sábado, 6 de dezembro de 2014

A (nao) aceitaçao do acto- O Critério da razoabilidade


A (não) aceitação do acto nas acções administrativas especiais de impugnação de actos administrativos – O critério da razoabilidade

 

 

 

            O artigo 56º do CPTA consagra a aceitação do acto administrativo: 56º/1 “Não pode impugnar um acto administrativo quem o tenha aceitado, expressa ou tacitamente, depois de praticado”. 56/2 “ A aceitação tácita deriva da prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar. 56/3 “A execução ou acatamento por funcionário ou agente não se considera aceitação tácita do acto executado ou acatado, salvo quando dependa da vontade daqueles a escolha da oportunidade de execução”.

            Em primeiro lugar verifica-se que a nível sistemático o artigo 56º do CPTA encontra-se na subsecção de legitimidade. É então a aceitação do acto uma questão de legitimidade (ativa)?

            A legitimidade ativa vem consagrada no artigo imediatamente anterior (artigo 55º CPCTA), sendo que a aceitação do acto já parece estar “algo deslocado”. De acordo com o professor Vasco Pereira da Silva, o motivo pelo qual a aceitação do acto surge na subsecção da legitimidade deve-se aos traumas da infância difícil do Contencioso Administrativa, na medida em que se negavam assim o acesso aos tribunais a quem aceitasse o acto, tirando desta forma a legitimidade para tal. Não se enquadrava assim a aceitação do acto no pressuposto processual do interesse de agir mas sim no da legitimidade, o que consistia na prática numa maior proteção da Administração, uma vez que mesmo que se possuísse interesse em impugnar o acto administrativo, tal já não seria possível, uma vez que a parte careceria de legitimidade.

            Não se pense que a aceitação do acto já está completamente desassociada da ideia de legitimidade activa. Alguns autores seguindo aquilo que foi defendido por Marcelo Caetano vêem a aceitação do acto como uma figura que faz parte do prossuposto processual de legitimidade activa, uma vez que consiste numa renúncia ao direito de impugnar, ou a perder a oportunidade para impugnar o acto na medida em que consistiria na queda do prazo para impugnar. Ou seja, a impugnação do acto só seria possível até a aceitação, sendo que a partir desta já não haveria oportunidade para impugnar por ter findado o prazo.

            O professor Vieira de Andrade critica a tese de renúncia ao direito de impugnar, uma vez que a aceitação é no seu entender, um mero acto jurídico e não de uma declaração negocial.

            Para os professores Vasco Pereira da Silva e Vieira de Andrade, a aceitação do acto não faz parte do prossuposto processual de legitimidade. O professor Vasco Pereira da Silva defende que a aceitação do acto faz parte do prossuposto processual do interesse de agir. O interesse em agir é um prossuposto processual fundamental quer no direito civil quer no direito administrativo. Sem ele o autor carece de legitimidade para intentar a ação. Nesta medida, segundo o entendimento do professor Vasco Pereira da Silva, ao aceitar o acto o particular está a dar a entender com a sua conduta que não pretende impugnar o acto, ou seja, que não tem interesse em intentar uma ação neste sentido uma vez que a aceita. O professor Vieira de Andrade tem um entendimento ligeiramente diferente. Para este professor, a aceitação do acto não faz parte do prossuposto processual da legitimidade (estando aqui de acordo com o que defende o professor Vasco Pereira da Silva), nem do interesse em agir, consistindo a aceitação do acto num prossuposto processual autónomo devendo ser apreciada normativamente, isto é, em função da inadmissibilidade valorativa do recurso aos tribunais, por esta representar um “veniere contra factum proprium” que implicaria um uso emulativo ou abusivo do direito de acção.

            Não desprezando o interesse teórico que a questão da aceitação efectivamente tem, cabe agora observar o interesse maior da questão, que se revela a nível prático, com consequências completamente distintas consoante o ponto de vista que se adoptar (nomeadamente consoante o ponto de vista que os tribunais adoptarem!).

            A questão mais relevante prende-se com a aceitação tácita do acto. Consagra o artigo 56/2 que “A aceitação tácita deriva da prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar”. O objectivo desta norma é claro. Esta norma tem como objectivo evitar um abuso de direito por parte do particular, e privilegiar a economia processual, a desnecessidade de proteção judicial de quem aceitou o acto e a estabilização de efeitos dos actos administrativos.

No fundo, apesar da grande diversificação de opiniões quanto à natureza jurídica da figura da aceitação (natureza jurídica que é sempre um campo propício à inventiva dos autores) na prática, quase todos os autores defendem que após a aceitação tácita do acto o particular perde a oportunidade de recorrer aos tribunais para impugnar o acto que aceitou tacitamente, sendo a constituição de reserva absolutamente fundamental para se concluir que o acto foi aceite, e, quando esta não tiver sido constituída considera-se que o particular aceitou o acto, não pudendo vir depois impugná-lo. Este entendimento parece ser o mais óbvio, uma vez que a própria lei (art.56/2 do CPTA) parece exigi-lo, e apesar de maior ou menor tendência para o positivismo o certo é que ninguém pode ignorar o que consta da lei. Verdade é também que a jurisprudência tem adoptado muito esta visão, dando grande relevo à constituição de reserva, e considerando que quando esta não tenha sido constituída a impugnação do acto representa um “venire contra factum proprium”. No entanto, numa posição claramente minoritária na doutrina portuguesa, o professor Vasco Pereira da Silve tem vindo a entender uma coisa diferente com consequências práticas importantíssimas. Para o professor Vasco Pereira da Silva, a figura a aceitação tácita não tem o mesmo relevo que é dado por outros autores a nível de limitação do direito de impugnar posteriormente o acto. O artigo 268º/4 da CRP constitui um direito que não pode ser restringido facilmente e, de acordo com o professor, o facto de se aceitar tacitamente o acto não pode impedir a impugnação do mesmo acto administrativo quando este tiver, efectivamente, lesado direitos daquele particular. Sendo assim, o professor considera que é possível ao particular revogar a aceitação daqueles actos, recorrendo ao tribunal. Na prática, para o professor Vasco Pereira da Silva, se o particular recorre ao tribunal é porque não aceitou tacitamente o acto administrativo que o lesou, e, fazendo a aceitação parte do prossuposto processual do interesse em agir, o tribunal só poderia rejeitar esta acção quando não haja interesse em agir por parte do tribunal.

            A posição do professor Vasco Pereira da Silva é claramente mais favorável ao particular, mantendo a possibilidade deste revogar o acto de aceitação, recorrendo aos tribunais. Parece haver por parte do professor uma preocupação em salvaguardar os interesses da parte mais fraca (particular em face da administração). Por outro lado a posição dos outros professores (nomeadamente do professor Vieira de Andrade) é menos favorável ao particular, dando mais relevo à figura do abuso de direito e de “venire contra factum proprium”.

            Esta dualidade de posições é extremamente importante a nível prático como facilmente se compreende. Justifica-se uma opção por uma maior proteção do particular? Ou o invés se exige uma prevenção do abuso do direito?

            Na minha opinião, a solução só pode ser a razoabilidade por parte do tribunal ou, como refere o professor Vieira de Andrade, um juízo de valoração no que toca a admissibilidade. Passo a explicar.

Tal como refere Vieira de Andrade, a aceitação tem de corresponder a uma vontade livre e esclarecedora por parte do particular. Não estão aqui em causa questões de submissão ou de cumprimento forçoso, as quais claramente não se podem considerar aceitação de um acto. Aqui impõe-se critérios de razoabilidade por parte dos tribunais chamados a se pronunciar sobre essa questão. É preciso olhar para o caso concreto para se verificar se o cumprimento, apesar de não ter sido nitidamente forçado, consistiu numa vontade livre e esclarecida por parte do sujeito passivo. Muitas vezes por razões e circunstâncias várias os particulares pagam o que lhes pedem, não tendo bem consciência do que estão a pagar, sendo que na minha opinião, o tribunal deve verificar se o cumprimento foi efectuado esclarecidamente. Outro facto que me parece ser claramente relevante é a constituição de reserva contida no artigo 56º/2 do CPTA. É de criticar, claramente (!), o entendimento que a jurisprudência tem tido neste ponto. O tribunal tem “aproveitado” este artigo 56º/2 para considerar que a ação de impugnação carece de ilegitimidade, invocando este artigo de forma geral em diversos acórdãos sem ter o cuidado de ter em atenção o caso concreto. No meu entender volta-se a estar perante a questão de razoabilidade, devendo se levantar a seguinte questão: em que moldes se pode exigir a um particular (que na maior parte das vezes não possui qualquer conhecimento em direito, muito menos no que diz respeito ao direito administrativo) que constitua uma reserva? Pagar mas dizer que não se concorda, e posteriormente recorrer-se a um advogado para solicitar um conselho jurídico acerca daquele pagamento é aceitar um acto? Não pode em determinados casos, razoavelmente considerados, este comportamento constituir uma espécie de reserva? Pelo menos a reserva que pode ser exigida a um particular normal? A meu ver, esta questão tem de ser interpretada caso a caso, de forma razoável.

Parece-me também claramente que os princípios de economia processual e estabilização dos efeitos do acto administrativa (apesar de, obviamente, muito importantes) não podem de modo algum sobrepor-se à defesa dos interesses legalmente protegidos pelo artigo 268º/4 da CRP.

É claro que, também não pode deixar de ser considerado o reverso da medalha. Não se pode proteger os particulares de tal forma que estes aceitem tacitamente determinados actos com esperança que destes advenham para si certos benefícios e depois impugná-los pelo simples facto de estes benefícios não terem surgido, ou não terem surgido na medida em que os particulares o esperavam. Novamente é exigível por parte do tribunal uma razoabilidade, avaliando cada caso concreto e verificar se esse configura um abuso de direito ou de um verdadeiro “veniere contra factum proprium”.

Em jeito de conclusão, uma coisa parece clara (sendo isso obviamente discutível, e muito). Os autores que defendem que a posição do professor Vasco Pereira da Silva possibilita abusos por parte do particular, não a estão a interpretar de forma correta. É verdade que a posição do professor Vasco Pereira da Silva confere uma proteção muito maior aos particulares no que diz respeito à aceitação tácita e posterior impugnação do acto administrativo, no entanto, o professor não pretende com essa posição defender comportamentos abusivos dos particulares. Pretende defender e tutelar exactamente o oposto: não possibilitar que a figura da aceitação tácita configure na prática uma diminuição dos direitos dos particulares, diminuindo a proteção e fragilizando a posição destes perante a          Administração.








 

 

 


Romeu Lopes, subturma 6.










 

Bibliografia:

 

 

- Pereira da Silva, Vasco; O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise; Almedina; 2ª Edição 2009.

- Vieira de Andrade, José Carlos; A Justiça Administrativa; Almedina; 12ª Edição 2012.

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