Lígia Rocha Nº21500
1.Considerações Iniciais
Chama-se deferimento tácito à atribuição de um efeito de acolhimento da
pretensão do particular face à inactividade administrativa. Aqui a inactividade
administrativa tem como consequência a produção de um efeito positivo, e pressupõe
a existência de um pedido do particular. O deferimento tácito é a consequência
jurídica do silêncio da Administração, que uma vez mantido durante um decurso
de lapso temporal, concede ao particular o correspondente à sua pretensão. O
deferimento tácito forma-se a partir da aplicação de uma ficção a um facto
jurídico que é o silêncio administrativo. Este acto ficcionado concede ao
particular nos casos e condições legalmente previstas o correspondente à sua
pretensão. Perante uma solicitação por parte do administrado, por exemplo de
uma licença de construção, à qual a Administração não responde, ao fim de um
determinado lapso de temporal, tem-se a sua pretensão por concedida.
2.O Deferimento Tácito no Divã
da Psicanálise
Face à escassez de preceitos na lei
que esclareçam quais os preceitos do regime do acto expresso se aplicam ao
deferimento tácito, só a determinação da natureza deste permite verificar se o
regime do acto expresso lhe é aplicável, total ou parcialmente.
No que respeita à natureza
jurídica da figura alguns autores defendem ser o silêncio uma técnica de
interpretação da vontade administrativa., sendo o deferimento tácito uma
interpretação legal do comportamento devido da Administração baseada na circunstância
de que se esta tivesse algo a objectar tê-lo-ia feito antes do prazo para a
formação do acto tácito. Aqui o acto administrativo é obtido através de uma
particular forma de interpretação da vontade administrativa, não exteriorizada.
Esta opinião é criticada já que, levada ao extremo, não conduz a uma
automaticidade sem ponderação de indícios, sendo sempre necessário atender ao
conjunto e elementos do procedimento administrativo para se poder optar pela
interpretação mais coincidente com a vontade presumível daquele.
MARCELLO CAETANO defende que o deferimento
tácito tem a natureza de um verdadeiro acto
administrativo pois a lei permite presumir de forma inilidível a existência
de uma vontade indispensável à qualificação da realidade como tal. Para RAMON
FERNANDEZ[1]
o deferimento tácito funcionaria como uma espécie de direito de veto da Administração que esta apenas exerceria se
entendesse, caso não o exercesse estaria a praticar uma declaração de vontade,
um verdadeiro acto administrativo.
A Doutrina Italiana[2]
defende a legitimação ex lege do
diferimento tácito, sendo a que a permissão concedida ao particular decorre
directamente da norma que o preveja. Neste sentido, é a lei que legítima o
particular a agir no silencio da Administração. Assim, a lei não se destina a
interpretar a vontade administrativa mas a suprir a sua ausência. Esta tese foi
criticada por não assegurar uma tutela judicial eficaz porque sendo o
deferimento tácito uma consequência puramente legal, não haveria acto
administrativo ou equiparável que consubstancie um objecto possível para um
recurso contencioso de anulação.
Para parte da Doutrina[3],
o deferimento tácito traduz-se numa presunção
da vontade administrativa estabelecida por via da lei. De acordo com este
entendimento na dificuldade de conhecer a vontade administrativa, a lei através
de uma presunção permite a produção dos efeitos associados ao acto expresso.
Esta seria uma presunção absoluta ou inilidível não sendo admissível prova em
contrário, ou seja a demonstração de a vontade da Administração ser contrária à
formação dão acto tácito. Este entendimento tem sido criticado por não
corresponder a uma correcta acepção de presunção que não e uma forma de
declarar vontades mas de conhecer a realidade, não sendo correcta esta acepção.
A presunção seria o mecanismo quanto muito de equiparar um facto jurídico a
outra realidade o acto.
Para GIANNINI[4]
o deferimento tácito seria uma técnica legal
de interpretação do silêncio, consubstanciando uma interpretação legal do
comportamento omissivo da Administração, baseada na circunstância de que se
esta tivesse algo a revidar, tê-lo-ia feito antes do prazo para a formação do
acto tácito. Neste prisma, estamos perante um acto administrativo obtido
através de uma particular forma de interpretação da vontade administrativa, que
não sendo exteriorizada como sucederia se de um acto expresso se tratasse,
resultaria do papel elucidativo da lei.
3.Fundamentos do Deferimento Tácito
e seu Regime Jurídico
O deferimento tácito justifica-se
pela necessidade da Administração não causar entraves ao exercício de direitos
dependentes do seu controlo mas que já se encontrassem na esfera do
Administrado, permitindo ao particular o exercício dos mesmos mesmo quando a
Administração não se pronunciasse. Tem um triplo
fundamento constitucional[5],
resultando quer da garantia de celeridade
procedimental; quer da necessidade de assegurar a protecção de determinados direitos constitucionalmente
consagrados, podendo uma norma que consagre um regime de diferimento tácito ser
considerada inconstitucional caso ofenda um valor constitucionalmente protegido.
Por outro lado, visa-se a satisfação da exigência de uma tutela jurisdicional efectiva.
Quanto aos requisitos[6] para a formação do deferimento tácito é
necessário que tenha havido um pedido a um órgão para que adopte um acto
administrativo. O
pedido do particular deve ser identificável e inteligível art.76.º nº3 CPA, não devendo o mesmo ser
enquadrado em nenhuma das condições previstas no art.9.º nº2 CPA. Tem de ser
dirigido a um órgão legalmente habilitado a adoptar o acto administrativo
expresso que se solicita, com o fundamento de este ter o dever de se pronunciar
quanto ao fundo da questão relativa à pretensão formulada art.9.º nº1 CPTA, salvo
as situações de erro desculpável dos arts.34 nº1a) e 77.º CPA.
O particular tem o dever de formular o pedido em termos
tais que coloque o pedido ao órgão administrativo competente para decidir. O
art.108.° n°1 CPA consagra os casos em que é aplicável a regra do diferimento tácito,
além dos previstos no n°3 do mesmo artigo.
Não se forma deferimento tácito[7],
estando consequentemente a Administração obrigada a decidir, antes de
decorridos dois anos desde um anterior pedido do particular como o mesmo
objecto e fundamentos, e que tenha sido praticado acto administrativo quanto ao
mesmo art.9.º nº2 CPA. Neste caso, a Administração tem a obrigação de
transmitir ao administrado as razões que a levam a não apreciar o fundo da
questão. Não existe dever de decidir[8]
nos casos em que o pedido é apresentado por quem não tenha legitimidade para
tal. Também não se forma deferimento tácito se o pedido do particular contiver
deficiências ou insuficiências quanto aos elementos previstos no art.74.° CPA,
com o fundamento de estes serem indispensáveis ao bom andamento do processo não
podendo ser supridos. A Doutrina tem vindo a flexibilizar este requisito apenas
sendo de admitir a inexistência de um dever de decisão quando os elementos em
falta sejam imprescindíveis para a apreciação do mérito da causa, sob pena de
se justificar a não formação do acto tácito por razoes excessivamente formais.
4.Reflexão Crítica: A Admissibilidade
do Deferimento Tácito como propiciador de abusos?
A figura do deferimento tácito é considerada por FERNÁNDEZ
PASTRANA[9]
como propiciadora à adopção de comportamentos
ilícitos. Contudo esta crítica não é procedente uma vez que está vedada ao
particular a obtenção por via do acto tácito de deferimento a obtenção de algo
que não poderia obter através de um acto expresso. Além disso o sistema é dotado
de mecanismos para solucionar a existência desse tipo de actos, cominando com a
sua invalidade.
O deferimento tácito é para GONZÁLEZ PÉREZ atentatório do
interesse público e do interesse de terceiros já que estes não são ponderados,
sendo mais benéfico para certos particulares, prejudicando outros. Não podemos
concordar com este entendimento porque caso se venha a verificar tal agressão à
esfera jurídica de terceiros estes podem agir, impugnando o acto da
Administração. É legítimo sacrificar o interesse público e de terceiros nos
casos em que o interesse do solicitante saísse mais prejudicado. Além disso, o
sacrifício imposto não é irreversível, nem absoluto[10],
já que o deferimento tácitoé impugnável quer administrativa quer
contenciosamente, como se de um acto se tratasse. Por outro lado, a regra da
livre revogabilidade dos actos administrativos facilita a eliminação do
indeferimento tácito pelo que os eventuais prejuízos que dele advenham podem
ser facilmente resolvidos.
Noutro prisma, há quem sustente ser esta figura uma
devolução[11]
da competência decisória administrativa para os particulares, o que pode ser indesejável.
Contudo, esta trata-se de uma situação face aos valores em presença em que é inexigível
ao particular que se resigne perante uma não tomada de posição por parte da
Administração e a que o legislador face aos interesses em jogo optou
previamente por proteger a posição do particular. Salienta-se que a posição do
particular é sempre passiva, sendo a sua pretensão não acolhida mediante um
acto voluntário por si adoptado, mas por força de solução legal que consagrou
para aquela situação o deferimento tácito, não tendo em momento algum um poder
semelhante ao do órgão decisor.
O deferimento tácito pode ser potenciador de vícios no funcionamento da Administração,
nomeadamente em casos de corrupção, sendo um mecanismo para desresponsabilizar
a decisão administrativa. Pode também esta figura ser um estímulo à decisão
apressada da Administração, motivando-a a indeferir sem uma adequada ponderação
dos interesses em jogo considerando a realidade de a posição do particular
poder vir a ser acolhida por efeito do silêncio. Contudo esta observação não procede
nos casos em que se trate de um indeferimento expresso, sendo um acto que
carece de fundamentação das razões que motivaram a prática do mesmo, podendo o
particular tomar medidas impugnando esse acto. Finalmente, alega-se a falta de segurança do deferimento tácito para o
particular, já que este não tem garantias de que o acto seja legal ou que
Administração se tenha pronunciado, sendo a probabilidade de a Administração se
pronunciar em sentido inverso muito maior no caso de deferimento tácito do que
na hipótese de acto expresso.
5.Considerações Finais
É fundamental a distinção entre acto tácito em sentido
restrito e deferimento tácito[12]
ou seja, entre os casos em que há a possibilidade legalmente consagrada de a
Administração manifestar a sua vontade através de um comportamento omissivo, em
que estamos perante uma forma de manifestação da vontade administrativa através
de um comportamento omissivo que a própria lei reconhece, daqueloutra que
ocorre quando o particular solicitando uma qualquer licença não obtém resposta
da Administração, formando-se um acto tácito de deferimento, que traduz uma
situação encontrada pela lei para resolver o problema da ausência dessa
vontade.
Quando a Administração se pronuncia expressamente, o
particular tem uma expectativa acrescida de não ver revogado o acto
administrativo de que é destinatário uma vez que o próprio acto de sinal
positivo importa uma afirmação de que a Administração não vê inconveniente
jurídico na pretensão concreta. A ratio[13]
que preside ao regime do diferimento tácito é o da celeridade administrativa e evitar que o particular não possa
adoptar um comportamento devido à inércia da Administração. Não sendo a ausência
de resposta uma solução, acaba por ser preferível a formação de um deferimento
tácito, mesmo que por vezes isso não seja absolutamente decisivo quanto à
viabilidade do comportamento pretendido.
[1]In, Curso de
Derecho Administrativo, 7ªed., I Civitas,
Madrid, 1995, pág.575
[2]Acerca deste tema, ROBERTO, Alberto de, Silenzio-assenso e legittimazione "ex
lege" nella lege Nicolazzi, in Diritto e Societá, 1983, pág.163ss
[3]Sobre esta questão, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II
Almedina, 2001, Pág.46ss
[4]MASSIMO SEVERO, Manual de Direito Administrativo I,
10ª edição, Istituzioni do Diritto Amministrativo, Giuffrè, Milão, 1981,
pag.441
[5]Sobre esta matéria, VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise, Ensaio sobre as Acções
no Novo Processo Administrativo, Almedina, 2009 Págs.315ss
[6]Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do Acto Administrativo Perdido,
Almedina, 1998, Pág.159ss
[7]Acerca desta questão, CORTE-REAL
de ALBUQUERQUE, As consequências da
anulação contenciosa do indeferimento tácito, Lisboa, 1989
[8]FREITAS do
AMARAL, “A reconstituição da situação
actual hipotética em caso de anulação de indeferimento irrenovável” In, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
Jorge Miranda, Coimbra, 2012, p. 295-310. Vol. 4
[9]Acerca deste problema, ALMEIDA da SILVEIRA, O Deferimento tácito: esboço do regime
jurídico do acto tácito positivo na sequência de pedido do particular,
Teses FDUL, 1999
[10]Sobre esta matéria, VIERA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014, Págs.187ss
[11]A respeito desta temática, AROSO DE ALMEIDA,
Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.233ss
[12]CRUZ ALMEIDA, “A inversão do princípio do indeferimento
táctico: uma análise de política legislativa” In, Direito e cidadania, Praia, 2001. - A. 4, Nº 12-13, p. 65-100
[13]Sobre esta questão, Vide, CHANCERELLE de MACHETE, O acto confirmativo de acto tácito de indeferimento e as garantias de
defesa contenciosa dos administrados, Edições Ática, 1973
Visto.
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