sábado, 6 de dezembro de 2014

Brevíssimo excurso pela execução das sentenças:


O meu interesse neste tema está relacionado com várias razões, nomeadamente com a ideia que tenho que um Direito sem sanções ou sem quem as aplique dificilmente será um corpo de regras com alguma eficácia (ideia adquirida já depois de frequentar a licenciatura). Assim, se antes de ter ingressado na licenciatura de Direito, e mesmo já a frequentar o curso, pensava que bastava a mera decisão do tribunal para “ser feita justiça”, hoje entendo que na maioria dos casos não sucederá assim. Não basta que o tribunal confira razão ao Autor ou ao Réu em pedido reconvencional (numa acção declarativa), é necessário que haja alguma forma de aplicar as consequências resultantes dessa tomada de posição, nomeadamente pela via do processo executivo.

Como no segundo semestre irei ter uma cadeira de processo executivo, achei interessante acabar uma cadeira em que se estuda processo declarativo com uma espécie de introdução à disciplina que irei ter.

A necessidade de existência de um processo executivo:

A existência de um processo executivo resulta necessário a partir do momento em que se consagra na CRP, no artigo 268º/4, a tutela jurisdicional efectiva como garantia dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

SÉRVULO CORREIA, numa análise da Constituição moçambicana, que serve que nem uma luva à realidade portuguesa, pergunta se é possível que tal princípio e garantia se consigam assegurar apenas com o processo declarativo[i].

A conclusão a que chega é que só havendo execução das sentenças é que se consegue de facto assegurar a reparação da ofensa das posições tuteladas. A existência, apenas, do processo declarativo apresentar-se-ia como uma garantia constitucional meramente formal[ii]. Com esta posição se concorda.

Dever de executar as sentenças:

A partir do momento em que se concebe o contencioso administrativo como um verdadeiro contencioso, onde a ideia de administrador-juiz desapareceu[iii], a conclusão só pode ser a de que as sentenças proferidas pelos tribunais administrativos têm a mesma força que as sentenças dos tribunais judiciais. Obrigam por si mesmas sem a necessidade da homologação por parte de uma entidade administrativa[iv].

Esta orientação está consagrada no artigo 158º do CPTA. Apesar do legislador utilizar a expressão “as decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias…”, deve entender-se que “obrigatórias” é uma expressão sinónima de “dever de executar”[v]. Este dever também se retira das consequências da não execução das sentenças previstas no artigo 159º CPTA e em legislação avulsa, nomeadamente o crime de desobediência (159º/2 CPTA)[vi].

O que se deve entender por execução:

DIOGO FREITAS DO AMARAL refere a importância de saber o que se deve entender por execução, uma vez que em parte alguma o legislador procurou definir o conceito e qual o seu âmbito (pelo menos expressamente). Parte da análise dos preceitos legais em vigor (em 1989) para deles extrair a definição de “execução”.

Chega à conclusão que execução consiste em:

1.      Um ou mais comportamentos devidos pela Administração;
2.      Comportamento(s)  positivos e não mera(s) abstenção(-ões);
3.      Comportamento(s) voluntário(s).

Para o Autor execução em contencioso administrativo tem um âmbito, na sua grande maioria, diferente da execução em processo civil, uma vez que aqui a execução é essencialmente execução forçada, a situação do tribunal se substituir ao particular (ao réu, para que o Autor veja sua pretensão efectivada). Aqui tal hipótese não se coaduna muito bem, desde logo pelo princípio da separação de poderes e por ser à Administração que cabe o monopólio do uso da força[vii] - apesar de já estar ultrapassada a figura do administrador-juiz.

Não quer isto dizer que não haja formas de execução forçada no âmbito do contencioso administrativo, mas estas serão mais raras. Verificar-se-á a sua ocorrência, por exemplo, quando os superiores hierárquicos ou as entidades tutelares se possam substituir ao órgão que deve acatar a decisão do tribunal[viii].

Entende ainda que só há execução de condutas positivas, pois embora concorde que proferida a sentença, a Administração está obrigada a condutas negativas ou omissivas, uma vez que tem de respeitar o caso julgado (não pode emitir um acto administrativo com o mesmo vício que inquinou o acto anulado/nulo, por exemplo), estas não se inserem dentro do âmbito da execução da sentença mas sim no respeito pelo caso julgado, apesar de pressuporem a execução correcta da sentença[ix].

VIEIRA DE ANDRADE parece seguir o mesmo entendimento, apesar de inserir a execução de sentenças que imponham uma obrigação de conteúdo negativo num número relativo a outras hipótese de “execução de sentenças não expressamente previstas”[x], já que diz que a execução destas se consubstanciará numa prestação de facto positivo.

Aspectos gerais:

O CPTA apenas regula a execução das sentenças favoráveis ao particular e desfavoráveis à Administração – artigo 157º/2.

Existem formas de execução diferentes e funcionalizados aos pedidos que foram formulados no processo declarativo. Vamos encontrar a execução para a prestação de factos ou coisas (arts.162º a 169º), a execução para o pagamento de quantia certa (arts.170º a 172º) e execução de sentenças de anulação de actos administrativos (arts.173º a 179º), correspondendo as duas primeiras a pedidos de condenação no processo declarativo e a última a um pedido de declaração/simples apreciação ou constitutivo.

Prevêem-se duas formas de execução de sentenças. A espontânea e/ou voluntária por parte da Administração, não sendo neste caso necessário o particular pedir a execução da sentença ao Tribunal[xi]; e a execução voluntária e/ou forçada, quando resulte de petição de execução por parte do interessado.

Existem prazos diferentes para o cumprimento espontâneo tendo em conta o tipo de execução em causa: três meses para a execução de sentenças de anulação de actos (art.175º//1) e de prestação de factos e coisas (art.162º/1), e trinta dias para o pagamento de quantia certa (art.170º/1).

A competência para dar execução à sentença cabe ao órgão tem o dever de prestação de factos ou de coisas, que está obrigado ao pagamento da quantia certa ou ao órgão que tenha praticado o acto entretanto anulado (artigo 174º/1).

Por outro lado temos a execução que resulta da instauração de uma petição para a execução da sentença. Esta poderá ser voluntária se após a sentença de execução o órgão da Administração cumprir o que foi determinado no prazo determinado ou poderá ser forçada se intervierem outros órgãos que se substituam ao órgão competente (por exemplo, artigo 167º/2 e 3).

O tribunal competente varia, apesar de a regra, prevista no artigo 164º/1, ser a da competência atribuída ao tribunal que decidiu a causa em primeiro grau de jurisdição, não devendo ser feita uma interpretação literal do artigo 161º/4, quando refere “…o tribunal que tenha proferido a sentença”, mas sim uma interpretação sistemática e ainda apelando ao lugar paralelo que se encontra nos artigos 85º e seguintes do CPC[xii]. Poderá ainda caber ao STA, nos termos do artigo 24º/1 d) do ETAF.

A legitimidade pertence a quem foi parte na acção declarativa, nomeadamente ao Ministério Público se foi parte, a qualquer pessoa se a sentença produzir efeitos erga omnes, devendo ainda aplicar-se as regras gerais de legitimidade[xiii].

O prazo para propor a petição de execução é de seis meses a contar do término do prazo para execução espontânea (artigos 164º/2, 170º/2, 176º/2). Vieira de Andrade entende que também deve ser de aplicar neste âmbito o artigo 58º/4 que prevê a figura do justo impedimento e do erro desculpável ou induzido pela Administração[xiv].

Por fim, é de referir que a órgão obrigado a executar a sentença pode licitamente não o efectuar em caso de impossibilidade absoluta ou de grave prejuízo para o interesse público nos casos de execução para prestação de facto ou coisas (artigo 163º/1) e execução de sentenças de anulação (artigo 175º/2). Para o caso da execução para o pagamento de quantia certa prevê-se a possibilidade de invocação de facto superveniente, modificativo ou extintivo da obrigação (artigo 171º).

O que achei mais interessante:

Não analisarei detalhadamente cada tipo de execução, apenas referirei o que me chamou mais à atenção.

Achei curioso que na execução para prestação de factos ou de coisas exista uma sanção pecuniária compulsória que recai sobre o(s) titular(es) do(s) órgão(s) administrativo(s) quando tal se justifique (artigos 169º e 3º/2).

O engraçado é que pelo incumprimento de uma prestação por parte da Administração (pessoa colectiva) se irá sancionar uma outra pessoa. À primeira vista parece um pouco chocante que responda o património de uma pessoa que não é a que efectivamente incumpriu com a sua obrigação. No entanto esta solução explica-se relativamente bem, uma vez que se formalmente quem toma a decisão (ou quem não a toma) é a Administração, materialmente o decisor é a pessoa sobre quem vai recair a sanção pecuniária compulsória (isto devido à natureza e à forma como são tomadas as decisões nas pessoas colectivas)[xv].

Não colide com valores do sistema, estando-se desta forma a prosseguir um direito fundamental previsto no artigo 268º/4 da CRP – a tutela jurisdicional efectiva – que de outra forma poderia ser posto em causa, já que no fundo não recairia sobre “ninguém” o incumprimento da sentença executória, não havendo por isso alguém motivado a executar.

É também que o processo de execução de sentenças de anulação tenha, de certa forma, enxertado um processo declarativo (ver 176º/3, 4 e 5; e 179º). De facto se no processo declarativo o Autor se “limitar” a pedir a anulação do acto administrativo, o que consegue é uma sentença com eficácia constitutiva que reconhece a invalidade. Contudo desde que entra em vigor o acto produz efeitos, nomeadamente materiais que prejudicaram/prejudicam os particulares tornando-se necessária a sua destruição. Para conseguir tal efeito é necessário cumular o pedido de anulação com um pedido de condenação da Administração ao restabelecimento da situação hipotética ou à prática do acto devido[xvi]. Como tal pode não acontecer, é o próprio CPTA que o admite, desde logo no artigo 47º/3, conjugado com os artigos 173º e seguintes.

  Esta opção poder-se-á justificar com um pouco de história. No passado apenas se reconhecia o recurso de anulação, em que o único pedido admissível era a anulação do acto administrativo. Só mais tarde na fase executiva é que se conferia aos lesados a possibilidade de, nomeadamente pedirem a condenação da administração a reconstituir a situação que existiria não fosse o acto ilegal[xvii].

Hoje, talvez de uma forma uma pouco paternalista ou de excesso de zelo (em favor do lesado) continua a admitir-se tal hipótese não obstante já serem admitidos pedidos condenatórios, entre muitos outros (devido à cláusula do designativa do artigo 37º/2).



[i] SÉRVULO CORREIA, A Execução das Sentenças proferidas em Recurso Contencioso pelo Tribunal Administrativo de Moçambique, página 5 e 6;
[ii] SÉRVULO CORREIA, A Execução das Sentenças proferidas em Recurso Contencioso pelo Tribunal Administrativo de Moçambique, páginas 9 e 10;
[iii] VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido, Almedina, páginas 11 a 144;
[iv] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,2ª Edição, 1997, página 25;
[v] SÉRVULO CORREIA, A Execução das Sentenças proferidas em Recurso Contencioso pelo Tribunal Administrativo de Moçambique, página 12 e VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 13ª Edição, Almedina, 2014, página 364;
[vi] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,2ª Edição, 1997, página 26 e 27;
[vii] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,2ª Edição, 1997, páginas 31, 32 e 33 ; VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa,  páginas 360, 361 e 362; VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um Contencioso administrativo dos particulares, Almedina, página 251, quanto aos motivos invocados para não se ver com bons olhos o processo executivo em contencioso administrativo;
[viii] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,2ª Edição, 1997, página 33;
[ix] DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Almedina,2ª Edição, 1997, página 38;
[x] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 379;
[xi] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 360, nota de rodapé 988 para a distinção entre voluntário e espontâneo;
[xii] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 368, inclusive nota 1017;
[xiii] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, páginas 369 e 370;
[xiv] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 372;
[xv] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 387;
[xvi] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, página 377;
[xvii] VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo dos particulares, página 250.

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