domingo, 7 de dezembro de 2014

A Impugnação de Normas Administrativas


O artigo 46º/1 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, doravante CPTA, refere a acção administrativa especial nos processos relativos a pretensões emergentes da prática, da omissão de actos administrativos ou de disposições normativas. Interessa-nos, aqui, a matéria quanto aos regulamentos, na medida, em que a par do pedido de declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral, é admitido os pedidos de declaração de ilegalidade de normas em casos concretos e a declaração de ilegalidade por omissão de regulamentos.

A lesividade de muitos actos administrativos levou ao reforço das ideias de legalidade administrativa e de protecção de muitos actos normativos. Nessa medida, limitou-se a abstracção contra a impugnabilidade de regulamentos. Numa fase introdutória, cabe referir que, ao longo dos anos as acções relativas a normas sofreram modificações de regimes, com diferenciação dos tipos de regulamentos (autoria e efeitos). O fim do argumento da separação de poderes contra a invalidade jurisdicional dos regulamentos centrais, deu-se com a atribuição de poderes legislativos ao governo. O artigo 268º/ 5 da Constituição da República Portuguesa consagrou o direito de impugnação judicial directa das normas administrativas, quando lesivas de direitos ou interesses dos particulares. Cabe, assim, aos Tribunais Administrativos fiscalizar a observância, uma vez que, as regras sobre a produção de normas regulamentares são de Direito Administrativo.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA refere que à dualidade de meios processuais, sucede uma dualidade de regimes quanto aos efeitos da declaração de ilegalidade. Os artigos 72º e 73º do CPTA admitem dois tipos de pedidos. Em primeiro lugar, o pedido de declaração com força obrigatória geral (artigo 76º CPTA) e, em segundo lugar o pedido de declaração de ilegalidade num caso concreto. Iremos abordar de forma aprofundada ambos os pedidos, sujeitos a regimes diferentes. PEDRO DELGADO ALVES indica que esta nova dualidade levanta diversas interrogações, podendo estar, na prática, dois meios processuais distintos.

Nesse sentido, cabe analisar, num primeiro plano o conceito de norma impugnável, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA). O conceito deve ser entendido de forma ampla, de acordo com todas as disposições de Direito Administrativo com carácter geral e abstracto. CARLOS BLANCO DE MORAIS dá conta da existência de acepções de norma jurídica, ou seja, entra a distinção de normas legais e actos administrativos. De forma diferente, o Tribunal Constitucional (TC) adopta uma definição funcional, assente numa noção dualista de norma que abrange todos os diplomas aprovados sob forma de lei e ainda, todos os actos normativos, desprovidos de forma legal. Contudo, tudo isto parece não afectar a impugnação de normas regulamentares, onde, aqui o TC adopta um conteúdo geral como critério de qualificação. Importa, também, referir a já clássica dificuldade de distinção entre regulamento e acto administrativo, proveniente do conceito de norma para efeitos de impugnação junto dos Tribunais Administrativos. E aqui, apesar do CPTA referir o assunto, quer no artigo 52º/3, quer no artigo 53º, bem como o artigo 89º/2 e 3, a resposta ficará dependente da interpretação feita pelos Tribunais. Outro dos problemas, prende-se com o facto de saber se o regulamento administrativo tem de estar em vigor para poder ser impugnado. PEDRO DELGADO ALVES não encontra qualquer razão para responder negativamente, uma vez que existe um claro interesse na invalidação de regulamentos revogados. Tendemos a concordar com esta opinião, não parecendo existir impossibilidade de impugnação destes regulamentos.

O pedido de declaração com força obrigatória geral (artigo 76º CPTA), não pode basear-se numa inconstitucionalidade da norma regulamentar. O preceito do artigo 72º/2 CPTA é bem claro, uma vez que o pedido constitui um conhecimento subtraído à jurisdição administrativa. Só ao Tribunal Constitucional compete declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de qualquer norma. Num outro prisma, a declaração de ilegalidade sem força obrigatória geral pode basear-se na inconstitucionalidade da norma impugnada. A ilegalidade da norma não põe em causa a impugnabilidade indirecta e incidental das normas nos Tribunais Administrativos. Quer VIEIRA DE ANDRADE, quer AROSO DE ALMEIDA o referem sem levantar questões de maior. Com base no artigo 75º o juiz pode decidir “ com fundamento na ofensa de princípios ou normas jurídicas diversos daqueles cuja violação haja sido invocada”. De acordo com o artigo 76º/1 CPTA a declaração com força obrigatória geral, produz efeitos retroactivos, ficando ressalvado as situações do artigo 76º/3. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA refere que deste modo fica salvaguardado valor da segurança jurídica. Todavia, tudo isto cede, aquando do princípio da aplicação retroactiva da norma sancionatória mais favorável. (282º/3 CRP e 76º/3 parte final CPTA). Por estas razões, o tribunal pode decidir com critérios do artigo 76º/2 CPTA. Parece claro, que a importância da segurança jurídica, da equidade e do interesse público quando de excepcional relevo, afastem a retroactividade.

A declaração com força obrigatória geral só pode ser pedida pelos interessados, depois da norma ter sido desaplicada em três casos concretos. Estes casos tanto podem referir-se a processos de impugnação de normas em casos concretos, como a processos de impugnação de actos em que tenha havido desaplicação das normas aplicadas pelo acto (artigo 73º/1 CPTA). Relativamente ao Ministério Público, este, pode pedir a declaração de ilegalidade, sem necessidade do requisito dos três casos concretos, oficiosamente ou a requerimento das entidades legitimadas para a acção popular. No fundo, todas estas soluções de inspiração objectivista podem ser alvo de crítica, uma vez que a limitação da impugnabilidade das normas é possível depois da aplicação de norma ter sido recusada em três casos concretos. O legislador procura restringir o recurso a este meio aos casos onde exista uma convicção elevada quanto à ilegalidade do preceito impugnado.

Quanto aos efeitos da decisão, passam a produzir-se desde a data da emissão da norma, nos termos do artigo 76º do CPTA. PEDRO DELGADO ALVES refere que o tribunal pode salvaguardar a validade da revogação operada pela norma ilegal, não podendo existir assim repristinação. Ainda sobre esta matéria, cabe discutir, a ressalva dos casos julgados e dos actos administrativos inimpugnáveis. Tendemos a concordar com JORGE MIRANDA, que entende que se deve dar uma resposta positiva à possibilidade de ressalva de situações análogas ao caso julgado. Deve ficar assegurada a estabilidade e a segurança jurídica. PAULO OTERO defende que a declaração de inconstitucionalidade não afecta as situações jurídico-administrativas consolidadas. Por fim, a jurisprudência não é muito esclarecedora nestas matérias, sublinhando a invalidade sucessiva dos actos administrativos em causa, como resultado lógico da invalidação da norma constitucional. De facto, qual dos casos é pior, o particular que, não se conformando com a norma inválida recorreu ao tribunal, onde obteve sentença desfavorável, ou aquele que aceitou, sem contestação a aplicação da norma inválida. Tal como Rui Medeiros, não encontramos fundamento para tratar pior o primeiro caso referido. Em todo o caso, deve ressalvar-se os cidadãos que confiam totalmente na justiça, ou aqueles que não dispõem de meios económicos para levar a cabo uma acção jurisdicional.

Num segundo plano, o artigo 73º/2 CPTA confere legitimidade para intentar uma acção de impugnação sem força obrigatória geral ao lesado ou a qualquer das entidades do artigo 9º/2 CPTA. Deve entender- se como lesado, o sujeito prejudicado pela aplicação da norma ou que possa vir a sê-lo num momento próximo. Os efeitos desta impugnação passam, sobretudo, pelos efeitos produzidos pela declaração de invalidade. O pedido de desaplicação da norma através do pedido de declaração de ilegalidade, deve estar sempre circunscrito ao caso concreto. Este preceito é associado à garantia constitucional de impugnabilidade de normas administrativas (artigo 268º/5 CRP). VIEIRA DE ANDRADE fala numa estrita concretização da norma constitucional. Por outro lado, PEDRO DELGADO ALVES interpreta de outra maneira o preceito da Constituição, devendo este ser mais abrangente, necessitando de uma declaração com força obrigatória geral.

Por último, em caso de existirem já três desaplicações da norma, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, indica que o particular pode optar entre o regime da impugnação com força obrigatória geral ou por uma declaração sem efeitos gerais. Contudo, podendo optar pelos dois primeiros números do artigo 76º CPTA, o particular, não parece obter mais vantagens pela declaração de ilegalidade sem efeitos legais, permitindo a manutenção em vigor da norma inválida.

No fundo, existem algumas questões difíceis de entender, quando o legislador faz da norma impugnada uma avaliação abstracta, ou como refere PEDRO DELGADO ALVES, a opção do legislador em matéria de efeitos da declaração de eficácia com força obrigatória geral, suscitando mais interrogações, deixando por resolver problemas interpretativos.

 

BIBLIOGRAFIA:

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, p. 335-337;

VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, p. 213-223;

MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos: estatuto dos tribunais administrativos e fiscais: anotados, Coimbra, Almedina- anotação aos artigos 72º-77º;

PEDRO DELGADO ALVES, O Novo Regime de Impugnação de Normas, in Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo, AAFDL

MORAIS, CARLOS BLANCO DE MORAIS, A Impugnação dos Regulamentos no Contencioso Administrativo Português, in Temas e Problemas de Processo Administrativo, Edição do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas.

Duarte Alves, nº 21019

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