domingo, 7 de dezembro de 2014

Uma Administração Silente? A (in)admissibilidade do Deferimento Tácito

Lígia Rocha Nº21500
1.Considerações Iniciais
       Chama-se deferimento tácito à atribuição de um efeito de acolhimento da pretensão do particular face à inactividade administrativa. Aqui a inactividade administrativa tem como consequência a produção de um efeito positivo, e pressupõe a existência de um pedido do particular. O deferimento tácito é a consequência jurídica do silêncio da Administração, que uma vez mantido durante um decurso de lapso temporal, concede ao particular o correspondente à sua pretensão. O deferimento tácito forma-se a partir da aplicação de uma ficção a um facto jurídico que é o silêncio administrativo. Este acto ficcionado concede ao particular nos casos e condições legalmente previstas o correspondente à sua pretensão. Perante uma solicitação por parte do administrado, por exemplo de uma licença de construção, à qual a Administração não responde, ao fim de um determinado lapso de temporal, tem-se a sua pretensão por concedida.

2.O Deferimento Tácito no Divã da Psicanálise
       Face à escassez de preceitos na lei que esclareçam quais os preceitos do regime do acto expresso se aplicam ao deferimento tácito, só a determinação da natureza deste permite verificar se o regime do acto expresso lhe é aplicável, total ou parcialmente.
No que respeita à natureza jurídica da figura alguns autores defendem ser o silêncio uma técnica de interpretação da vontade administrativa., sendo o deferimento tácito uma interpretação legal do comportamento devido da Administração baseada na circunstância de que se esta tivesse algo a objectar tê-lo-ia feito antes do prazo para a formação do acto tácito. Aqui o acto administrativo é obtido através de uma particular forma de interpretação da vontade administrativa, não exteriorizada. Esta opinião é criticada já que, levada ao extremo, não conduz a uma automaticidade sem ponderação de indícios, sendo sempre necessário atender ao conjunto e elementos do procedimento administrativo para se poder optar pela interpretação mais coincidente com a vontade presumível daquele.
            MARCELLO CAETANO defende que o deferimento tácito tem a natureza de um verdadeiro acto administrativo pois a lei permite presumir de forma inilidível a existência de uma vontade indispensável à qualificação da realidade como tal. Para RAMON FERNANDEZ[1] o deferimento tácito funcionaria como uma espécie de direito de veto da Administração que esta apenas exerceria se entendesse, caso não o exercesse estaria a praticar uma declaração de vontade, um verdadeiro acto administrativo.
A Doutrina Italiana[2] defende a legitimação ex lege do diferimento tácito, sendo a que a permissão concedida ao particular decorre directamente da norma que o preveja. Neste sentido, é a lei que legítima o particular a agir no silencio da Administração. Assim, a lei não se destina a interpretar a vontade administrativa mas a suprir a sua ausência. Esta tese foi criticada por não assegurar uma tutela judicial eficaz porque sendo o deferimento tácito uma consequência puramente legal, não haveria acto administrativo ou equiparável que consubstancie um objecto possível para um recurso contencioso de anulação.
            Para parte da Doutrina[3], o deferimento tácito traduz-se numa presunção da vontade administrativa estabelecida por via da lei. De acordo com este entendimento na dificuldade de conhecer a vontade administrativa, a lei através de uma presunção permite a produção dos efeitos associados ao acto expresso. Esta seria uma presunção absoluta ou inilidível não sendo admissível prova em contrário, ou seja a demonstração de a vontade da Administração ser contrária à formação dão acto tácito. Este entendimento tem sido criticado por não corresponder a uma correcta acepção de presunção que não e uma forma de declarar vontades mas de conhecer a realidade, não sendo correcta esta acepção. A presunção seria o mecanismo quanto muito de equiparar um facto jurídico a outra realidade o acto.
            Para GIANNINI[4] o deferimento tácito seria uma técnica legal de interpretação do silêncio, consubstanciando uma interpretação legal do comportamento omissivo da Administração, baseada na circunstância de que se esta tivesse algo a revidar, tê-lo-ia feito antes do prazo para a formação do acto tácito. Neste prisma, estamos perante um acto administrativo obtido através de uma particular forma de interpretação da vontade administrativa, que não sendo exteriorizada como sucederia se de um acto expresso se tratasse, resultaria do papel elucidativo da lei.

3.Fundamentos do Deferimento Tácito e seu Regime Jurídico
       O deferimento tácito justifica-se pela necessidade da Administração não causar entraves ao exercício de direitos dependentes do seu controlo mas que já se encontrassem na esfera do Administrado, permitindo ao particular o exercício dos mesmos mesmo quando a Administração não se pronunciasse. Tem um triplo fundamento constitucional[5], resultando quer da garantia de celeridade procedimental; quer da necessidade de assegurar a protecção de determinados direitos constitucionalmente consagrados, podendo uma norma que consagre um regime de diferimento tácito ser considerada inconstitucional caso ofenda um valor constitucionalmente protegido. Por outro lado, visa-se a satisfação da exigência de uma tutela jurisdicional efectiva.
Quanto aos requisitos[6] para a formação do deferimento tácito é necessário que tenha havido um pedido a um órgão para que adopte um acto administrativo. O pedido do particular deve ser identificável e inteligível art.76.º nº3 CPA, não devendo o mesmo ser enquadrado em nenhuma das condições previstas no art.9.º nº2 CPA. Tem de ser dirigido a um órgão legalmente habilitado a adoptar o acto administrativo expresso que se solicita, com o fundamento de este ter o dever de se pronunciar quanto ao fundo da questão relativa à pretensão formulada art.9.º nº1 CPTA, salvo as situações de erro desculpável dos arts.34 nº1a) e 77.º CPA.
O particular tem o dever de formular o pedido em termos tais que coloque o pedido ao órgão administrativo competente para decidir. O art.108.° n°1 CPA consagra os casos em que é aplicável a regra do diferimento tácito, além dos previstos no n°3 do mesmo artigo.          
            Não se forma deferimento tácito[7], estando consequentemente a Administração obrigada a decidir, antes de decorridos dois anos desde um anterior pedido do particular como o mesmo objecto e fundamentos, e que tenha sido praticado acto administrativo quanto ao mesmo art.9.º nº2 CPA. Neste caso, a Administração tem a obrigação de transmitir ao administrado as razões que a levam a não apreciar o fundo da questão. Não existe dever de decidir[8] nos casos em que o pedido é apresentado por quem não tenha legitimidade para tal. Também não se forma deferimento tácito se o pedido do particular contiver deficiências ou insuficiências quanto aos elementos previstos no art.74.° CPA, com o fundamento de estes serem indispensáveis ao bom andamento do processo não podendo ser supridos. A Doutrina tem vindo a flexibilizar este requisito apenas sendo de admitir a inexistência de um dever de decisão quando os elementos em falta sejam imprescindíveis para a apreciação do mérito da causa, sob pena de se justificar a não formação do acto tácito por razoes excessivamente formais.


4.Reflexão Crítica: A Admissibilidade do Deferimento Tácito como propiciador de abusos?
A figura do deferimento tácito é considerada por FERNÁNDEZ PASTRANA[9] como propiciadora à adopção de comportamentos ilícitos. Contudo esta crítica não é procedente uma vez que está vedada ao particular a obtenção por via do acto tácito de deferimento a obtenção de algo que não poderia obter através de um acto expresso. Além disso o sistema é dotado de mecanismos para solucionar a existência desse tipo de actos, cominando com a sua invalidade.  
O deferimento tácito é para GONZÁLEZ PÉREZ atentatório do interesse público e do interesse de terceiros já que estes não são ponderados, sendo mais benéfico para certos particulares, prejudicando outros. Não podemos concordar com este entendimento porque caso se venha a verificar tal agressão à esfera jurídica de terceiros estes podem agir, impugnando o acto da Administração. É legítimo sacrificar o interesse público e de terceiros nos casos em que o interesse do solicitante saísse mais prejudicado. Além disso, o sacrifício imposto não é irreversível, nem absoluto[10], já que o deferimento tácitoé impugnável quer administrativa quer contenciosamente, como se de um acto se tratasse. Por outro lado, a regra da livre revogabilidade dos actos administrativos facilita a eliminação do indeferimento tácito pelo que os eventuais prejuízos que dele advenham podem ser facilmente resolvidos.
Noutro prisma, há quem sustente ser esta figura uma devolução[11] da competência decisória administrativa para os particulares, o que pode ser indesejável. Contudo, esta trata-se de uma situação face aos valores em presença em que é inexigível ao particular que se resigne perante uma não tomada de posição por parte da Administração e a que o legislador face aos interesses em jogo optou previamente por proteger a posição do particular. Salienta-se que a posição do particular é sempre passiva, sendo a sua pretensão não acolhida mediante um acto voluntário por si adoptado, mas por força de solução legal que consagrou para aquela situação o deferimento tácito, não tendo em momento algum um poder semelhante ao do órgão decisor.
O deferimento tácito pode ser potenciador de vícios no funcionamento da Administração, nomeadamente em casos de corrupção, sendo um mecanismo para desresponsabilizar a decisão administrativa. Pode também esta figura ser um estímulo à decisão apressada da Administração, motivando-a a indeferir sem uma adequada ponderação dos interesses em jogo considerando a realidade de a posição do particular poder vir a ser acolhida por efeito do silêncio. Contudo esta observação não procede nos casos em que se trate de um indeferimento expresso, sendo um acto que carece de fundamentação das razões que motivaram a prática do mesmo, podendo o particular tomar medidas impugnando esse acto. Finalmente, alega-se a falta de segurança do deferimento tácito para o particular, já que este não tem garantias de que o acto seja legal ou que Administração se tenha pronunciado, sendo a probabilidade de a Administração se pronunciar em sentido inverso muito maior no caso de deferimento tácito do que na hipótese de acto expresso.

5.Considerações Finais
É fundamental a distinção entre acto tácito em sentido restrito e deferimento tácito[12] ou seja, entre os casos em que há a possibilidade legalmente consagrada de a Administração manifestar a sua vontade através de um comportamento omissivo, em que estamos perante uma forma de manifestação da vontade administrativa através de um comportamento omissivo que a própria lei reconhece, daqueloutra que ocorre quando o particular solicitando uma qualquer licença não obtém resposta da Administração, formando-se um acto tácito de deferimento, que traduz uma situação encontrada pela lei para resolver o problema da ausência dessa vontade.
Quando a Administração se pronuncia expressamente, o particular tem uma expectativa acrescida de não ver revogado o acto administrativo de que é destinatário uma vez que o próprio acto de sinal positivo importa uma afirmação de que a Administração não vê inconveniente jurídico na pretensão concreta. A ratio[13] que preside ao regime do diferimento tácito é o da celeridade administrativa e evitar que o particular não possa adoptar um comportamento devido à inércia da Administração. Não sendo a ausência de resposta uma solução, acaba por ser preferível a formação de um deferimento tácito, mesmo que por vezes isso não seja absolutamente decisivo quanto à viabilidade do comportamento pretendido.





[1]In, Curso de Derecho Administrativo, 7ªed., I Civitas, Madrid, 1995, pág.575
[2]Acerca deste tema, ROBERTO, Alberto de, Silenzio-assenso e legittimazione "ex lege" nella lege Nicolazzi, in Diritto e Societá, 1983, pág.163ss
[3]Sobre esta questão, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II Almedina, 2001, Pág.46ss
[4]MASSIMO SEVERO, Manual de Direito Administrativo I, 10ª edição, Istituzioni do Diritto Amministrativo, Giuffrè, Milão, 1981, pag.441
[5]Sobre esta matéria, VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2009 Págs.315ss
[6]Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998, Pág.159ss
[7]Acerca desta questão, CORTE-REAL de ALBUQUERQUE, As consequências da anulação contenciosa do indeferimento tácito,  Lisboa, 1989
[8]FREITAS do AMARAL, “A reconstituição da situação actual hipotética em caso de anulação de indeferimento irrenovável” In, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Coimbra, 2012, p. 295-310. Vol. 4
[9]Acerca deste problema, ALMEIDA da SILVEIRA, O Deferimento tácito: esboço do regime jurídico do acto tácito positivo na sequência de pedido do particular, Teses FDUL, 1999
[10]Sobre esta matéria, VIERA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa,  Almedina, 2014, Págs.187ss
[11]A respeito desta temática, AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.233ss
[12]CRUZ ALMEIDA, “A inversão do princípio do indeferimento táctico: uma análise de política legislativaIn, Direito e cidadania, Praia, 2001. - A. 4, Nº 12-13, p. 65-100
[13]Sobre esta questão, Vide, CHANCERELLE de MACHETE, O acto confirmativo de acto tácito de indeferimento e as garantias de defesa contenciosa dos administrados, Edições Ática, 1973

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