domingo, 2 de novembro de 2014

O contencioso da responsabilidade civil pública

O contencioso da responsabilidade civil pública
A questão do contencioso da responsabilidade civil teve grande importância histórica e continua a ser muito relevante pois, é considerado um “pilar” do Estado de Direito, reconhecido na Constituição da República Portuguesa (CRP) como direito fundamental (art. 22º CRP) e ainda porque, a reforma do contencioso administrativo de 2004 acabou por não regular a questão da responsabilidade civil da Administração e até a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, teve dificuldades em resolver todos os problemas que se foram levantando ao longo do tempo.
A problemática do contencioso administrativo em matéria de responsabilidade civil pública iniciou-se no ano de 1873, em França, com Agnès Blanco, uma menina de 5 anos que foi atropelada pelo vagão de uma empresa pública. Quando os seus pais quiseram reagir, o tribunal de Bordéus deu-se como incompetente para julgar o pedido de indeminização, porque estava em causa uma autoridade administrativa e não havia lei aplicável visto o Código civil (CC) só regular relações entre particulares. Os pais dirigiram-se então, ao Conselho de Estado que também se deu como incompetente por não estar perante um recurso de acto administrativo e não haver lei que regulasse aquela situação. Havia, portanto, um conflito negativo de jurisdições e foi chamado a intervir o Tribunal de Conflitos que, considerou que o caso era da competência da Justiça Administrativa e seria necessário criar normas jurídicas para proteger a Administração em matéria de responsabilidade civil, declarando a autonomia do Direito Administrativo.
Assim, a preocupação inicial era a de proteger o Estado nos conflitos com particulares e não o contrário. O professor Vasco Pereira da Silva qualifica esta situação como um episódio da “infância difícil” da Administração.
A evolução em Portugal não foi muito diferente do que sucedeu em França e também existiram situações em que ambos os tribunais (administrativos e judiciais) se consideravam incompetentes para decidir de uma situação. Até à reforma de 2004 havia que se fazer uma difícil distinção entre atos de gestão pública e actos de gestão privada e de acordo com a resposta a esta questão a Administração respondia nos tribunais administrativos (pelos danos causados no desempenho da gestão pública) ou nos tribunais judiciais (caso os danos causados se tenham verificado no âmbito da gestão privada). Havia portanto, uma dualidade de regimes jurídicos e de tribunais competentes o que acabava por levar a processos demorados e punha em causa as garantias dos cidadãos. Vasco Pereira da Silva critica este sistema, chamando-o mesmo de “ilógico” por assentar numa distinção entre o conceito de gestão pública e gestão privada.
Na reforma do Contencioso de 2004 o legislador consagrou a ideia de unidade jurisdicional mas, manteve-se a dualidade legislativa e só com a L 67/2007 o legislador cria um novo regime da responsabilidade civil pública.
No ordenamento jurídico português, os tribunais administrativos e fiscais têm competência para “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art. 212º/3 CRP, art. 1º/1 e 4º/g),h),i)ETAF), deixando para trás a distinção entre gestão pública e privada como critérios para a determinação do tribunal competente para se pronunciar acerca da causa.
Da interpretação destas normas conclui-se pela consagração de um regime de unidade jurisdicional quanto ao contencioso da responsabilidade civil da Administração Pública (abandonando a distinção entre gestão pública e privada) e quanto à determinação da competência do tribunal, sendo que, agora a competência é dos tribunais administrativos. O professor Vasco Pereira da Silva afirma nesta questão que acha correcta a unificação do regime jurídico mas, que há necessidade de ser complementada por “legislação substantiva conforme”.
Analisando agora mais concretamente os preceitos em questão, o art. 4º/1/g) Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) dá aos tribunais administrativos competência para julgar litígios acerca da “responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público” sobre danos resultantes da função política, legislativa e danos resultantes do funcionamento da administração da justiça. Ora, esta foi uma norma inovadora pois afirmou a uniformização jurisdicional do contencioso da responsabilidade civil pública cuja competência passa a ser só dos tribunais administrativos (desaparece a dualidade de jurisdições), apesar de continuar a haver dualidade de regimes jurídicos. Quer isto dizer que, se passa a classificar como administrativa qualquer relação de responsabilidade civil pública abstraindo-se, a norma, da natureza do órgão ou do poder em que ele se insere. Supera-se assim a dualidade de jurisdições através da unificação do regime. Colocou-se aqui um problema de interpretação que teve origem num caso de acidente de viação: será que a norma só se aplica quando a Administração se senta no banco do réu e só assim os tribunais administrativos são competentes ou será que também se aplicaria quando a Administração demandasse os particulares? Ou nestes casos seriam antes competentes os tribunais judiciais? O professor Vasco Pereira da Silva defende que o 4º/1/g) ETAF não deve ser interpretado restritivamente pelo que seriam competentes os tribunais administrativos para ambos os casos e dá-nos três razoe: a) se o critério para determinar a jurisdição competente é o da natureza das relações (art. 212º/3 CRP e 1º/1 ETAF) então uma relação jurídica não poderia ser ao mesmo tempo classificada como administrativa e não administrativa consoante a Administração seja ré ou autora da acção; b) o elemento literal (de onde se extrai que só seriam administrativos os litígios em que a Administração é ré) não faz sentido pois, a expressão “haja lugar” é pouco rigorosa pelo que dela se podem fazer várias interpretações, tal como se considerar que “o legislador se refere às questões em que ocorre” ou seja aplicável o regime da responsabilidade civil pública. Ora se o legislador criou um sistema de unidade jurisdicional esse regime deverá aplicar-se a todo o universo da responsabilidade civil da Administração. Quanto ao argumento histórico, os trabalhos preparatórios continham a intenção expressa de consagrar um regime de unidade jurisdicional logo, defender qualquer outra coisa seria um “absurdo”; c) na ordem jurídica portuguesa o regime da responsabilidade civil administrativa aplica-se a acidentes de viação e também à actuação de privados quando as suas acções originem litígios em que esses particulares sejam réus (art. 4º/1/i) ETAF). Para além disso, o art. 37º/3 CPTA prevê a hipótese de os particulares poderem ser réus numa acção administrativa intentada por uma entidade administrativa ou outro particular previsto no artigo. Por estas razões podemos concluir que, a Administração também pode ser autora em processos de responsabilidade civil contra particulares ou fazer pedidos reconvencionais quando a autoria da acção seja de um particular, que não alterará o facto de a competência para o conhecimento da questão ser dos tribunais administrativos (art. 4º/1 ETAF).
Quanto ao art. 4º/1/h) ETAF, este completa a previsão da alínea g) do mesmo artigo, estendendo o âmbito da competência dos tribunais administrativos a “órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos”.
Já no que diz respeito à alínea i) do art.º 4 ETAF, há um alargamento do regime a certos sujeitos privados (Administração pública sob forma privada e entidades privadas que colaboram com a Administração Pública no exercício da sua função). Ou seja, há aqui uma unificação do regime jurídico, independente da natureza jurídica dos sujeitos que causam o dano). Deparamo-nos neste ponto com uma discussão doutrinária acerca da possibilidade ou não da aplicação imediata deste preceito. Mário Aroso de Almeida e Freitas do Amaral defendem que, os tribunais administrativos não terão competência para dirimir estes litígios pois não existe uma norma de direito substantivo que o preveja. Por sua vez Vasco Pereira da Silva, tendo em conta a alínea d) defende que se deve presumir a aplicação do regime substantivo de direito público quanto ao exercício de poderes públicos por concessionários e entes privados de mão pública.
Na minha opinião, esta última posição é a mais correcta visto estar expressamente previso no art. 4º/1/d) ETAF os “actos jurídicos praticados por sujeitos privados”, mesmo apesar de a alínea mencionar a “fiscalização” e não a responsabilidade ou a indeminização. Ou seja, não faria para mim sentido que fosse da competência dos tribunais jurisdicionais jugar litígios entre particulares e entidades privadas concessionárias, parecendo-me, tal como defende o Professor Vasco Pereira da Silva que são os tribunais administrativos os mais competentes para tal.
No que diz respeito à delimitação negativa, não foi feita da melhor forma visto que não levou essa unificação até “às últimas consequências” e ainda se verificam situações de dualidade de jurisdições que se devem ao afastamento da jurisdição administrativa da “apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso” (art.4º/3 a) ETAF). O julgamento das questões de erro judiciário cabe assim à jurisdição no âmbito da qual foi emitida.
Com a L 67/2007 surge um novo regime da responsabilidade civil pública que se passa a aplicar não só a danos resultantes da função administrativa como também aos resultantes da função legislativa e jurisdicional (art. 1º/1 L67/2007), estando de acordo com a anterior uniformização jurisdicional. Isto levantou “efeitos secundários” porque, a Administração deixa de se ocupar com a função administrativa e passa a ocupar-se com a jurisdicional. Outro problema foi a “ambiguidade linguística” do art. 1º/2 L67/2007 pois, a expressão “prerrogativas de poder público” faz-nos voltar à discussão da distinção entre gestão pública e privada. Contudo, para Vasco Pereira da Silva deve-se fazer uma interpretação desta norma que passe pela unificação do regime, porque: a expressão “prerrogativas de direito público” aparece como alternativa à “regulação por normas ou princípios de direito administrativo” (expressão mais ampla) logo, o regime é aplicável a situações em que existam poderes de autoridade (/gestão pública) e às situações reguladas por “normas ou princípios de direito administrativo”, que incluem a gestão privada pois concretizam preceitos constitucionais aplicáveis a toda a actuação da Administração Pública, mesmo que seja uma actuação técnica ou de gestão privada (art. 2º/5 CPA). Cumpre ainda mencionar que para a responsabilidade civil administrativa, o legislador optou por um sentido amplo de função administrativa que inclui actuações públicas e privadas e entidade públicas e privadas. É oque vemos no n.º5, do art.1º L67/2007 que me parece bastante claro quando diz que tanto entidades públicas como privadas estão reguladas por este diploma. Assim, o âmbito da lei compreende qualquer entidade particular que adopte “prerrogativas de poder público” ou que sejam “reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”. Ou seja, este diploma veio unificar o regime da responsabilidade civil pública porque passa a haver uma só lei que se aplica a entidades públicas e entidades privadas.
Uma breve referência à dualidade de meios processuais nas acções de responsabilidade civil pública, para esclarecer que o meio processual destas acções é o comum (art. 37º/2/f), g) CPTA) mas caso haja cumulação de pedidos e para os restantes pedidos esteja prevista a acção administrativa especial (arts. 46º e ss CPTA) então, segundo o art. 5º CPTA há prevalência da forma da acção especial.
Quanto aos pressupostos processuais, porque não há regras especiais aplicam-se aqui as gerais. Para o pressuposto da legitimidade na acção de defesa de interesses próprios as regras gerais aplicam-se (art. 9º/1 e 10º CPTA) mas, quanto à defesa da legalidade e do interesse público há dificuldades, visto que, a acção pública e a acção popular não cabem habitualmente no domínio da responsabilidade civil, a menos que estejamos perante uma situação de tutela objectiva de danos que não podem ser subjectivizáveis (ex.: ambiente, urbanismo, etc).
Concluindo, no ordenamento jurídico de hoje há responsabilização de entidades públicas e privadas quanto a acções ou omissões em que seja aplicável o regime da responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Bibliografia:
-Amaral, Diogo Freitas Do/ Almeida, Mário Aroso de- Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, Coimbra: Almedina, 2004, 3ª ed.; página 36
-Silva, Vasco Pereira da- É sempre a mesma cantiga: o contencioso da responsabilidade civil pública, Coimbra: Almedina, 2010
-Silva, Vasco Pereira da- O contencioso administrativo no divã da psicanálise, Coimbra: Almedina, 2009; página 516
-Silva, Vasco Pereira da- Ventos de mudança no contencioso administrativo, Coimbra: Almedina, 2000; página 26

Marina Gomes, 22492

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