A (não) aceitação do acto nas acções
administrativas especiais de impugnação de actos administrativos – O critério
da razoabilidade
O
artigo 56º do CPTA consagra a aceitação do acto administrativo: 56º/1 “Não pode
impugnar um acto administrativo quem o tenha aceitado, expressa ou tacitamente,
depois de praticado”. 56/2 “ A aceitação tácita deriva da prática,
espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar.
56/3 “A execução ou acatamento por funcionário ou agente não se considera
aceitação tácita do acto executado ou acatado, salvo quando dependa da vontade
daqueles a escolha da oportunidade de execução”.
Em primeiro lugar verifica-se que a
nível sistemático o artigo 56º do CPTA encontra-se na subsecção de
legitimidade. É então a aceitação do acto uma questão de legitimidade (ativa)?
A
legitimidade ativa vem consagrada no artigo imediatamente anterior (artigo 55º
CPCTA), sendo que a aceitação do acto já parece estar “algo deslocado”. De
acordo com o professor Vasco Pereira da Silva, o motivo pelo qual a aceitação
do acto surge na subsecção da legitimidade deve-se aos traumas da infância
difícil do Contencioso Administrativa, na medida em que se negavam assim o
acesso aos tribunais a quem aceitasse o acto, tirando desta forma a legitimidade
para tal. Não se enquadrava assim a aceitação do acto no pressuposto processual
do interesse de agir mas sim no da legitimidade, o que consistia na prática
numa maior proteção da Administração, uma vez que mesmo que se possuísse
interesse em impugnar o acto administrativo, tal já não seria possível, uma vez
que a parte careceria de legitimidade.
Não
se pense que a aceitação do acto já está completamente desassociada da ideia de
legitimidade activa. Alguns autores seguindo aquilo que foi defendido por
Marcelo Caetano vêem a aceitação do acto como uma figura que faz parte do
prossuposto processual de legitimidade activa, uma vez que consiste numa
renúncia ao direito de impugnar, ou a perder a oportunidade para impugnar o
acto na medida em que consistiria na queda do prazo para impugnar. Ou seja, a
impugnação do acto só seria possível até a aceitação, sendo que a partir desta
já não haveria oportunidade para impugnar por ter findado o prazo.
O
professor Vieira de Andrade critica a tese de renúncia ao direito de impugnar,
uma vez que a aceitação é no seu entender, um mero acto jurídico e não de uma
declaração negocial.
Para
os professores Vasco Pereira da Silva e Vieira de Andrade, a aceitação do acto
não faz parte do prossuposto processual de legitimidade. O professor Vasco
Pereira da Silva defende que a aceitação do acto faz parte do prossuposto
processual do interesse de agir. O interesse em agir é um prossuposto
processual fundamental quer no direito civil quer no direito administrativo.
Sem ele o autor carece de legitimidade para intentar a ação. Nesta medida,
segundo o entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, ao aceitar o acto o
particular está a dar a entender com a sua conduta que não pretende impugnar o
acto, ou seja, que não tem interesse em intentar uma ação neste sentido uma vez
que a aceita. O professor Vieira de Andrade tem um entendimento ligeiramente
diferente. Para este professor, a aceitação do acto não faz parte do
prossuposto processual da legitimidade (estando aqui de acordo com o que
defende o professor Vasco Pereira da Silva), nem do interesse em agir,
consistindo a aceitação do acto num prossuposto processual autónomo devendo ser
apreciada normativamente, isto é, em função da inadmissibilidade valorativa do
recurso aos tribunais, por esta representar um “veniere contra factum proprium”
que implicaria um uso emulativo ou abusivo do direito de acção.
Não
desprezando o interesse teórico que a questão da aceitação efectivamente tem,
cabe agora observar o interesse maior da questão, que se revela a nível
prático, com consequências completamente distintas consoante o ponto de vista
que se adoptar (nomeadamente consoante o ponto de vista que os tribunais
adoptarem!).
A
questão mais relevante prende-se com a aceitação tácita do acto. Consagra o
artigo 56/2 que “A aceitação tácita deriva da prática, espontânea e sem
reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar”. O objectivo desta
norma é claro. Esta norma tem como objectivo evitar um abuso de direito por
parte do particular, e privilegiar a economia processual, a desnecessidade de
proteção judicial de quem aceitou o acto e a estabilização de efeitos dos actos
administrativos.
No fundo, apesar da grande
diversificação de opiniões quanto à natureza jurídica da figura da aceitação
(natureza jurídica que é sempre um campo propício à inventiva dos autores) na
prática, quase todos os autores defendem que após a aceitação tácita do acto o
particular perde a oportunidade de recorrer aos tribunais para impugnar o acto
que aceitou tacitamente, sendo a constituição de reserva absolutamente
fundamental para se concluir que o acto foi aceite, e, quando esta não tiver
sido constituída considera-se que o particular aceitou o acto, não pudendo vir
depois impugná-lo. Este entendimento parece ser o mais óbvio, uma vez que a
própria lei (art.56/2 do CPTA) parece exigi-lo, e apesar de maior ou menor
tendência para o positivismo o certo é que ninguém pode ignorar o que consta da
lei. Verdade é também que a jurisprudência tem adoptado muito esta visão, dando
grande relevo à constituição de reserva, e considerando que quando esta não
tenha sido constituída a impugnação do acto representa um “venire contra factum
proprium”. No entanto, numa posição claramente minoritária na doutrina
portuguesa, o professor Vasco Pereira da Silve tem vindo a entender uma coisa
diferente com consequências práticas importantíssimas. Para o professor Vasco
Pereira da Silva, a figura a aceitação tácita não tem o mesmo relevo que é dado
por outros autores a nível de limitação do direito de impugnar posteriormente o
acto. O artigo 268º/4 da CRP constitui um direito que não pode ser restringido
facilmente e, de acordo com o professor, o facto de se aceitar tacitamente o
acto não pode impedir a impugnação do mesmo acto administrativo quando este
tiver, efectivamente, lesado direitos daquele particular. Sendo assim, o
professor considera que é possível ao particular revogar a aceitação daqueles
actos, recorrendo ao tribunal. Na prática, para o professor Vasco Pereira da Silva,
se o particular recorre ao tribunal é porque não aceitou tacitamente o acto
administrativo que o lesou, e, fazendo a aceitação parte do prossuposto
processual do interesse em agir, o tribunal só poderia rejeitar esta acção
quando não haja interesse em agir por parte do tribunal.
A
posição do professor Vasco Pereira da Silva é claramente mais favorável ao
particular, mantendo a possibilidade deste revogar o acto de aceitação,
recorrendo aos tribunais. Parece haver por parte do professor uma preocupação
em salvaguardar os interesses da parte mais fraca (particular em face da
administração). Por outro lado a posição dos outros professores (nomeadamente
do professor Vieira de Andrade) é menos favorável ao particular, dando mais
relevo à figura do abuso de direito e de “venire contra factum proprium”.
Esta
dualidade de posições é extremamente importante a nível prático como facilmente
se compreende. Justifica-se uma opção por uma maior proteção do particular? Ou o
invés se exige uma prevenção do abuso do direito?
Na
minha opinião, a solução só pode ser a razoabilidade por parte do tribunal ou,
como refere o professor Vieira de Andrade, um juízo de valoração no que toca a
admissibilidade. Passo a explicar.
Tal como refere Vieira de
Andrade, a aceitação tem de corresponder a uma vontade livre e esclarecedora
por parte do particular. Não estão aqui em causa questões de submissão ou de
cumprimento forçoso, as quais claramente não se podem considerar aceitação de
um acto. Aqui impõe-se critérios de razoabilidade por parte dos tribunais
chamados a se pronunciar sobre essa questão. É preciso olhar para o caso
concreto para se verificar se o cumprimento, apesar de não ter sido nitidamente
forçado, consistiu numa vontade livre e esclarecida por parte do sujeito
passivo. Muitas vezes por razões e circunstâncias várias os particulares pagam
o que lhes pedem, não tendo bem consciência do que estão a pagar, sendo que na
minha opinião, o tribunal deve verificar se o cumprimento foi efectuado
esclarecidamente. Outro facto que me parece ser claramente relevante é a
constituição de reserva contida no artigo 56º/2 do CPTA. É de criticar,
claramente (!), o entendimento que a jurisprudência tem tido neste ponto. O
tribunal tem “aproveitado” este artigo 56º/2 para considerar que a ação de
impugnação carece de ilegitimidade, invocando este artigo de forma geral em
diversos acórdãos sem ter o cuidado de ter em atenção o caso concreto. No meu
entender volta-se a estar perante a questão de razoabilidade, devendo se
levantar a seguinte questão: em que moldes se pode exigir a um particular (que
na maior parte das vezes não possui qualquer conhecimento em direito, muito
menos no que diz respeito ao direito administrativo) que constitua uma reserva?
Pagar mas dizer que não se concorda, e posteriormente recorrer-se a um advogado
para solicitar um conselho jurídico acerca daquele pagamento é aceitar um acto?
Não pode em determinados casos, razoavelmente considerados, este comportamento
constituir uma espécie de reserva? Pelo menos a reserva que pode ser exigida a
um particular normal? A meu ver, esta questão tem de ser interpretada caso a
caso, de forma razoável.
Parece-me também
claramente que os princípios de economia processual e estabilização dos efeitos
do acto administrativa (apesar de, obviamente, muito importantes) não podem de
modo algum sobrepor-se à defesa dos interesses legalmente protegidos pelo
artigo 268º/4 da CRP.
É claro que, também não
pode deixar de ser considerado o reverso da medalha. Não se pode proteger os
particulares de tal forma que estes aceitem tacitamente determinados actos com
esperança que destes advenham para si certos benefícios e depois impugná-los
pelo simples facto de estes benefícios não terem surgido, ou não terem surgido
na medida em que os particulares o esperavam. Novamente é exigível por parte do
tribunal uma razoabilidade, avaliando cada caso concreto e verificar se esse
configura um abuso de direito ou de um verdadeiro “veniere contra factum
proprium”.
Em jeito de conclusão, uma
coisa parece clara (sendo isso obviamente discutível, e muito). Os autores que
defendem que a posição do professor Vasco Pereira da Silva possibilita abusos
por parte do particular, não a estão a interpretar de forma correta. É verdade
que a posição do professor Vasco Pereira da Silva confere uma proteção muito
maior aos particulares no que diz respeito à aceitação tácita e posterior
impugnação do acto administrativo, no entanto, o professor não pretende com
essa posição defender comportamentos abusivos dos particulares. Pretende defender
e tutelar exactamente o oposto: não possibilitar que a figura da aceitação
tácita configure na prática uma diminuição dos direitos dos particulares,
diminuindo a proteção e fragilizando a posição destes perante a Administração.
Romeu Lopes, subturma 6.
Bibliografia:
-
Pereira da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise;
Almedina; 2ª Edição 2009.
- Vieira de
Andrade, José Carlos; A Justiça Administrativa; Almedina; 12ª Edição 2012.
Visto.
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