domingo, 2 de novembro de 2014

A Geometria do Contencioso Administrativo

I.                 A presente publicação centrar-se-á na evolução do Contencioso Administrativo, destacando a importância dos particulares na construção de relações jurídicas poligonais.

II.               Desde logo, temos uma transição de uma Administração agressiva para uma Administração prestadora do Estado Social. Discute-se, hoje em dia, se já nos encontramos numa Administração infraestrutural do Pós-Estado Social. Na minha modesta opinião, apesar de uma crise do Estado Social não parece de todo plausível afirmar-se que o Estado Social já não se trata de uma realidade.
Como nos diz VASCO PEREIRA DA SILVA temos um período inicial do Direito Administrativo, situado nos sécs. XVIII e XIX, chamado de infância difícil, pela centralização da estrutura de poder no ato administrativo, numa ação autoritária da Administração.
VASCO PEREIRA DA SILVA na esteira da opinião de OTTO BACHOF, e tendo em conta a evolução do Direito Administrativo afirma que hoje temos de ver o filme todo e não apenas a fotografia (o ato).
Primeiramente, temos de frisar que fruto de uma influência francesa no contencioso administrativo português se viveram relações de poder diante dos particulares, que eram vistos como um ser desprezível, à margem. No entanto, esta visão objetivista começou a desvanecer-se com uma abertura a um novo posicionamento dos particulares. A influência alemã permitiu uma evolução na tutela dos particulares. Passa a ser vista como função primordial a defesa dos direitos dos administrados. A lesão dos seus direitos é reconhecida como condição de acesso à justiça administrativa e como condição de procedência da ação.
Por tudo isto, podemos afirmar que temos um contencioso administrativo subjetivista, isto é que torna como essencial a tutela jurídica dos sujeitos que vão a juízo, com alguns laivos de objetivismo, pela importância dada à tutela da legalidade e do interesse público.
Esta evolução terá uma influência fundamental no seio da relação jurídica poligonal, como referiremos adiante.

III.             A relação jurídica administrativa é entendida por VASCO PEREIRA DA SILVA como o novo conceito central do Direito Administrativo. Esta relação é vista como uma relação jurídica entre a Administração e os particulares, com a respetiva fixação de direitos e obrigações.
VIEIRA DE ANDRADE caracteriza-as como relações jurídicas públicas, onde existe pelo menos um sujeito que revista a forma de entidade pública ou entidade particular no exercício de um dever ou poder público, que procura realizar um interesse público que se encontra definido.
Não existe um desaparecimento do ato, mas sim uma integração do mesmo num novo esquema explicativo, tornando-se um dos fatos susceptíveis de extinguir, modificar, ou criar uma relação jurídica.

IV.             MÁRIO AROSO DE ALMEIDA apresenta-nos as relações jurídicas ligadas ao exercício de poderes de autoridade por parte da Administração com uma estrutura poligonal. Tal se pode explicar pela sua complexidade que se reflete num conjunto alargado de pessoas que vêm os seus interesses serem afetados pela atuação da Administração.
GOMES CANOTILHO teve a oportunidade de apresentar as dimensões caracterizadoras das relações jurídicas poligonais. Assim:
- Programação legal ténue
- Complexidade de situações e tarefas de avaliação de riscos apelativos de conhecimentos técnico-científicos
- Pluralização e interpenetração de interesses públicos e privados
- Legitimidade de intervenção dos interessados no ato procedimental praticado pela Administração
Parecem-me critérios suficientemente reveladores da relação jurídica poligonal.
Temos nas relações jurídicas poligonais um confronto de mais de dois sujeitos e distintos pólos de interesse em conjunto, interligados por posições ativas e passivas.
Torna-se cada vez mais premente a conexão da relação poligonal com com a relação procedimental. Existe, claramente, uma tutela reconhecida a interesses de fato diferenciados, interesses comuns e difusos.
As posições jurídicas dos sujeitos que possam ser lesadas por uma atuação da Administração deverão ter relevância no procedimento em que se tomam as decisões.
Supera-se uma visão bilateral das relações Administração/Particulares de atos administrativos com duplo efeito. Como diz MAFALDA CARMONA estes são atos que beneficiam e lesam simultaneamente mais do que um sujeito.
Deparamo-nos com vários sujeitos defendendo interesses diferentes ou mesmo contrários. Esta heterogeneidade de interesses presente acaba por se estender, naturalmente, à proteção de terceiros, enquanto particulares que não sendo destinatários diretos ou formais do ato, acabam por retirar vantagens ou prejuízos.
MATHIAS SCHIMDT-PREUSS caraterizou as relações jurídicas poligonais, pelo conflito entre interesses dos particulares que são objeto de consideração pelo programa da norma administrativa, a qual confere um mandato para a resolução à autoridade administrativa diretamente destinatária do mesmo.
As relações jurídicas poligonais acabam por ganhar um relevo muito maior com uma intervenção administrativa mais ativa no domínio económico, mais especificamente no domínio da função reguladora do Estado.
Temos, assim, uma situação que representa uma oportunidade para que a autoridade administrativa apareça menos revestida de jus imperii do poder executivo e mais perto da “judicialidade”, proporcionando-se experiências ousadas e mais adequadas no controlo da discricionariedade, como nos diz RUI MACHETE.
Acresce o fato das entidades reguladoras, se encontrarem tanto sujeitas à jurisdição dos tribunais administrativos como à dos tribunais comuns permite uma maior facilidade de partilha de experiências.
Podemos afirmar que temos uma verdadeira relação jurídica poligonal no Contencioso Administrativo, seguindo o entendimento de ALEXANDRA LEITÃO, na medida em que todos os sujeitos integram a relação jurídica se as suas posições jurídicas subjetivas forem por algum acontecimento afetadas.

V.                Não poderíamos abordar este tema deixando de parte a figura dos contra-interessados que tanto contribuíram para a mudança do paradigma.
Surgem numa lógica de densificação da proteção de terceiros.
A primeira adaptação a relações jurídicas poligonais ocorre através da introdução desta figura. Não nos podemos desviar da influência francesa e italiana, cada uma com as suas especificidades.
No contencioso francês não temos uma imposição da obrigação de chamar ao processo os terceiros interessados.
Já no domínio do contencioso italiano. os contra-interessados serão os detentores de um interesse qualificado e terão diversos interesses conexos com o ato. Dada a importância da figura e da diversidade de terceiros acabou por se introduzir a “oposição de terceiro”.
Os terceiros defenderão os seus direitos no processo e atendendo ao tipo de conexão que se verifique acabarão por assumir uma posição.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, olhando ao direito português apresenta a figura processual de litisconsórcio passivo necessário (Arts, 10º, nº1; 57º e 68º,nº2 do CPTA), pela necessidade de chamar ao processo aqueles que tenham interesses contrapostos aos do autor.
Procura-se tutelar a posição de terceiros que possam ser lesados ou não retirar uma determinada vantagem por não serem chamados. Basta olharmos ao exemplo urbanístico de uma licença de construção. É claro que ao interesse que posso ter um vizinho à anulação de uma licença se contraporá o interesse do proprietário a que se construa. Tais problemas deverão ser resolvidos chamando ao processo todos aqueles que possam contribuir para uma solução mais justa, equilibrada, olhando a todos os interesses dos sujeitos.

VI.             Podemos concluir que a evolução do Direito Administrativo, dando lugar a um particular interveniente, afastando uma Administração agressiva permitiu a passagem a uma relação jurídica poligonal.
Hoje em dia, não se deixam de lado todos os interesses em causa, todos os direitos e consequentemente fica claro que todos poderão participar, todos deverão ter acesso à justiça administrativa, desde que se vejam lesados, desde que tenham um interesse contraposto.
Temos uma verdadeira relação jurídica poligonal, pela variadíssima presença de sujeitos na relação e pela diversidade de interesses em causa em cada caso concreto.
As reformas colocam o particular cada vez mais no centro, como sujeito que deve ver os seus direitos tutelados e que tem direito à participação na relação jurídica que se estabeleça.

Bibliografia

GOMES CANOTILHO, Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 1, Junho/1994, págs. 57 a 61
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina, 2009
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11ª Edição, Almedina, 2011
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, 4ª Reimpressão da edição de Novembro de 2010,Almedina, 2014

MACHETE, Rui Chancerelle de,Algumas reflexões sobre as relações jurídicas poligonais, a regulação e o objecto do processo administrativo, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Telles

CARMONA, Mafalda, Relações Jurídicas Poligonais, Participação de terceiros e caso julgado na anulação dos actos, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol.II, 2010

SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do acto administrativo perdido, Almedina, 2003

LEITÃO, Alexandra, Protecção judicial dos terceiros nos contratos da administração pública, Almedina, 2002

Francisco Ferreira, nº 22067


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