Abundans cautela non nocet1: uma breve excursão pelo mundo das providências cautelares
1 Cautela em excesso
não faz mal a ninguém
I. Exórdio
Os
tribunais existem para asseverar e proteger os direitos dos cidadãos, tal como
é sabido e reforçado pelo artigo 202º/2 da Constituição portuguesa (doravante
CRP). No entanto, essa função, para ser eficaz, acarreta muitas vezes a rápida
defesa de direitos ou interesses que, com a habitual demora dos processos,
poderiam ficar irremediavelmente lesados ou inutilizados. Neste contexto, surgem
as providências cautelares. Com alicerce na definição legal, as providências
cautelares podem ser definidas como um meio de tutela que pretende impedir que
se constitua uma situação irreversível ou se produzam graves danos que ameacem
o efeito útil da decisão que se pretende alcançar com o pedido principal –
artigo 112º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante
CPTA).
As providências cautelares
estão intimamente conexas com o princípio constitucional da tutela
jurisdicional efectiva. Desde logo, a Constituição portuguesa acolhe, em termos
genéricos, o direito de acesso aos tribunais no artigo 20º, substancializando,
em matéria de contencioso administrativo no artigo 268º/4, a garantia da
existência de meios processuais para reconhecimento de direitos ou interesses,
impugnação de actos administrativos, determinação da prática de actos devidos e
a existência das medidas cautelares
adequadas. Assim, com a conjugação destes preceitos assegura-se que o
cidadão possa requerer aos tribunais uma decisão com base nos meios necessários
para que essa garantia seja efectiva. A necessidade de criar as condições
necessárias para que o cidadão possa obter uma decisão jurisdicional resulta do
princípio da tutela judicial efectiva, que se deve considerar consagrado nas disposições
mencionadas2. Como referiu o Professor Vasco Pereira da Silva, a
lógica de todo o contencioso administrativo, segundo o modelo constitucional,
gravita em torno da tutela judicial plena e efectiva dos direitos dos
particulares, sendo em razão desse princípio que devem ser organizados os
diferentes meios processuais, principais e acessórios, sejam eles destinados ao
reconhecimento de direitos, à impugnação de actos lesivos, à condenação da
Administração, ou a acautelar direitos dos sujeitos processuais3.
I.I. Nota histórica
Durante
a década de 90, um pouco por todo o continente europeu ocidental, em virtude de
uma notável influência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias,
começou a ser propagada a instituição de mecanismos de urgência. Estes
mecanismos de urgência de cunho provisório ou cautelar traduziriam a garantia
da protecção jurisdicional efectiva dos direitos subjectivos dos cidadãos
comunitários4. Na Alemanha, por exemplo, já há algum tempo estaria enraizado,
cumulativamente pelo atalho do efeito suspensivo automático dos meios de
recurso ou de impugnação do acto administrativo, o mecanismo tutelar provisório
que teria duas vertentes: uma “asseguradora” (através da qual seria possível,
por exemplo, obstar ao preenchimento de uma vaga por outro concorrente), outra
“reguladora” (pela qual seria exequível, por exemplo, a emissão provisória de
um certificado de habilitações). Em moldes semelhantes foi feita a transposição
para o nosso artigo 120º do CPTA5.
Como
foi assinalado pelo Professor Mário Aroso de Almeida6, a tutela
cautelar era uma das questões mais críticas do nosso contencioso
administrativo. Efectivamente, antes da Reforma do Contencioso Administrativo
de 2004, a tutela cautelar preservou-se primordialmente condensada no clássico
instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos com todas as
insuficiências que lhe são reconhecidas. Como explicou o Professor Vieira de
Andrade7, tanto o objecto como o conteúdo na base deste instituto
eram demasiado limitados, na medida em que só poderiam ser empregados a actos
administrativos com efeitos positivos e conservatórios e estes somente com
intuito de conservar a situação de facto existente. Por sua vez, outra
insuficiência diria respeito à exigência de que se verificasse a irreparabilidade
do dano decorrente da execução do acto, ficando de fora a protecção almejada. Pintado
este cenário, era manifesta a necessidade de uma reforma do contencioso
administrativo no sentido de avalizar a efectividade da tutela judicial dos
cidadãos face aos poderes públicos, mormente no que toca à tutela cautelar.
O
primeiro passo surgiu com a revisão constitucional de 1997, que importou uma
nova índole fundamentalmente subjectivista para a justiça administrativa, e
trouxe a garantia constitucional da tutela efectiva transposta na possibilidade
de decretar providências cautelares direccionadas para obstar a factos
consumados ou situações irreversíveis – isto no âmago do artigo 268º/4.
O segundo passo, deveras
fulcral, ocorreu com a Reforma do Contencioso Administrativo de 2004, que
alargou o campo de aplicação das providências cautelares8: desde
logo, consagrando a possibilidade de lançar mão a qualquer meio que se prove
fundamental à garantia da efectividade do processo principal. Ao mesmo tempo, também
foi acolhida a providência cautelar antecipatória, de forma a impedir a
produção futura de danos. Sem esquecer outro
aspecto relevante que diz respeito à livre cumulação de pretensões cautelares
(sendo um corolário do princípio da livre cumulação de pedidos), conforme as
necessidades de cada caso, desde que se molde à protecção dos interesses do
requerente, sem particular prejuízo para os demais interesses conflituantes (artigos 112º/1 e 120º/3 do CPTA).
O
artigo 112º do CPTA instituiu uma cláusula aberta através da qual se reconhece
a todo aquele que tenha legitimidade para intentar um processo junto dos
tribunais administrativos o poder de requerer a adopção de toda e qualquer
providência cautelar, antecipatória ou conservatória, que se demonstre
apropriada para garantir a utilidade da sentença que pretende obter nesse
processo9. No artigo 112º/2 diz-se que as providências cautelares a
adoptar podem fundar-se na suspensão da eficácia de actos administrativos ou de
normas regulamentares (artigos 128º a 130º do CPTA), na admissão provisória em
concursos e exames, na atribuição provisória da disponibilidade de um bem ou da
autorização para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta, na
regulação provisória de uma situação (nomeadamente a regulação provisória da
realização de prestações pecuniárias ou do pagamento de indemnizações – artigo
133º do CPTA) ou na intimação da Administração ou de particulares à adopção ou
abstenção de condutas. Sendo crucial frisar que o elenco do artigo 112º/2 é
meramente exemplificativo, o que significa que podem ser adoptadas providências
cautelares que não estejam neste elenco10. São reconhecidas
providências de qualquer tipo, desde que se cumpra a adequação e a utilidade da
sentença.
II. Exposição
II.I. Quadro geral e
requisitos
As
providências cautelares podem ser requeridas tanto anteriormente, como
concomitantemente ou mesmo ulteriormente à propositura da acção principal, tal
como resulta do artigo 114º/1 do CPTA. No entanto, para que seja decretada uma
providência cautelar é necessário que se cumpram os requisitos que constam no
artigo 120º do CPTA, para os quais é necessário que o requerente apresente
prova sumária para a sua apreciação.
No artigo 120º do CPTA, articulam-se,
respectivamente, o critério do periculum
in mora – ou perigo da demora (através do qual se averigua se existem
motivos para decretar a providência) - e o critério do fumus boni iuris – ou juridicidade material (que diz respeito à
aparência do direito, isto é, à probabilidade da sua existência) - que determinam que o tribunal proceda à
ponderação global dos vários interesses presentes. Normalmente, verifica-se que
a outorga de uma providência cautelar depende da avaliação, por parte do juiz,
a respeito da existência do risco da composição de uma situação de facto
irreversível ou da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente
e, por outro lado, do grau de exequibilidade da pretensão deduzida ou a deduzir
no processo principal, tal como ele é fruto de uma avaliação perfunctória sobre
o mérito da causa.
Nesta
linha, o tribunal deve ajuizar todos os interesses – públicos e privados – em
jogo, no sentido de apreciar se os danos que podem advir da outorga da
providência não se revelam superiores aos que podem decorrer da sua recusa.
É relevante notar que a
providência cautelar solicitada pelo interessado não pode ser recusada se for
notório o bem fundado da pretensão intentada ou a intentar no processo
principal. Nesta hipótese, o critério fumus
boni iuris impera, desvalorizando a prova do periculum in mora e a ponderação de interesses.
Em consonância com o artigo
112º/1 do CPTA, em relação aos efeitos, existem dois tipos de providências
cautelares: as antecipatórias e as conservatórias.
Nas providências antecipatórias – artigo 120º/1-c) do
CPTA -, antes da constatação do dano, o requerente tenciona obter um bem ou
direito, na sequência do perigo de o perder.
Por sua vez, nas providências conservatórias – artigo
120º/1-b) do CPTA -, como se retira da sua designação, aqui o requerente
conserva na sua posse ou titularidade um direito a um bem ou situação já
conformada, existindo o risco ou a ameaça de a perder. Aqui o requerente terá
de provar o fumus non malus iuris, o
que implica que a sua pretensão não seja claramente imotivada.
Seja
qual for a providência cautelar em causa, o artigo 120º/2 do CPTA endereça a
aplicação de um juízo de proporcionalidade. Sendo também crucial o artigo
120º/3 que nos diz que a providência cautelar adoptada deve limitar-se ao
estritamente necessário para obstar à lesão dos interesses ou direitos que se
procuram assegurar.
Desta
análise, pode-se concluir que o decretamento de providências cautelares deverá
ter sempre em conta o princípio da prossecução do interesse público, a par com
o respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Toda
esta orientação apresenta um cunho basilar na garantia da tutela jurisdicional
cautelar.
II.II.
Características
São três os traços
tradicionais específicos estruturais das providências cautelares11.
Em primeiro lugar, destaca-se
o seu cariz instrumental, tendo em conta que estas não gozam de autonomia
funcional. Efectivamente, as providências estão numa relação de dependência com
o processo principal (que visa a decisão sobre o mérito da causa), ainda que a
intentar, o que implica que percam a sua eficácia com a prolação da sentença no
processo principal. A sua índole instrumental também faz com que caduquem nas
hipóteses do artigo 123º do CPTA, desde a negligente falta de mobilidade desses
autos por mais de três meses, ou o proferimento, neles, de decisão transitada
desfavorável. Por conseguinte, deve ser dito que as providências cautelares
almejam a satisfação provisória dos interesses que dimanam da relação material
controvertida. Nas palavras de Fernanda Maçãs, as providências caracterizam-se
não para realizar a justiça “mas dar tempo a que a justiça se faça”12.
Em segundo lugar, releva como
linha característica das providências cautelares a sua provisoriedade, que pode
ser reafirmada com base na análise do artigo 124º do CPTA, uma vez que a
providência proporciona uma antecipação transitória do efeito pretendido no
processo dominante, não implicando, no entanto, a aquisição definitiva do mesmo.
Se decretada, a providência cautelar manter-se-á em vigor até à conclusão do
processo principal e, em virtude da sua índole provisória, poderá ser
modificada, substituída ou revogada no decurso do processo, uma vez constatada
a alteração das circunstâncias de facto que estiveram na base do decretamento
da tutela cautelar. De acordo com o Professor Vieira de Andrade, no âmago do
artigo 124º, ainda podem ser decretadas “contra-providências” direccionadas
para a atenuação dos efeitos da medida anteriormente estabelecida, sendo que
esta poderá ficar sujeita a condição ou termo, conforme o artigo 122º/2 do CPTA13.
Assim, conclui-se que os efeitos da decisão cautelar compreendem uma duração
temporal limitada e são ineptos para constituir caso julgado, tanto no contexto
do processo principal, como no processo cautelar.
Por último, sobreleva-se a
sumariedade das providências cautelares que se fundamenta no seu cunho urgente.
Desta forma, expressa-se o tipo de cognição que é suposto conformar-se, de
acordo com os critérios abarcados pelo artigo 120º do CPTA. Em termos
genéricos, dir-se-á que com base na manifesta urgência, o decretamento da
tutela cautelar deve firmar-se numa avaliação sumária dos factos, bastando-se
com um juízo de mera possibilidade de existência do interesse ou do direito que
se almeja resguardar.
III. A mudança
Como
já se sabe, dez anos após a entrada em vigor do CPTA, está a decorrer a revisão
do mesmo e avizinham-se alterações no domínio das providências cautelares. Desde
logo, o preâmbulo do anteprojecto de revisão do CPTA ambiciona a introdução de
“importantes inovações”14. Assim, aproveitando a análise feita por
Esperança Mealha15, verifica-se, em termos muito sucintos, que a
intenção vai no sentido de agilizar a tutela cautelar, na medida em que se
pretende manter no CPTA uma regulamentação própria e exaustiva das providências
cautelares, independente do Código de Processo Civil, tenho em linha de conta
que a natureza pública dos litígios, normalmente, não permite o aproveitamento
da lógica subjacente à tutela cautelar civil.
Ao mesmo tempo, pretende-se simplificar os
pressupostos de decretamento das providências, eliminando para o efeito a
distinção entre providências antecipatórias e conservatórias. Por outro lado,
propõe-se a adopção, em substituição dos artigos 128º e 131º, de um mecanismo simples
e pautado por uma intensa celeridade de tutela pré-cautelar para operar a
requerimento de qualquer interessado, sempre que o tempo necessário à decisão
cautelar possa embaraçar a sua utilidade, fazendo depender o levantamento da
proibição automática de executar de decisão do juiz cautelar e do contexto de estado
de necessidade. No entanto, caso se mantenha o artigo 128º, propõe-se a revisão
do respectivo regime para neste incluir os contra-interessados e eliminar o
incidente de declaração de ineficácia dos actos de execução indevida,
substituindo-o pelo mecanismo referido anteriormente. Ainda, pondera-se a
atribuição ex lege de eficácia
suspensiva a certas acções administrativas de impugnação de actos, com
possibilidade de qualquer interessado requerer ao tribunal alteração desse efeito.
IV. Considerações
Finais
É
indiscutível que a protecção jurisdicional não pode apresentar lacunas. Com
sustentáculos formais, a consequência seria um contexto indefensável em que as
pessoas não poderiam efectivar a sua pretensão de forma a obter um efeito útil
por parte da decisão da causa. Com efeito, as providências cautelares assumem
uma dupla funcionalidade uma vez que são o mecanismo para resguardar e promover
a tutela dos direitos e interesses em apreço, por um lado, e também por garantirem
um controlo das decisões judiciais, por outro lado, na medida em que colocam
vários pesos na balança e fazendo com que se equilibrem, logram a edificação de
um juízo proporcional que se pauta pela celeridade e intento de utilidade máxima
da pretensão deduzida. Nesta linha, pode-se concluir pela importância
primordial das providências cautelares que se revestem como uma forma de
concretização do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
No
âmago do anteprojecto de revisão do CPTA, apesar da análise sumária, cumpre
fazer breves considerações. Efectivamente, é de louvar a preocupação e a intenção
de obstar às situações em que o facto se torna irremediável, tendo por base um vasto
leque de mecanismos suspensivos. No entanto, será que o anteprojecto de revisão
do CPTA estará a apontar para um excesso de zelo (o que não é necessariamente mau),
pecando na compatibilização de todos estes mecanismos ou terá ficado aquém do necessário?
O tempo e a prática serão melhor ilustradores, ficando, por agora, a questão. No
entanto, creio que estamos face a um bom passo para uma melhor concretização da
tutela dos direitos e interesses concretos.
Ana Vicente. N.º 20919
- Bibliografia Geral:
ALMEIDA, Mário Aroso de - O Novo Regime do Processo nos
Tribunais Administrativos. Almedina, 2004 (3ª ed.).
ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo
Administrativo. Almedina, 2013.
ANDRADE, José Carlos Vieira, A Justiça Administrativa
(Lições), 5ª ed., Almedina, 2004.
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Visto.
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