sábado, 6 de dezembro de 2014

Abundans cautela non nocet: uma breve excursão pelo mundo das providências cautelares

Abundans cautela non nocet1: uma breve excursão pelo mundo das providências cautelares


Cautela em excesso não faz mal a ninguém


I. Exórdio

    Os tribunais existem para asseverar e proteger os direitos dos cidadãos, tal como é sabido e reforçado pelo artigo 202º/2 da Constituição portuguesa (doravante CRP). No entanto, essa função, para ser eficaz, acarreta muitas vezes a rápida defesa de direitos ou interesses que, com a habitual demora dos processos, poderiam ficar irremediavelmente lesados ou inutilizados. Neste contexto, surgem as providências cautelares. Com alicerce na definição legal, as providências cautelares podem ser definidas como um meio de tutela que pretende impedir que se constitua uma situação irreversível ou se produzam graves danos que ameacem o efeito útil da decisão que se pretende alcançar com o pedido principal – artigo 112º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA).

    As providências cautelares estão intimamente conexas com o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva. Desde logo, a Constituição portuguesa acolhe, em termos genéricos, o direito de acesso aos tribunais no artigo 20º, substancializando, em matéria de contencioso administrativo no artigo 268º/4, a garantia da existência de meios processuais para reconhecimento de direitos ou interesses, impugnação de actos administrativos, determinação da prática de actos devidos e a existência das medidas cautelares adequadas. Assim, com a conjugação destes preceitos assegura-se que o cidadão possa requerer aos tribunais uma decisão com base nos meios necessários para que essa garantia seja efectiva. A necessidade de criar as condições necessárias para que o cidadão possa obter uma decisão jurisdicional resulta do princípio da tutela judicial efectiva, que se deve considerar consagrado nas disposições mencionadas2. Como referiu o Professor Vasco Pereira da Silva, a lógica de todo o contencioso administrativo, segundo o modelo constitucional, gravita em torno da tutela judicial plena e efectiva dos direitos dos particulares, sendo em razão desse princípio que devem ser organizados os diferentes meios processuais, principais e acessórios, sejam eles destinados ao reconhecimento de direitos, à impugnação de actos lesivos, à condenação da Administração, ou a acautelar direitos dos sujeitos processuais3.

I.I. Nota histórica

    Durante a década de 90, um pouco por todo o continente europeu ocidental, em virtude de uma notável influência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, começou a ser propagada a instituição de mecanismos de urgência. Estes mecanismos de urgência de cunho provisório ou cautelar traduziriam a garantia da protecção jurisdicional efectiva dos direitos subjectivos dos cidadãos comunitários4. Na Alemanha, por exemplo, já há algum tempo estaria enraizado, cumulativamente pelo atalho do efeito suspensivo automático dos meios de recurso ou de impugnação do acto administrativo, o mecanismo tutelar provisório que teria duas vertentes: uma “asseguradora” (através da qual seria possível, por exemplo, obstar ao preenchimento de uma vaga por outro concorrente), outra “reguladora” (pela qual seria exequível, por exemplo, a emissão provisória de um certificado de habilitações). Em moldes semelhantes foi feita a transposição para o nosso artigo 120º do CPTA5.

    Como foi assinalado pelo Professor Mário Aroso de Almeida6, a tutela cautelar era uma das questões mais críticas do nosso contencioso administrativo. Efectivamente, antes da Reforma do Contencioso Administrativo de 2004, a tutela cautelar preservou-se primordialmente condensada no clássico instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos com todas as insuficiências que lhe são reconhecidas. Como explicou o Professor Vieira de Andrade7, tanto o objecto como o conteúdo na base deste instituto eram demasiado limitados, na medida em que só poderiam ser empregados a actos administrativos com efeitos positivos e conservatórios e estes somente com intuito de conservar a situação de facto existente. Por sua vez, outra insuficiência diria respeito à exigência de que se verificasse a irreparabilidade do dano decorrente da execução do acto, ficando de fora a protecção almejada. Pintado este cenário, era manifesta a necessidade de uma reforma do contencioso administrativo no sentido de avalizar a efectividade da tutela judicial dos cidadãos face aos poderes públicos, mormente no que toca à tutela cautelar.

    O primeiro passo surgiu com a revisão constitucional de 1997, que importou uma nova índole fundamentalmente subjectivista para a justiça administrativa, e trouxe a garantia constitucional da tutela efectiva transposta na possibilidade de decretar providências cautelares direccionadas para obstar a factos consumados ou situações irreversíveis – isto no âmago do artigo 268º/4.
    O segundo passo, deveras fulcral, ocorreu com a Reforma do Contencioso Administrativo de 2004, que alargou o campo de aplicação das providências cautelares8: desde logo, consagrando a possibilidade de lançar mão a qualquer meio que se prove fundamental à garantia da efectividade do processo principal. Ao mesmo tempo, também foi acolhida a providência cautelar antecipatória, de forma a impedir a produção futura de danos. Sem esquecer  outro aspecto relevante que diz respeito à livre cumulação de pretensões cautelares (sendo um corolário do princípio da livre cumulação de pedidos), conforme as necessidades de cada caso, desde que se molde à protecção dos interesses do requerente, sem particular prejuízo para os demais interesses conflituantes (artigos 112º/1 e 120º/3 do CPTA).

    O artigo 112º do CPTA instituiu uma cláusula aberta através da qual se reconhece a todo aquele que tenha legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos o poder de requerer a adopção de toda e qualquer providência cautelar, antecipatória ou conservatória, que se demonstre apropriada para garantir a utilidade da sentença que pretende obter nesse processo9. No artigo 112º/2 diz-se que as providências cautelares a adoptar podem fundar-se na suspensão da eficácia de actos administrativos ou de normas regulamentares (artigos 128º a 130º do CPTA), na admissão provisória em concursos e exames, na atribuição provisória da disponibilidade de um bem ou da autorização para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta, na regulação provisória de uma situação (nomeadamente a regulação provisória da realização de prestações pecuniárias ou do pagamento de indemnizações – artigo 133º do CPTA) ou na intimação da Administração ou de particulares à adopção ou abstenção de condutas. Sendo crucial frisar que o elenco do artigo 112º/2 é meramente exemplificativo, o que significa que podem ser adoptadas providências cautelares que não estejam neste elenco10. São reconhecidas providências de qualquer tipo, desde que se cumpra a adequação e a utilidade da sentença.

II. Exposição

II.I. Quadro geral e requisitos

    As providências cautelares podem ser requeridas tanto anteriormente, como concomitantemente ou mesmo ulteriormente à propositura da acção principal, tal como resulta do artigo 114º/1 do CPTA. No entanto, para que seja decretada uma providência cautelar é necessário que se cumpram os requisitos que constam no artigo 120º do CPTA, para os quais é necessário que o requerente apresente prova sumária para a sua apreciação.
    No artigo 120º do CPTA, articulam-se, respectivamente, o critério do periculum in mora – ou perigo da demora (através do qual se averigua se existem motivos para decretar a providência) - e o critério do fumus boni iuris – ou juridicidade material (que diz respeito à aparência do direito, isto é, à probabilidade da sua existência) - que determinam que o tribunal proceda à ponderação global dos vários interesses presentes. Normalmente, verifica-se que a outorga de uma providência cautelar depende da avaliação, por parte do juiz, a respeito da existência do risco da composição de uma situação de facto irreversível ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente e, por outro lado, do grau de exequibilidade da pretensão deduzida ou a deduzir no processo principal, tal como ele é fruto de uma avaliação perfunctória sobre o mérito da causa.
    Nesta linha, o tribunal deve ajuizar todos os interesses – públicos e privados – em jogo, no sentido de apreciar se os danos que podem advir da outorga da providência não se revelam superiores aos que podem decorrer da sua recusa.
    É relevante notar que a providência cautelar solicitada pelo interessado não pode ser recusada se for notório o bem fundado da pretensão intentada ou a intentar no processo principal. Nesta hipótese, o critério fumus boni iuris impera, desvalorizando a prova do periculum in mora e a ponderação de interesses.

    Em consonância com o artigo 112º/1 do CPTA, em relação aos efeitos, existem dois tipos de providências cautelares: as antecipatórias e as conservatórias.
Nas providências antecipatórias – artigo 120º/1-c) do CPTA -, antes da constatação do dano, o requerente tenciona obter um bem ou direito, na sequência do perigo de o perder.
Por sua vez, nas providências conservatórias – artigo 120º/1-b) do CPTA -, como se retira da sua designação, aqui o requerente conserva na sua posse ou titularidade um direito a um bem ou situação já conformada, existindo o risco ou a ameaça de a perder. Aqui o requerente terá de provar o fumus non malus iuris, o que implica que a sua pretensão não seja claramente imotivada.
    Seja qual for a providência cautelar em causa, o artigo 120º/2 do CPTA endereça a aplicação de um juízo de proporcionalidade. Sendo também crucial o artigo 120º/3 que nos diz que a providência cautelar adoptada deve limitar-se ao estritamente necessário para obstar à lesão dos interesses ou direitos que se procuram assegurar.
    Desta análise, pode-se concluir que o decretamento de providências cautelares deverá ter sempre em conta o princípio da prossecução do interesse público, a par com o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Toda esta orientação apresenta um cunho basilar na garantia da tutela jurisdicional cautelar.

II.II. Características

    São três os traços tradicionais específicos estruturais das providências cautelares11.
    Em primeiro lugar, destaca-se o seu cariz instrumental, tendo em conta que estas não gozam de autonomia funcional. Efectivamente, as providências estão numa relação de dependência com o processo principal (que visa a decisão sobre o mérito da causa), ainda que a intentar, o que implica que percam a sua eficácia com a prolação da sentença no processo principal. A sua índole instrumental também faz com que caduquem nas hipóteses do artigo 123º do CPTA, desde a negligente falta de mobilidade desses autos por mais de três meses, ou o proferimento, neles, de decisão transitada desfavorável. Por conseguinte, deve ser dito que as providências cautelares almejam a satisfação provisória dos interesses que dimanam da relação material controvertida. Nas palavras de Fernanda Maçãs, as providências caracterizam-se não para realizar a justiça “mas dar tempo a que a justiça se faça”12.

    Em segundo lugar, releva como linha característica das providências cautelares a sua provisoriedade, que pode ser reafirmada com base na análise do artigo 124º do CPTA, uma vez que a providência proporciona uma antecipação transitória do efeito pretendido no processo dominante, não implicando, no entanto, a aquisição definitiva do mesmo. Se decretada, a providência cautelar manter-se-á em vigor até à conclusão do processo principal e, em virtude da sua índole provisória, poderá ser modificada, substituída ou revogada no decurso do processo, uma vez constatada a alteração das circunstâncias de facto que estiveram na base do decretamento da tutela cautelar. De acordo com o Professor Vieira de Andrade, no âmago do artigo 124º, ainda podem ser decretadas “contra-providências” direccionadas para a atenuação dos efeitos da medida anteriormente estabelecida, sendo que esta poderá ficar sujeita a condição ou termo, conforme o artigo 122º/2 do CPTA13. Assim, conclui-se que os efeitos da decisão cautelar compreendem uma duração temporal limitada e são ineptos para constituir caso julgado, tanto no contexto do processo principal, como no processo cautelar.

    Por último, sobreleva-se a sumariedade das providências cautelares que se fundamenta no seu cunho urgente. Desta forma, expressa-se o tipo de cognição que é suposto conformar-se, de acordo com os critérios abarcados pelo artigo 120º do CPTA. Em termos genéricos, dir-se-á que com base na manifesta urgência, o decretamento da tutela cautelar deve firmar-se numa avaliação sumária dos factos, bastando-se com um juízo de mera possibilidade de existência do interesse ou do direito que se almeja resguardar.

III. A mudança

    Como já se sabe, dez anos após a entrada em vigor do CPTA, está a decorrer a revisão do mesmo e avizinham-se alterações no domínio das providências cautelares. Desde logo, o preâmbulo do anteprojecto de revisão do CPTA ambiciona a introdução de “importantes inovações”14. Assim, aproveitando a análise feita por Esperança Mealha15, verifica-se, em termos muito sucintos, que a intenção vai no sentido de agilizar a tutela cautelar, na medida em que se pretende manter no CPTA uma regulamentação própria e exaustiva das providências cautelares, independente do Código de Processo Civil, tenho em linha de conta que a natureza pública dos litígios, normalmente, não permite o aproveitamento da lógica subjacente à tutela cautelar civil.
    Ao mesmo tempo, pretende-se simplificar os pressupostos de decretamento das providências, eliminando para o efeito a distinção entre providências antecipatórias e conservatórias. Por outro lado, propõe-se a adopção, em substituição dos artigos 128º e 131º, de um mecanismo simples e pautado por uma intensa celeridade de tutela pré-cautelar para operar a requerimento de qualquer interessado, sempre que o tempo necessário à decisão cautelar possa embaraçar a sua utilidade, fazendo depender o levantamento da proibição automática de executar de decisão do juiz cautelar e do contexto de estado de necessidade. No entanto, caso se mantenha o artigo 128º, propõe-se a revisão do respectivo regime para neste incluir os contra-interessados e eliminar o incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida, substituindo-o pelo mecanismo referido anteriormente. Ainda, pondera-se a atribuição ex lege de eficácia suspensiva a certas acções administrativas de impugnação de actos, com possibilidade de qualquer interessado requerer ao tribunal alteração desse efeito. 

IV. Considerações Finais

    É indiscutível que a protecção jurisdicional não pode apresentar lacunas. Com sustentáculos formais, a consequência seria um contexto indefensável em que as pessoas não poderiam efectivar a sua pretensão de forma a obter um efeito útil por parte da decisão da causa. Com efeito, as providências cautelares assumem uma dupla funcionalidade uma vez que são o mecanismo para resguardar e promover a tutela dos direitos e interesses em apreço, por um lado, e também por garantirem um controlo das decisões judiciais, por outro lado, na medida em que colocam vários pesos na balança e fazendo com que se equilibrem, logram a edificação de um juízo proporcional que se pauta pela celeridade e intento de utilidade máxima da pretensão deduzida. Nesta linha, pode-se concluir pela importância primordial das providências cautelares que se revestem como uma forma de concretização do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
    No âmago do anteprojecto de revisão do CPTA, apesar da análise sumária, cumpre fazer breves considerações. Efectivamente, é de louvar a preocupação e a intenção de obstar às situações em que o facto se torna irremediável, tendo por base um vasto leque de mecanismos suspensivos. No entanto, será que o anteprojecto de revisão do CPTA estará a apontar para um excesso de zelo (o que não é necessariamente mau), pecando na compatibilização de todos estes mecanismos ou terá ficado aquém do necessário? O tempo e a prática serão melhor ilustradores, ficando, por agora, a questão. No entanto, creio que estamos face a um bom passo para uma melhor concretização da tutela dos direitos e interesses concretos. 


Ana Vicente. N.º 20919

- Bibliografia Geral:

ALMEIDA, Mário Aroso de - O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos. Almedina, 2004 (3ª ed.).
ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. Almedina, 2013.
ANDRADE, José Carlos Vieira, A Justiça Administrativa (Lições), 5ª ed., Almedina, 2004.

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2 – Canotilho, J. J. Gomes/Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, págs. 163-164 (nota V).
3 – A Acção para o Reconhecimento de Direitos “Cadernos de Justiça Administrativa, n.º16, Julho/Agosto de 1999.
4 – Ramos, Jorge Henrique Soares, Processos Cautelares no (novo) Contencioso Administrativo. Disponível em: http://www.trc.pt/index.php/doutrina/445-processos-cautelares-no-novo-contencioso-administrativo
6 – Almeida, Mário Aroso de, na intervenção proferida em Lisboa, a  4 de Dezembro de 2003, no âmbito do Colóquio sobre “A Reforma do Contencioso Administrativo”, organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça
7 – Andrade, José Carlos Vieira, A Justiça Administrativa (Lições), 5ª ed., Almedina, 2004.
8 – Quadros, Fausto de, Algumas considerações gerais sobre a Reforma do Contencioso Administrativo, em especial, as Providências Cautelares, in Reforma do Contencioso Administrativo, volume I, Coimbra, 2003.
9 - Almeida, Mário Aroso de, na intervenção proferida em Lisboa, a 4 de Dezembro de 2003, no âmbito do Colóquio sobre “A Reforma do Contencioso Administrativo”, organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça.
10 - Almeida, Mário Aroso de, na intervenção proferida em Lisboa, a 4 de Dezembro de 2003, no âmbito do Colóquio sobre “A Reforma do Contencioso Administrativo”, organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça.
11 - Ramos, Jorge Henrique Soares, Processos Cautelares no (novo) Contencioso Administrativo.
12 – in “As Formas de Tutela Urgente Previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Revista do Ministério Público, Out./Dez., 2004, n.º100, 44.
13 – Andrade, José Carlos Vieira, A Justiça Administrativa (Lições), 5ª ed., Almedina, 2004, pp. 334-335.
14 – Anteprojecto de Revisão do CPTA, disponível em: http://www.portugal.gov.pt/media/1352316/20140225%20mj%20prop%20lei%20cpta%20etaf.pdf
15 – Esperança Mealha, a 27 de Setembro de 2013, no âmbito da 3ª REAJA – Reunião Anual da Justiça Administrativa, “Um novo processo para a justiça administrativa – Especificidades do Processo Administrativo.

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