I. A presente publicação centrar-se-á na evolução
do Contencioso Administrativo, destacando a importância dos particulares na
construção de relações jurídicas poligonais.
II. Desde logo, temos uma transição de uma
Administração agressiva para uma Administração prestadora do Estado Social.
Discute-se, hoje em dia, se já nos encontramos numa Administração infraestrutural
do Pós-Estado Social. Na minha modesta opinião, apesar de uma crise do Estado
Social não parece de todo plausível afirmar-se que o Estado Social já não se
trata de uma realidade.
Como nos diz VASCO PEREIRA DA SILVA
temos um período inicial do Direito Administrativo, situado nos sécs. XVIII e
XIX, chamado de infância difícil, pela centralização da estrutura de poder no ato
administrativo, numa ação autoritária da Administração.
VASCO PEREIRA DA SILVA na esteira da opinião de OTTO BACHOF, e tendo em conta a evolução do Direito
Administrativo afirma que hoje temos de ver o filme todo e não apenas a fotografia
(o ato).
Primeiramente, temos de frisar que
fruto de uma influência francesa no contencioso administrativo português se
viveram relações de poder diante dos particulares, que eram vistos como um ser
desprezível, à margem. No entanto, esta visão objetivista começou a
desvanecer-se com uma abertura a um novo posicionamento dos particulares. A
influência alemã permitiu uma evolução na tutela dos particulares. Passa a ser
vista como função primordial a defesa dos direitos dos administrados. A lesão
dos seus direitos é reconhecida como condição de acesso à justiça
administrativa e como condição de procedência da ação.
Por tudo isto, podemos afirmar que
temos um contencioso administrativo subjetivista, isto é que torna como
essencial a tutela jurídica dos sujeitos que vão a juízo, com alguns laivos de
objetivismo, pela importância dada à tutela da legalidade e do interesse
público.
Esta evolução terá uma influência
fundamental no seio da relação jurídica poligonal, como referiremos adiante.
III.
A relação jurídica administrativa é
entendida por VASCO PEREIRA DA SILVA como o novo conceito central do Direito
Administrativo. Esta relação é vista como uma relação jurídica entre a
Administração e os particulares, com a respetiva fixação de direitos e
obrigações.
VIEIRA DE ANDRADE caracteriza-as
como relações jurídicas públicas, onde existe pelo menos um sujeito que revista
a forma de entidade pública ou entidade particular no exercício de um dever ou
poder público, que procura realizar um interesse público que se encontra
definido.
Não existe um desaparecimento do
ato, mas sim uma integração do mesmo num novo esquema explicativo, tornando-se
um dos fatos susceptíveis de extinguir, modificar, ou criar uma relação
jurídica.
IV.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA apresenta-nos as
relações jurídicas ligadas ao exercício de poderes de autoridade por parte da
Administração com uma estrutura poligonal. Tal se pode explicar pela sua
complexidade que se reflete num conjunto alargado de pessoas que vêm os seus
interesses serem afetados pela atuação da Administração.
GOMES CANOTILHO teve a oportunidade
de apresentar as dimensões caracterizadoras das relações jurídicas poligonais.
Assim:
- Programação legal ténue
- Complexidade de situações e
tarefas de avaliação de riscos apelativos de conhecimentos técnico-científicos
- Pluralização e interpenetração de
interesses públicos e privados
- Legitimidade de intervenção dos
interessados no ato procedimental praticado pela Administração
Parecem-me critérios
suficientemente reveladores da relação jurídica poligonal.
Temos nas relações jurídicas
poligonais um confronto de mais de dois sujeitos e distintos pólos de interesse
em conjunto, interligados por posições ativas e passivas.
Torna-se cada vez mais premente a
conexão da relação poligonal com com a relação procedimental. Existe,
claramente, uma tutela reconhecida a interesses de fato diferenciados,
interesses comuns e difusos.
As posições jurídicas dos sujeitos
que possam ser lesadas por uma atuação da Administração deverão ter relevância
no procedimento em que se tomam as decisões.
Supera-se uma visão bilateral das
relações Administração/Particulares de atos administrativos com duplo efeito.
Como diz MAFALDA CARMONA estes são atos que beneficiam e lesam simultaneamente
mais do que um sujeito.
Deparamo-nos com vários sujeitos
defendendo interesses diferentes ou mesmo contrários. Esta heterogeneidade de
interesses presente acaba por se estender, naturalmente, à proteção de
terceiros, enquanto particulares que não sendo destinatários diretos ou formais
do ato, acabam por retirar vantagens ou prejuízos.
MATHIAS SCHIMDT-PREUSS caraterizou
as relações jurídicas poligonais, pelo conflito entre interesses dos particulares
que são objeto de consideração pelo programa da norma administrativa, a qual
confere um mandato para a resolução à autoridade administrativa diretamente
destinatária do mesmo.
As relações jurídicas poligonais
acabam por ganhar um relevo muito maior com uma intervenção administrativa mais
ativa no domínio económico, mais especificamente no domínio da função
reguladora do Estado.
Temos, assim, uma situação que
representa uma oportunidade para que a autoridade administrativa apareça menos
revestida de jus imperii do poder executivo e mais perto da “judicialidade”,
proporcionando-se experiências ousadas e mais adequadas no controlo da
discricionariedade, como nos diz RUI MACHETE.
Acresce o fato das entidades
reguladoras, se encontrarem tanto sujeitas à jurisdição dos tribunais
administrativos como à dos tribunais comuns permite uma maior facilidade de partilha
de experiências.
Podemos afirmar que temos uma
verdadeira relação jurídica poligonal no Contencioso Administrativo, seguindo o
entendimento de ALEXANDRA LEITÃO, na medida em que todos os sujeitos integram a
relação jurídica se as suas posições jurídicas subjetivas forem por algum acontecimento
afetadas.
V.
Não poderíamos abordar este tema
deixando de parte a figura dos contra-interessados que tanto contribuíram para
a mudança do paradigma.
Surgem numa lógica de densificação
da proteção de terceiros.
A primeira adaptação a relações
jurídicas poligonais ocorre através da introdução desta figura. Não nos podemos
desviar da influência francesa e italiana, cada uma com as suas
especificidades.
No contencioso francês não temos
uma imposição da obrigação de chamar ao processo os terceiros interessados.
Já no domínio do contencioso
italiano. os contra-interessados serão os detentores de um interesse
qualificado e terão diversos interesses conexos com o ato. Dada a importância
da figura e da diversidade de terceiros acabou por se introduzir a “oposição de
terceiro”.
Os terceiros defenderão os seus
direitos no processo e atendendo ao tipo de conexão que se verifique acabarão
por assumir uma posição.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, olhando ao
direito português apresenta a figura processual de litisconsórcio passivo necessário
(Arts, 10º, nº1; 57º e 68º,nº2 do CPTA), pela necessidade de chamar ao processo
aqueles que tenham interesses contrapostos aos do autor.
Procura-se tutelar a posição de
terceiros que possam ser lesados ou não retirar uma determinada vantagem por
não serem chamados. Basta olharmos ao exemplo urbanístico de uma licença de
construção. É claro que ao interesse que posso ter um vizinho à anulação de uma
licença se contraporá o interesse do proprietário a que se construa. Tais
problemas deverão ser resolvidos chamando ao processo todos aqueles que possam
contribuir para uma solução mais justa, equilibrada, olhando a todos os
interesses dos sujeitos.
VI.
Podemos concluir que a evolução do
Direito Administrativo, dando lugar a um particular interveniente, afastando
uma Administração agressiva permitiu a passagem a uma relação jurídica poligonal.
Hoje em dia, não se deixam de lado
todos os interesses em causa, todos os direitos e consequentemente fica claro
que todos poderão participar, todos deverão ter acesso à justiça
administrativa, desde que se vejam lesados, desde que tenham um interesse
contraposto.
Temos uma verdadeira relação
jurídica poligonal, pela variadíssima presença de sujeitos na relação e pela
diversidade de interesses em causa em cada caso concreto.
As reformas colocam o particular cada
vez mais no centro, como sujeito que deve ver os seus direitos tutelados e que
tem direito à participação na relação jurídica que se estabeleça.
Bibliografia
GOMES
CANOTILHO, Relações jurídicas poligonais,
ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo, Revista
Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 1, Junho/1994, págs. 57 a 61
SILVA, Vasco Pereira da, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª Edição, Almedina,
2009
ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11ª Edição, Almedina, 2011
ALMEIDA, Mário Aroso
de, Manual de Processo Administrativo,
4ª Reimpressão da edição de Novembro de 2010,Almedina, 2014
MACHETE, Rui
Chancerelle de,Algumas reflexões sobre as
relações jurídicas poligonais, a regulação e o objecto do processo
administrativo, Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Telles
CARMONA, Mafalda, Relações Jurídicas Poligonais, Participação
de terceiros e caso julgado na anulação dos actos, Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol.II, 2010
SILVA, Vasco Pereira
da, Em busca do acto administrativo
perdido, Almedina, 2003
LEITÃO, Alexandra, Protecção judicial dos terceiros nos contratos da administração pública,
Almedina, 2002
Francisco Ferreira, nº 22067
Visto.
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