sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Ir para além da letra da lei no Contencioso Pré-Contratual


I.                   Perspectiva Histórica

No domínio da LPTA, o contencioso administrativo era um regime de matriz meramente cassatória, cabendo ao tribunal poderes de pronúncia sobre um juízo de legalidade e onde o recurso contencioso de anulação era o meio processual por excelência, nele se confundindo e a ele praticamente se resumindo todo o comentário administrativo. O contencioso pré-contratual não tinha qualquer autonomia processual, isto é, não era objecto de qualquer disciplina processual autónoma, sendo a tutela jurisdicional assegurada pelo recurso contencioso de anulação e pela impugnação de normas, inexistindo qualquer medida cautelar específica que não a tradicional suspensão da eficácia do acto regulada no artigo 76º e ss. da LPTA, que, em geral, não granjeava particular simpatia na jurisprudência nacional e em especial no domínio da contratação pública. O que delimitava o recurso à via jurisdicional era o critério do acto lesivo, com todas as dificuldades a ele inerentes, e já não o tipo de contrato para cuja formação existia o procedimento.
Da génese do D.L nº 134/98, de 15 de Maio nasceu a chamada “contratação pública” entendida em sentido amplo, deixando de abarcar só a aquisição ou locação de bens e serviços, e ganhando um peso particularmente relevante numa economia débil como a portuguesa.
Foi por imposição comunitária para transposição da “Directiva-Recursos”, e sob a ameaça de propositura de acção contra o Estado português por incumprimento, que surgiu o D.L nº134/98, de 15 de Maio. Os referidos comandos comunitários, impunham a concretização de uma tutela jurisdicional, não só ao nível de anulação dos actos ilegais, mas também pela  imposição de uma tutela cautelar para impedir que os actos ilegais produzissem efeitos lesivos para os particulares.
Este D.L acabou por se tornar num trampolim para alguns aspectos, senão mesmo a quase totalidade, do regime do contencioso pré-contratual hoje previsto no CPTA, pelo que foi um passo importante para a tutela dos particulares nos procedimentos para a formação de contratos.
A Lei 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, veio alterar o ETAF e o CPTA e adiar a entrada em vigor destes dois diplomas para 1 de Janeiro de 2004. O legislador ao saber que iria transpor para o CPTA o regime- aperfeiçoado- do D.L nº 134/98, de 15 de Maio, ao mesmo tempo que sabia que a entrada em vigor deste seria prolongada por mais um ano, antecipou-se na correcção das deficiências que lhe eram apontadas.
Foram adicionados os contratos de concessão de obras públicas, ao mesmo tempo que se possibilitou a impugnação das normas constantes dos programas de concurso e cadernos de encargos, também há muito reclamada, como forma de pôr termo ao sistema dualista do regime especifico de impugnação de actos respeitantes aos procedimentos pré-contratuais, por um lado, e o regime geral da impugnação de normas que regulam os mesmos procedimentos, por outro.
O “malfadado” prazo de 15 dias passou a ser de 1 mês.
Podemos, assim, dizer que o D.L nº 134/98, de 15 de Maio, na sua fase embrionária, ao que se seguiram as alterações pela Lei nº4-A/2003, de 19 de Fevereiro, ainda que para uma vigência transitória, constituíram o primeiro regime de contencioso pré-contratual e uma ante-câmara do actual regime do CPTA.

II.                Contencioso Pré-Contratual no CPTA- Processo Urgente e tipo de Acção

O CPTA dedica um título específico aos “processos urgentes”, integrando diversos processos, agrupados nas categorias de impugnações urgentes e de intimações( artigos 97º e ss do CPTA).
A ideia de processos principais urgentes, caracterizados pela sua celeridade ou prioridade, radica na convicção de que determinadas questões ou tipos de questões, em função de determinadas circunstâncias próprias, devem ou têm de obter, quanto ao respectivo mérito, uma resolução pela via judicial num tempo curto. .
O CPTA, resolveu autonomizar, como processos principais urgentes, quatro espécies de processos: impugnações relativas a eleições administrativas, impugnações relativas à formação de determinados contratos, intimações para prestação de informações e intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias.
A designação legal de impugnações aponta para processos em que estará em causa, em primeira linha, a verificação da legalidade de pronúncias da Administração, mas tal não significa necessariamente que as correspondentes sentenças se refiram apenas à invalidade dos atos impugnatórios, isto é, que sejam, por definição, declarativas ou constitutivas, pois que, seguramente no caso dos processos eleitorais, mas também nos processos pré-contratuais, pode pedir-se e obter-se a condenação direta da Administração.

Reveste-se de particular importância situar a relação do contencioso pré-contratual na dicotomia Acção Administrativa Comum (de ora em diante, AAC) /Acção Administrativa Especial (de ora em diante, AAE).
O contencioso pré-contratual relacionar-se-á privilegiadamente com a AAE, sem prejuízo de acolher alguns aspectos da AAC, sobretudo no que toca a acções sobre contratos e à tutela indemnizatória, por força da cumulação de pedidos.
A identificação com a AAE é-nos dada triplamente pela intercepção dos artigos 37º,46º e 100º/1 e 2 do CPTA, respectivamente os preceitos que estabelecem o âmbito de aplicação da AAC, AAE e do contencioso pré-contratual.
Desde logo, da formulação genérica do 37º/1, ao que se segue a enumeração exemplificativa do nº2, depreende-se que estamos perante as relações administrativas paritárias( relações entre particulares e Administração- Administração não está investida no seu poder de autoridade)
A formulação excludente do 37º/1, atribui à AAC um carácter residual, em que só seguirão esta forma, os litígios que, no âmbito da jurisdição administrativa, não estejam previstos na forma especial.
Ora, bastava atentar na formulação do art. 100º/1 e 2 e do 46º/1 para percebermos que estamos perante processos com génese ou com base na AAE, porém expressamente excluídos desta pelo nº3 do 46º (delimitação negativa) e incluídos no contencioso pré-contratual(100º/1 CPTA)(delimitação positiva).
Tendo o contencioso pré-contratual a sua génese na AAE, não se limita à sua aplicação subjectiva, antes pelo contrário, terá subjacente toda a sua construção jurídica, incluindo, desde logo, os poderes de pronúncia do tribunal e a possibilidade de formulação dos pedidos. Quer com isto dizer que no âmbito do contencioso pré-contratual, os particulares poderão formular os seguintes pedidos:
a)      Anulação de um acto administrativo ou declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica
b)      Condenação à prática de um acto administrativo legalmente devido
c)      Declaração de ilegalidade de uma norma emitida a abrigo de disposições de direito administrativo ou comunitário
d)     Declaração de ilegalidade de não emanação de uma norma que devesse ser emitida ao abrigo das disposições de direito administrativo ou comunitário.
Mas, sempre, delimitados aos actos e normas, emitidos ou omitidos, no âmbito dos procedimentos para a formação de contratos previstos no 100º/1 do CPTA.

III.             Contencioso Pré-Contratual- Âmbito de Aplicação- Legitimidade Activa

A legitimidade deve ser entendida como “o pressuposto adjectivo através do qual a lei selecciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo levado a tribunal”( Acórdão do TCA Norte de 22.10.2009, processo nº 01352/08)
No que se refere à sua vertente ativa cumpre começar por dizer que é pacificamente admitido que, em concretização do disposto nos artigos 20º e 268º da CRP, o CPTA instituiu um modelo de contencioso marcadamente subjectivista, preocupado em primeira linha com a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados. Por este motivo, a legitimidade activa depende, em geral, de o autor alegar ser “parte na relação material controvertida”(artigo 9º/1 do CPTA).
Não obstante, no que se refere aos pedidos impugnatórios, esta regra geral sofre uma “adaptação”, visto que neste âmbito a lei não exige que o autor seja titular da relação material controvertida, assentando antes na alegação de ocorrência de uma lesão na esfera jurídica do autor.
Só terão legitimidade activa os titulares de direitos e interesses legalmente protegidos no procedimento administrativo pré-contratual. O controlo da legalidade será sempre assegurado pela legitimidade reconhecida ao MP, pelo que a subjectivismo não faz com que o controlo da legalidade fique no ar.(arts. 9º/2, 55º/2, 73º/2 CPTA)

Sobra, no entanto, a dúvida se poderá, ou não, obter-se, neste processo, a condenação à prática dos atos pré-contratuais devidos. É uma dúvida que não é susceptível de resposta normativa expressa por via da remissão do artigo 100º/1 CPTA, na medida em que a remissão não abrange o artigo 47º, que permite a cumulação de pedidos de anulação com pedidos de condenação, de reconstituição e de anulação do contrato, entre outros.
De facto, o texto legal apenas se refere à impugnação de actos ou documentos, e distingue estruturalmente as impugnações urgentes das intimações, que têm, por definição, carácter condenatório. Embora pela letra do artigo 100.º/1 e pela sua remissão do artigo 51.º/4, resulte não serem admitidos pedidos de estrita anulação de actos de indeferimento, sendo meio próprio a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido, já que não abrangida pelo carácter de urgência.
Vamos pois além da letra da lei e nada obsta em termos substanciais a que seja pedida e concedida a condenação, que, pelo contrário, se insere bem no espírito do direito reformado, de grande abertura processual em favor da tutela judicial efectiva que prefere a condenação nos casos de impugnação de atos negativos. Temos, também, o apoio da maior parte da doutrina, que através dos elementos teleológico e sistemático da interpretação da norma jurídica admite  a acção urgente prevista no artigo 100.º para as situações de acto de indeferimento, de omissão de decisão ou de inércia administrativa.
Por outro lado, também não se lhe podem contrapor obstáculos processuais decisivos, pelo menos nos casos em que o pedido condenatório seja cumulado com uma impugnação, na medida em que a regra geral da cumulação remete para a acção administrativa especial “com as adaptações que se revelem necessárias”.
Admitem-se, pois, não só pedidos de natureza impugnatória, como de natureza condenatória.

E o futuro? O futuro está com a posição de alargamento à condenação à prática do acto devido. O novo CPTA prevê no âmbito do contencioso pré-contratual o alargamento, e vem também estender o seu âmbito objectivo, passando a abranger todos os contratos que tenham sido precedidos de procedimentos pré-contratuais de direito público, desde logo os contratos previstos no artigo 6º/1 do Código dos Contratos Públicos.
Neste caso, ir para além da letra da lei não fez mal a ninguém, tornando mais efectiva a defesa dos particulares.

BIBLIOGRAFIA RELEVANTE

GONÇALVES, PEDRO, Contencioso Administrativo pré-contratual,in  Cadernos de Justiça Administrativa, CEJUR, nº44, Março/Abril, 2004

DIAS,PAULO LINHARES,O Contencioso Pré-Contratual no CPTA, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Setembro de 2007

VIEIRA DE ANDRADE, JOSÉ CARLOS, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014

CALDEIRA, MARCO, Da legitimidade activa no contencioso pré-contratual- em especial, os pedidos impugnatórios baseados na ilegalidade das peças procedimentais, Revista do Ministério Público 134, Abril/Junho, 2013

CABRAL, MARGARIDA OLAZABAL, Processos Urgentes Principais- Em especial, o contencioso pré-contratual, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº94, Julho/Agosto, 2012

CARVALHO, ANA CELESTE, A acção de contencioso pré-contratual- perspectivas de reforma, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº76, Julho/Agosto, 2009

Francisco Lourenço Cordeiro Ferreira, nº22067


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