domingo, 7 de dezembro de 2014

O Contencioso Pré-Contratual: uma mudança de paradigma. Da prepotência da Administração à tutela judicial efectiva.
1.      Introdução

Os processos urgentes são aqueles que concernem a uma ágil e rápida decisão de fundo. Não se trata, efectivamente, de uma premência no que toca ao acautelamento da utilidade de certos processos – confusão algo comum.

·         Se o legislador estabelece alguns processos especiais estará, em princípio, a declarar que o tempo razoável ou adequado de um determinado processo, nos casos que se encontram tipicamente previstos e estipulados, é inequivocamente mais curto que nos demais.

·    Dá-se, portanto, uma redução do período do processo temporalmente justo – o que influi, subsequentemente, no facto de a ordem jurídica acabar por impor a tomada de uma decisão mais célere.

E esta é a primeira grande questão que se coloca ao legislador, quando confrontado com este tipo de processos: saber quando haverá de adoptar as diligências intrínsecas aos processos que requerem uma certa urgência – ou seja: aferir mediante os circunstancialismos mais actuais, quais os processos meritórios de tal tutela urgente. Uma vez tomada a opção por parte do legislador, incumbe ao julgador – e restantes intervenientes processuais – respeitá-la e tratar como «urgente» aquilo que como tal foi, na letra da lei, pelo legislador.

2.      A urgência no contencioso pré-contratual pré-reforma

Foram múltiplas as razões pelas quais o nosso legislador, no contencioso administrativo, acabou por consagrar a urgência quanto a alguns processos – intui-se a concessão de tal tutela em virtude da natureza dos direitos que estão em causa.
Porém, coisa diferente sucede no que respeita à urgência instituída no contencioso pré-contratual – e isto graças à escassa margem de liberdade que é dada ao legislador nacional: de facto, por imposição da União Europeia, é exigido que se preveja uma tramitação mais célere em matéria de contencioso pré-contratual. E o que foi dito acabará por ter consequências. Ou seja: constatar-se (ou não) alguma razão de ser em se suscitar determinados processos urgentes costuma ter reflexos na forma como estes correm.

·         Frequentemente os juízes têm uma percepção de que a decisão tem de estar em consonância/e ter uma adequação quanto à situação de facto sobre a qual aquela irá recair - há, então, uma assunção pelos juízes de que o tempo de justiça tem de ser ajustado ao tempo real.

·         Sofre-se, no entanto, uma importante distorção no domínio do contencioso pré-contratual – no qual já inexiste este tipo de percepção por parte do julgador, muito por causa de tal epíteto de «urgente» advir de uma imposição alheia ao legislador português. Trata-se, assim sendo, de uma exigência do legislador europeu, pelo que apenas se sente que tais processos são obrigatórios em razão de tal imposição – e só por isso, frise-se.  

É esta noção – uma intuição não-racionalizada – que faz com que exista uma maior complacência por parte do próprio julgador face à demora do processo do contencioso pré-contratual do que com os demais processos urgentes. Poder-se-á, portanto, depreender que o contencioso pré-contratual não está, de todo, a funcionar, como processo realmente «urgente».

Mas não se pretende denotar o mau funcionamento do processo urgente no seio do contencioso pré-contratual – o que importa dizer-se a este respeito é que tal urgência declarada (legislada) parece não ser suficiente para que o processo seja efectivamente célere: a urgência do processo tem de ter uma razão de ser/tem de ser percebida enquanto tal pelo juiz.

Pode ainda adiantar-se outra causa para os já aludidos atrasos no contencioso pré-contratual: na generalidade dos casos encontram-se a correr dois processos urgentes sobre o mesmo assunto e com as mesmas partes – a providência cautelar e o processo principal – o que implicará dificuldades acrescidas ao juiz: este terá a tendência, quando confrontado com esta situação, para não considerar o processo principal tão urgente como seria de perspectivar – pensará, portanto, que a decisão tomada aquando da providência cautelar foi suficiente para tutelar os interesses em jogo.
Estes contornos fazem com que haja uma falta de crença total quanto à obtenção de uma decisão de fundo em tempo útil – mais propriamente: uma ausência de esperança quanto à utilidade de se recorrer àquela via judicial. E isto porquê?

- Primeiro, porque o advogado tem a consciência de que o mais provável é não conseguir o deferimento da providência cautelar que requereu – o que é fruto de naquela se ter uma ponderação de interesses bastante desequilibrada: na verdade, o prejuízo sério do requerente é o de não celebrar o contrato objecto de procedimento sob juízo, mas tal prejuízo é – regra geral - entendido como «insuficiente» para consubstanciar um interesse minimamente relevante e para que se justifique o decretamento da providência cautelar; já o interesse do ente público em prosseguir com o contrato é quase sempre protelado de «urgente» – sendo visto como essencial para a satisfação do interesse público que aquele não seja paralisado na sua actividade de contratação. E são raras as vezes em que isto não acontece.

Segundo, porque com a demora do processo principal, há uma enorme probabilidade de se obter uma decisão favorável que não poderá ser executada por causa legítima de inexecução, uma vez celebrado o contrato – ou seja: na hipótese de não ser invocado um prejuízo grave para o interesse público, será arguida impossibilidade absoluta na execução.
Só com a expectativa de uma célere tutela judicial é que se irá suprimir a prepotência do Administração Pública no âmbito dos processos do contencioso pré-contratual: despreocupada, usa e abusa das veleidades que lhe são permitidas, e faz da ineficaz tutela judicial um trunfo para fazer valer os contratos ainda em execução – a expectativa da entidade adjudicante é a de que o processo do contencioso pré-contratual urgente irá demorar, logo, prefere continuar com a execução do contrato como se o processo não estivesse a ser discutido em tribunal.

3.      Pistas para repensar o contencioso pré-contratual

Foram sendo dado pistas para a reforma que se veio a verificar – veja-se a súmula dos contributos daqueles que pugnaram por uma alteração efectiva do regime do contencioso pré-contratual.

a)      Ponto de partida: reconhecer as «dificuldades» e revitalizar a figura

Conforme se referiu, a urgência do contencioso pré-contratual, embora seja exigível à luz de várias directivas comunitárias, não pode ser percebida pelos juízes como uma realidade imposta – pede-se aos juízes que vão mais longe e tentem compreender a sua razão de ser.
Já se disse, também, que a urgência do contencioso pré-contratual tutela o interesse de todos os intervenientes processuais - dando provimento à necessidade de que seja proferida uma decisão de fundo com alguma celeridade – que se irá repercutir na esfera de todos os envolvidos. E o que está aqui em causa é a premência de se estabilizar – quanto antes – a legalidade dos actos proferidos nos procedimentos pré-contratuais, de modo a induzir confiança nos contratos celebrados: trata-se de viabilizar um mercado de contratação pública são e transparente, em que a concorrência funcione de forma efectiva e as empresas actuem em condições de igualdade para se tornarem co-contratantes da Administração Pública – com base no mérito, portanto.

Ou seja: o que é importante é que os juízes se apercebam do peso que os contratos públicos têm para o funcionamento economia e que lhe confiram a relevância que efectivamente merecem. Só – e apenas assim – (partindo-se desta posição de principio) é que se justificará que os processos que lhe dizem respeito tenham natureza urgente e funcionem de forma célere – ao abrigo de um tratamento prioritário.

Diga-se, ainda, que a expectativa dos intervenientes processuais é fundamental. Se faltar a confiança na tutela judicial, falhará, em muitos casos, a adesão ao próprio procedimento, e assim a sua possibilidade de sucesso.

b)     Passo inevitável: traçar novas soluções

Posto isto, reflicta-se. Que alterações legislativas podem ser propostas para reforçar essa confiança e essa tutela?
Parece que aquilo a que se deve dar prioridade é à existência de uma decisão de fundo rápida e agilizada – proferida o mais depressa possível. E isto porque os interesses que estão em jogo só serão tutelados quando é posto um fim ao litígio e quando há segurança quanto à viabilidade legal do contrato.

·         (1) Pode começar-se por dizer que nalguns casos – senão na maior parte deles – o interesse que deve ceder é o da imediata execução do contrato. E isto parece claro - não se justifica o receio em atrasar a execução dos contratos celebrados na sequência de actos de adjudicação impugnados – é, aliás, no mínimo, incoerente, que tal entidade adjudicante invoque urgência na celebração do contrato, quando ela mesma demorou bastante tempo na tramitação do concurso público que a antecedeu.

·         (2) Outra coisa que há a repensar – tal como já foi adiantado anteriormente – é a tramitação processual da impugnação destes actos pré-contratuais. Muito resumidamente: caso se pretenda impugnar um acto daquele tipo, normalmente, requer-se uma providência cautelar e propõe-se uma acção principal – e isto em simultâneo; e o juiz ao ser chamado a decidir quanto a ambos os processos urgentes – referentes ao mesmo assunto – pode ter uma/de duas atitudes, que espelham a irracionalidade de que se reveste este sistema.

i)                    Decidir ambos os processos nos prazos previstos na lei
Neste caso estará a analisar perfunctoriamente a questão da legalidade na providência cautelar para – um mês e meio depois – proferir uma decisão de fundo quanto á questão da legalidade na acção principal. Ficar-se-á, então, a pensar porque é o juiz teve de analisar a mesma questão duas vezes – num intervalo de tempo tão curto – em vez de a decidir definitivamente logo da primeira vez que a analisou. Não se estará a sobrecarregar desnecessariamente o trabalho do juiz?

ii)          Atrasar-se logo na decisão da providência cautelar e consequentemente no processo principal urgente
E até que ponto é que isto fará sentido/terá nexo quando a análise sumária de uma questão de legalidade de um acto – como sucede na providência cautelar – costuma estar associada a um prazo extremamente curto?
Perante tudo isto: alguns autores defendem que se termine de uma vez por todas com esta duplicação de processos no seio do contencioso pré-contratual - deixaria de haver providências cautelares e existiria somente uma acção principal urgente – VASCO PEREIRA DA SILVA, MARGARIDA OLAZABAL CABRAL, entre outros.

E não posso deixar de aplaudir quem defende esta posição. Tal como não deixarei de assentir na solução que dão para a sua concretização – seria absolutamente despiciendo propor uma alteração legislativa que não abrangesse toda realidade sobre a qual se debruça: não chega sugerir-se a supressão das providências cautelares – é crucial adiantar-se o que irá acontecer quanto aos actos impugnados na pendência da decisão de fundo – que efeitos terá, portanto, a impugnação do acto?
Passaríamos, então, a ter um contencioso pré-contratual urgente, consubstanciado numa acção principal, com efeitos suspensivos automáticos sobre o procedimento, e com possibilidade de serem levantados pelo juiz. Pedir-se-ia, portanto, ao juiz que aquando da decisão de levantamento da suspensão dos efeitos ponderasse o que estaria em causa naquele contrato e quais as consequências que acarretaria a sua decisão – pedindo-se, ainda, que o fizesse não com base em juízos pré-feitos e verdades pré-concebidas, mas através de uma percepção da realidade concreta.

Tal como VIEIRA DE ANDRADE diria: no caso do contencioso pré-contratual o juiz é chamado a apreender a globalidade da realidade que está em causa, a «mergulhar» nela, e, desde logo, a compreender que contrato é aquele (…) e aquilo que envolve – sendo certo que nem todos os contratos públicos são urgentes - há uns mais urgentes que outros. Continuando: a realidade é mais rica do que aparenta ser – é mutável e multifacetada – e ao juiz pede-se que apreenda essa riqueza para poder decidir.

Não resta outra alternativa que não confiar no juiz na realização desta tarefa: a urgência impõe que se confie no juiz no que à tramitação processual diz respeito – deve conferir-se-lhe poder para decidir a questão muito rapidamente – se for o caso – adequando a marcha do processo à urgência real/concreta da decisão.

4.      Novidades no domínio do contencioso pré-contratual

O Projecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos contempla – como não poderia deixar de ser – múltiplas propostas de alteração ao regime do contencioso pré-contratual (que surge previsto nos arts.º100 a 103 do CPTA).
Dir-se-á que não poderia deixar de ser porque esta matéria sofre – porventura como nenhuma outra no seio do CPTA – a influência do Direito da União Europeia. Ora, na medida em que ainda não se tinha efectuado uma modificação com o intuito de adequar a disciplina legal em conformidade com as alterações introduzidas à Directiva Recursos pela Directiva 2007/66/CE – isto quando é consensualmente admitido que a aprovação do Decreto-Lei 131/2010 de 14 de Dezembro se revelou apenas pretensa: não foi suficiente na transposição integral para o nosso ordenamento jurídico interno do regime daquela Directiva.

De todo o modo, constatou-se que as alterações propostas pelo Projecto de Revisão não foram muitas nem se afiguraram muito radicais – o que o legislador pretendeu foi fundamentalmente preservar o regime tal como está – abdicando, pelo menos, nesta fase, de «emancipar» o contencioso pré-contratual e de repensar «de alto a baixo» o modelo já existente.

a)      103º-A

Sem prejuízo de todas as alterações que tal Projecto de Revisão implementou – ou visará instituir – cumpre sublinhar aquelas que são referentes aos mecanismos destinados a assegurar a utilidade da sentença: de facto, foi neste ponto, que se verificaram as maiores inovações. O Projecto prevê, agora, o aditamento de um novo art.º103-A, cujo nº1 consagra um efeito suspensivo automático da impugnação da decisão de adjudicação – mas tal suspensão só procederá se aqueles efeitos conseguidos por intermédio do acto impugnatório não tiverem sido obtidos, anteriormente, através do requerimento de uma providência cautelar.

Trata-se de uma solução que já fora reclamada pela doutrina. Cite-se, a este propósito, e em particular, MIGUEL PRATA ROQUE. Para MIGUEL PRATA ROQUE a reforma do contencioso administrativo «abriu novos mundos ao mundo» mas revelou-se pouco ambiciosa quanto às providências de suspensão de eficácia dos actos administrativos – e porque é que haveria concordância face à sugestão suscitada na discussão pública inerente a este acto revisivo?

Diga-se, antes de mais: a principal vantagem apontada à suspensão automática da eficácia do acto administrativo assenta no reforço da tutela dos direitos dos administrados, visto que traduz o reconhecimento da inexistência de uma (alegada) presunção de legalidade dos actos administrativos – deste modo tomar-se-ia inequívoco partido pelos interesses dos particulares, justificado pela situação de inferioridade em que estes estão colocados perante a «autorictas» da Administração.
Para si – e para todos aqueles que comungavam da sua tese – não custaria rigorosamente nada reconhecer que ao estar-se a aceitar tal suspensão automática da eficácia far-se-ia com que se estivesse a colocar uma lápide sobre o sepulcro da presunção de legalidade dos actos administrativos (…) - e apesar desta já não dar sinais de vida, ainda há quem não aceite a sua morte.

Acresce ainda que esta consagração da suspensão automática da eficácia dos actos administrativos impugnados seria ajustada à criação de um reforço das cautelas da Administração, em matéria de legalidade (…) dos actos a adoptar.

Na verdade, e como bem nota MARCO CALDEIRA, o perigo de constituição de uma situação de «facto consumado», em caso de não suspensão do procedimento pré-contratual, encontra-se aqui, por definição, preenchido, já que se o contrato for celebrado e executado na pendência da acção, se e quando for proferida uma sentença favorável ao autor, já não haverá qualquer procedimento pré-contratual para retomar nem qualquer contrato para executar (…), haverá antes uma impossibilidade de reconstituição da situação actua hipotética em que o autor se encontraria caso o acto ilegal não tivesse sido praticado, o que esvazia a tutela primária do autor e o remete para uma tutela meramente indemnizatória.

Uma vez que é extremamente árduo e complexo (senão impossível) obter-se o decretamento de uma providência cautelar de suspensão de eficácia – o que acarreta consequências drásticas para a tutela jurisdicional efectiva do autor, secundarizando-a/relegando-a para segundo plano – julga-se completamente louvável tal solução decorrente do art.º103-A.

a)      103º-B

Este mecanismo da suspensão automática, que apenas opera quando a decisão impugnada se trata, portanto, e apenas, da decisão de adjudicação, surge depois complementada através da possibilidade, prevista no (igualmente novo) art.º103-B – este confere a hipótese de se adoptarem medidas provisórias, também elas, dirigidas a prevenir o eventual risco de aquando do proferimento da sentença se ter constituído uma situação de facto consumado (nº1) - sendo que lhes estarão associados inúmeros efeitos, entre os quais, e designadamente, a suspensão da eficácia do acto impugnado. Isto é: independentemente do que aconteça no decurso da acção principal – previamente interposta – o autor dispõe de vários instrumentos habilitados a paralisar o procedimento pré-contratual e a suspender a eficácia do acto impugnado no processo – seja a decisão de adjudicação ou qualquer outro acto praticado pela entidade adjudicante.

- ALEXANDRA LEITÃO[1] dá conta da existência de uma «clara zona de sobreposição» entre este preceito (103º-B) e as providências cautelares previstas no art.º132, uma vez que estas se aplicam a todos os processos relativos à formação de contratos e este se aplicará a todos os que sejam tramitados através de um processo urgente dos arts.º100 e ss.

1.      Bibliografia

-    - J.C. VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 12ª Edição, Almedina 2012

- M. AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime Do Processo Nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2ª Edição

- M. OLZABAL CABRAL, Processos Urgentes principais – Em especial e contencioso pré-contratual, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº94, Julho/Agosto, 2012

- M. CALDEIRA, O fim da impugnação unitária no contencioso pré-contratual? A propósito do Acórdão do STA de 27.01.2011, in Revista do Ministério Público, nº 126

- A. LEITÃO, O novo contencioso pré-contratual: em especial, o âmbito de aplicação e o prazo de propositura da acção, in Anteprojecto de Revisão - CPTA

André Gomes, nº22079



[1] Em qualquer dos casos abrangidos pelos arts.º mencionados é conferido o exercício do contraditório por parte da entidade adjudicante e dos contra-interessados (arts.º103-A/2 e 3 e 103-B/2) – e mediante estas pronúncias, o tribunal deverá concluir que, no caso concreto, o acto ou procedimento não deve, afinal, ser suspenso. Esta ponderação deverá encontrar-se condicionada pelos quesitos que promanam do art.º120/1 e 2 – numa alusão aos critérios convocados na decisão do decretamento/indeferimento das providências cautelares.

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