aplicação.”.
Explicitados os
pressupostos e descritos os efeitos da declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral, importa ver como tal assunto é tratado na proposta de
revisão do CPTA.
§.3. O regime
da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral na proposta de revisão
do CPTA.
i.
Em
primeiro lugar, Em matéria de prazos, o artigo 74.º passa a estatuir, num n.º 2
que lhe é aditado, que “a declaração de
ilegalidade com fundamento em ilegalidade formal ou procedimental da qual não
resulte inconstitucionalidade só pode ser pedida no prazo de seis meses,
contado da data da publicação, salvo nos casos de carência absoluta de forma
legal ou de preterição de consulta pública exigida por lei.”. Daqui se
retira que deixa de existir a regra segundo a qual não há prazos para a dedução
de pedidos de declaração de ilegalidade de normas regulamentares. Daqui se
retira, pois, tendo em conta que a redacção do artigo 72., n.º2, não parece ser
alterada – mantendo-se tudo o que acima se disse sobre o mesmo – considerando a
redacção do novo artigo 73.º, n.º2, CPTA (“Quem
seja directamente prejudicado ou possa vir previsivelmente a sê-lo em momento
próximo pela aplicação de norma imediatamente operativa que incorra em qualquer
dos fundamentos de ilegalidade previstos no n.º 1 do artigo 281.º da
Constituição da República Portuguesa pode obter a desaplicação da norma,
pedindo a declaração da sua ilegalidade com efeitos circunscritos ao seu caso”),
o artigo 74.º, n.º2, já transcrito, só se deverá aplicar aos casos de
declaração de ilegalidade de normas regulamentares com força obrigatória geral,
já que, a inconstitucionalidade nunca pode ser fundamento, nos termos do artigo
72.º, n.º2, para a dedução de pedidos de declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral. Solução questionável do ponto de vista da tutela jurisdicional efectiva...
ii.
Em
segundo lugar, em matéria de redacção, a proposta para o novo artigo 73.º,
n.º1, CPTA passa a incorporar expressamente o conceito “norma imediatamente
operativa” apesar de, no seu novo n.º3, não adopte o conceito de norma
“mediatamente operativa”, continuando a referir-se a normas que não produzam
imediatamente, mas só através de um acto administrativo de aplicação. Há,
claramente, um erro de sistematização.
iii.
Em
terceiro lugar, o novo artigo 73.º, n.º1, passa a referir que “a declaração de ilegalidade com força
obrigatória geral de norma imediatamente operativa pode ser pedida por quem
seja directamente prejudicado pela vigência da norma ou possa vir
previsivelmente a sê-lo em momento próximo, independentemente da prática de
acto concreto de aplicação, pelo Ministério Público e pelas pessoas e entidades
referidas no n.º 2 do artigo 9.º, assim como pelos presidentes de órgãos
colegiais, em relação a normas emitidas pelos respectivos órgãos.”. Ora,
uma norma imediatamente operativa é aquele que se aplica instantaneamente ao
sujeito independentemente da intermediação de um acto administrativo. Se for
uma norma que lese direitos ou interesses legalmente protegidos e imediatamente
operativa, como é o caso previsto no artigo em análise, não faz sentido a
referência ao acto administrativo. O que lesa é a norma, por si só, e não o
acto. Consideramos, pois, haver uma incoerência que deveria passar pela
eliminação da parte onde se refere “independentemente da prática de acto
concreto de aplicação”.
iv.
Em
quarto lugar, as pessoas referidas no artigo 9.º, n.º2, CPTA ganham
legitimidade, ao lado do Ministério Público e daqueles que têm “interesse
pessoal na dedução do pedido”, para requerer a declaração de ilegalidade com
força obrigatória geral. Como refere o proposto artigo 9.º, n.º2, CPTA, “independentemente
de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e
fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o
Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos
previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa
de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o
ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o
património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias
locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões
jurisdicionais.”. Dá-se, pois, um passo em frente naquilo que é o
alargamento do campo de legitimidade para a dedução do pedido em análise.
v.
Em
quinto lugar, cumpre referir que o proposto artigo 73.º, n.º2, CPTA vem confirmar
e transpor expressamente aquilo que foi referido a propósito do artigo 72.º,
n.º2, CPTA. Caso se deduza um pedido de declaração de ilegalidade de norma com
os fundamentos previstos no artigo 281.º, CRP, o mesmo tem de se circunscrever
ao caso concreto, não produzindo efeitos obrigatórios gerais.
vi.
Em
sexto lugar, cumpre referir que o proposto artigo 73.º, n.º3, CPTA vem
consagrar o regime da desaplicação da norma ao caso concreto, no âmbito de um
processo dirigido contra um acto administrativo de aplicação de uma norma
imediatamente operativa cuja ilegalidade foi despoletada a título incidental
(sendo, para tal, a legitimidade referida no quarto ponto).
vii.
O
proposto artigo 76.º, n.º1, elimina o efeito repristinatório da declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral, e substitui a “emissão da norma” pela
“data da entrada em vigor da norma”, sem prejuízo dos casos de ilegalidade
superveniente.
São estas, pois,
as alterações previstas na Revisão do CPTA relativamente à declaração de
ilegalidade com força obrigatória geral.
João Maria da
Cunha Empis
Subturma 6
n.º 21992
[1] Cfr. José
Lebre de Freitas, “Sobre o
Novo Código de Processo Civil” (uma visão de fora), disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Ba3edae75-10cb-46bc-a975-aa5effbc446d%7D.pdf.
[2] Cfr. Mário
Aroso de Almeida, Manual de
Processo Administrativo, 1ª Edição, Coimbra, Almedina, 2010, p. 335.
[3] Cfr. Mário
Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha,
Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição revista,
Coimbra, Almedina, 2010, p. 491.
[4] O que
não impede, ainda assim, tal como refere Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo…, (…), p. 107, que o
tribunal declare a ilegalidade de determinada norma regulamentar mas sem força
obrigatória geral com os fundamentos previstos no artigo 281.º, n.º1, CRP.
[5] De se
notar que, nos termos do artigo 73.º, n.º3, CPTA, o Ministério Público, a
título oficioso ou a requerimento de uma das entidades referidas no artigo 9.º,
n.º2, CPTA, com a faculdade de estas se constituírem como assistente, pode
requerer a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem
necessidade de verificação de recusa de aplicação da norma regulamentar em
causa em três casos concretos.
[6] Cfr. Mário
Aroso de Almeida, Manual de
Processo..., (…), p. 335
[7] Cfr. Mário
Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha,
Comentário…, (…),…, pp. 489 e ss.
[8] Cfr. Mário
Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário…, (…), p.
490
[9] Cfr. Mário
Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha,
Comentário…,(…), p. 494
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