sábado, 6 de dezembro de 2014

Do recurso de anulação, passando pela reforma de 02/04 e a ação administrativa especial(de impugnação de ato administrativo)

Para analisar o que é hoje a figura da acção administrativa especial, na modalidade de impugnação de acto administrativo é necessário voltar um pouco atrás e fazer uma breve referência ao instituto do recurso de anulação que, pela primeira, foi substituído aquando da reforma do contencioso administrativo de 2002/2004.

A ideia principal a reter é que, pese o nome que então lhe era dado, de recurso, o instituto não era um recurso propriamente dito: destinado à obtenção de uma apreciação jurisdicional de segunda instância. O recurso de anulação era sim, verdadeiramente, um meio processual para a impugnação de actos administrativos. E apesar de se denominar de anulação, as sentenças proferidos nesta sede tinham outros efeitos que não o efeito demolitório próprio da anulação. Surgiam em sede de recurso de anulação sentenças com efeitos condenatórios ou de simples apreciação, afastando a ideia de que as sentenças de anulação só poderiam conter efeitos cassatórios, sem esquecer o facto de existirem outros efeitos com natureza conformativa e repristinatória.

Porém, era evidente a inexistência de um conteúdo adequado da sentença face aos efeitos que eram produzidos pela mesma. Estes efeitos, que não eram efectivamente demolitórios (próprio da anulação), não eram vistos como efeitos principais: na maior parte dos casos eram considerados acidentais. Constata-se assim, como bem realçou o Professor Vasco Pereira da Silva, que o recurso de anulação não era apenas de anulação, se analisados os efeitos das sentenças.

Antes de prosseguir na análise dos efeitos das sentenças proferidas no âmbito do recurso de anulação, é necessário reter a ideia que a doutrina dominante antes da reforma do contencioso entendia que o único pedido que era admissível era o de anulação do ato administrativo, daí que, pese embora o que foi dito sobre os outros efeitos obtidos pelas sentenças de recurso de anulação, os efeitos das sentenças dali decorrentes eram de natureza essencialmente constitutiva ou anulatória, o que subtraí-a uma certa utilidade às sentenças, uma vez que, em muitas situações, o acto administrativo já tinha sido executado ou estava em execução. Nestas situações, para que o direito lesado fosse devidamente tutelado, o pedido de anulação do acto não era efectivamente suficiente (tendo em conta a perspectiva do recurso de anulação, nestas situações só era permitido ir para além do pedido - de anulação - através do antigo processo declarativo de execução). Efectivamente, só nos casos de execução de actos que se encontravam suspensos é que o simples pedido de anulação chegaria para a tutela do direito do particular afectado.

É neste ponto essencial que a reforma do contencioso de 2002/2004 deu um grande passo em frente: abriu com a substituição do recurso de anulação pela acção administrativa especial, na qual se passou a permitir não só a anulação do acto em si como também a cumulação de pedidos, levando à apreciação de toda a relação material controvertida. O objecto do litígio já não se circunscreve à anulação do acto administrativo – como era próprio do recurso de anulação - mas passa antes a englobar toda a relação jurídica administrativa no âmbito da qual foi emanado o acto impugnado, como objecto da acção administrativa especial.

O ponto de viragem versou exactamente sobre a admissibilidade de serem formulados pedidos cumulativos a nível geral e, consequentemente, com a possibilidade dessa cumulação também se verificar com o pedido de anulação de acto administrativo lesivo. De referir ainda que esta cumulação, como indica o Professor Miguel Teixeira de Sousa, parece dar bastante relevância à cumulação aparente (brevemente definida como aquela que tem uma mesma e única utilidade própria, sem se auferir benefícios autónomos pela procedência de cada um dos pedidos).

Assim, como resulta do entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, da livre admissibilidade dos pedidos houve uma errónea compreensão generalizada, considerando-se que tudo aquilo que vai para além do pedido de anulação consubstanciava uma verdadeira cumulação de pedidos. É preciso considerar que no contencioso actual os actos administrativos impugnáveis são todos aqueles capazes de provocar uma lesão ou afectar as posições de particulares. Temos, nesta medida, presente uma ideia subjectivista do contencioso administrativo: houve, na verdade, a alteração da própria definição do que é acto administrativo, onde a cumulação dos pedidos veio permitir a tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares nas relações jurídico-administrativas. Não nos referimos apenas às relações bilaterais entre o particular e a Administração, mas também ao caso das relações multilaterais/poligonais, englobando também aqui a tutela de terceiros (como, bem ou mal – mal no nosso entender – se tende a classificar estas partes).

Deu-se assim cumprimento à exigência plasmada no artigo. 268.º/4 da CRP, onde se consagra um direito fundamental de impugnação administrativos que são susceptíveis de lesar terceiros (critério do acto lesivo, também acrescentado pela reforma do contencioso de 2002/2004), sem, no entanto, esquecer os outros mecanismos que permitem a impugnação de actos administrativos, quando esteja em causa a tutela directa da legalidade e do interesse publico (acção popular e acção pública). O legislador formulou, nesse sentido, o artigo 51.º/1 CPTA, abarcando as duas realidades da tutela das relações jus-administrativas.

A final, deixemos clara a referência de que, no CPTA, só os actos de conteúdo positivo podem ser objecto de um processo de impugnação, dirigido à anulação ou declaração de nulidade. Face aos actos de conteúdo negativo, a forma contenciosa de reacção passa pela condenação a prática de ato devido - veja-se atentamente o 51.º/4 do mesmo diploma legal. O artigo 51.º/4 refere-se, pois, essencialmente aos casos em que há unicamente um pedido de anulação de um acto administrativo, pedindo-se somente a condenação à prática do acto devido. Em cumulação, não existe a necessidade de alterar a petição inicialmente formulada. Caso o autor não substitua a petição, nos casos em que apenas deduz pedido de anulação, haverá a absolvição da instância, nos termos do artigo 89.º CPTA.




Bibliografia:
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, «Cumulação de P. e C.A no C.A», in «Cadernos de J.A» cit.,nº34,Julho/Agosto 2002
VASCO PEREIRA DA SILVA, «Em busca do Ato Administrativo Perdido»
VASCO PEREIRA DA SILVA, «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise»


Andreia Viegas

Nº21701 

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