segunda-feira, 3 de novembro de 2014
O respeito pela autonomia da Administração Pública enquanto limite da jurisdição administrativa
Francisca Duarte de Almeida
subturma 6 do 4°ano Dia
A determinação do âmbito da jurisdição administrativa não se satisfaz pela mera referência à fórmula do nº 3 do artigo 212º da Constituição (litígios emergentes das relações jurídicas administrativas). A compreensão do universo de disputas que integram a competência dos tribunais administrativos implica uma análise casuística das opções legislativas relativas à inclusão ou exclusão de determinado litígio no âmbito da jurisdição administrativa. A este propósito, embora sem carácter de exclusividade, a principal referência legal é constituída pelo artigo 4º do ETAF. É curioso verificar que a alínea d) do nº 2 desse artigo exclui expressamente do âmbito de apreciação dos tribunais administrativos a impugnação de actos praticados no exercício das funções política e legislativa, mas omite qualquer referência ao relacionamento entre a função jurisdicional e a função administrativa. Como pretendo salientar de seguida, a teoria da separação de poderes condiciona decisivamente a amplitude dos poderes de controlo dos tribunais sobre a actividade administrativa. A fiscalização jurisdicional das decisões administrativas, em Portugal, sempre foi uma fiscalização limitada. A lógica inicial era mesmo a correspondente àquela frase bastante divulgada segundo a qual “julgar a Administração é, ainda, administrar”. A intensidade do controlo dos tribunais sobre a Administração tem vindo a alargar-se, em especial, desde a vigência da Constituição de 1976. Mas, também por isso, o controlo jurisdicional da actividade administrativa nunca teve por referência ou ponto de partida uma situação de controlo pleno sujeita a limitações pontuais. O caminho tem sido o inverso. Do princípio da separação de poderes (quer a interpretação seja mais ampla ou mais restrita) resulta a impossibilidade dos tribunais administrativos se substituírem à Administração Pública no exercício das suas funções de autoridade. Sempre que os órgãos administrativos exercem alguma margem de liberdade decisória (através do exercício de poderes discricionários ou do preenchimento de conceitos indeterminados), a sua autonomia não pode ser posta em causa por decisões jurisdicionais alternativas. Com o alargamento dos poderes dos tribunais administrativos, não é o princípio da separação que está em causa mas a delimitação da linha de fronteira. Trata-se da questão que os Professores Sérvulo Correia e Vieira de Andrade apelidam de “limites funcionais da jurisdição administrativa”. Do ponto de vista legal, esta delimitação do âmbito da função jurisdicional administrativa encontra a sua sede não no artigo 4º do ETAF mas antes no nº 1 do artigo 3º do CPTA: os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou da oportunidade da sua actuação. No essencial, tal parece significar que os tribunais administrativos não podem determinar o conteúdo da decisão administrativa quando esse conteúdo possa ser determinado pela vontade da própria Administração Pública. A enunciação do princípio parece simples mas a sua aplicação prática constitui uma tarefa difícil e complexa. Vou referir-me, sucintamente, à questão, a partir de duas perspectivas complementares: em primeiro lugar, a perspectiva abstracta do controlo da margem de liberdade administrativa; em segundo lugar, a perspectiva dos meios de controlo à disposição dos tribunais. Como já referi anteriormente, o sistema português de fiscalização jurisdicional da Administração sempre assumiu a necessidade de limitação dos poderes do juiz, respeitando a autonomia do poder administrativo. A regra é que as decisões administrativas de conteúdo integralmente vinculado pelo legislador podem e devem ser plenamente controladas pelo tribunal. No entanto, sempre que o conteúdo das decisões administrativas esteja dependente de considerações próprias da Administração Pública, o tribunal não pode pretender substituir as considerações administrativas pelas suas próprias considerações. Sempre que o conteúdo da decisão administrativa esteja dependente de considerações administrativas, o que está em causa já não é a juridicidade ou a legalidade da actividade administrativa mas a sua conveniência ou oportunidade, para utilizar os termos constantes do nº 1 do artigo 3º do CPTA. O problema é que é muito difícil (cada vez mais difícil dada a complexidade da actividade pública) estabelecer um limite entre a legalidade e a conveniência. Para a indeterminação das fronteiras relativas entre legalidade e conveniência concorre hoje em dia, o facto do controlo jurisdicional das escolhas administrativas ser efectuado através da aplicação de princípios constitucionais, como o princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade ou o princípio da imparcialidade. O controlo das escolhas administrativas através da aplicação de princípios constitucionais pode condicionar muito a liberdade decisória da Administração, sobretudo se forem utilizados como referência do que deve ser feito (critérios de actuação) e não como referência do que não deve ser feito (limites de actuação). O Supremo Tribunal Administrativo tem sido prudente no controlo da actividade administrativa a partir dos princípios constitucionais, assumindo a perspectiva negativa dos princípios enquanto limites e apenas quando a violação se assumir como manifesta ou evidente. É claro que a extensão do controlo efectuado pelos tribunais depende essencialmente da espécie de poderes que a Administração Pública exerce em cada caso. Quando o legislador atribui à Administração Pública a possibilidade de escolher livremente entre várias soluções consideradas como alternativas, as possibilidades de controlo judicial são extremamente limitadas. Já nos casos em que a vontade da Administração Pública incide sobre a concretização de indeterminações constantes das disposições legais ou regulamentares, as possibilidades de controlo judicial já se apresentam com maior viabilidade. Por outro lado, existem áreas da actividade administrativa em que o controlo judicial tende a ser pleno ou integral (como é o caso, por exemplo, da actividade da Administração tributaria), e outras áreas da actividade administrativa em que o controlo judicial se apresenta como muito limitado (como acontece com os planos de natureza económica ou territorial). Sempre que seja possível concluir que o legislador atribuiu um poder à Administração Pública para que ela o exerça tendo em conta considerações próprias, não é possível deixar de concluir também que o legislador quis reservar aquela decisão para a Administração afastando a possibilidade do tribunal administrativo determinar qualquer solução supostamente devida. Quando tal ocorre, estabelece-se um limite concreto à jurisdição administrativa. Esse limite é um limite funcional, que remete para a necessidade de respeito entre as funções do Estado de natureza secundária. Cabe salientar, em todo o caso, que os limites funcionais da jurisdição administrativa não significam que o litígio em causa esteja excluído da jurisdição administrativa mas antes que a fiscalização exercida pelo tribunal pode ser mais limitada, ou menos intensa, do que acontece normalmente. Apesar disso, como o litígio pode ser conhecido pelos tribunais administrativos, o que está em causa não é a delimitação da matéria que cabe aos tribunais administrativos conhecer mas antes o tipo de controlo que os tribunais podem exercem quando conhecem determinados litígios. Assim, se o litígio não é excluído da jurisdição administrativa pelo artigo 4º do do ETAF (ou por alguma outra disposição legal), o controlo contencioso administrativo é possível. Só que, tal controlo é um controlo mais restrito, mais limitado, que o habitual. É nisto que consiste a tal limitação funcional. Na prática (embora com graus distintos), o tribunal pode sempre proceder a algumas verificações. A primeira delas tem que ver com o respeito, no caso, dos pressupostos e condições que devem verificar-se para que o poder possa ser exercido (perguntas como: estão reunidos os acontecimentos factuais referidos na previsão normativa? foi exercido efectivamente um poder discricionário?). Num segundo plano, o tribunal pode mesmo controlar as escolhas administrativas efectuadas, a partir da aplicação dos já referidos princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da imparcialidade. Este controlo, que é um controlo das ponderações administrativas, deve ser um controlo limitado, que no essencial se restringe à verificação da existência de factos suficientes para que o poder possa ser exercido e da adequação da alternativa escolhida face a esses factos. Em caso algum pode o tribunal substituir a escolha administrativa por uma escolha sua. Essa área já é uma área da oportunidade ou da conveniência e não da legalidade. Tendo em conta esta perspectiva abstracta sobre a autonomia administrativa enquanto limite do controlo contencioso, importa agora constatar como (em termos meramente exemplificativos), tal limite se projecta nos meios de controlo colocados pelo legislador à disposição dos tribunais administrativos. Parece evidente que o CPTA fornece aos tribunais meios de apreciação cuja aplicação, nalguns casos, pode pôr em causa o respeito pelos limites funcionais da jurisdição administrativa. Desde logo, os tribunais administrativos dispõem da possibilidade de condenar a Administração Pública na prática do acto administrativo devido, como resulta dos artigos 66º e seguintes do CPTA. É claro que a condenação na prática do acto administrativo devido se deve restringir àquelas situações em que a Administração Pública exerce poderes vinculados e não poderes discricionários. Na verdade, como já referido, se o legislador permite escolhas administrativas, o tribunal não pode afirmar que uma e apenas uma das possibilidades corresponde à escolha legalmente devida. No entanto, e mais uma vez, o problema é um problema de limites, sendo certo que em muitas situações é difícil determinar onde pára a vinculação e começa a discricionariedade. O CPTA não ignorou este risco e veio a estabelecer, no nº 3 do artigo 95º, a propósito dos limites da sentença (ou seja, neste caso, dos limites funcionais da jurisdição administrativa) que “Quando, com o pedido de anulação ou de declaração de nulidade ou inexistência de um acto administrativo, tenha sido cumulado pedido de condenação da Administração à adopção dos actos e operações necessários para reconstituir a situação que existiria se o acto impugnado não tivesse sido praticado, mas a adopção da conduta devida envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, sem que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma actuação como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo da conduta a adoptar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração”. Ou seja, o legislador salienta que o tribunal não pode substituir as valorações administrativas pelas suas próprias, devendo limitar-se a indicar quais os elementos vinculados que, na prática daquele acto, a Administração Pública deve respeitar. Neste ponto parece-me que posso concluir que o nº 3 do artigo 95º do CPTA deve ser entendido como uma manifestação concreta do princípio consagrado no nº 1 do artigo 3º: a par de um controlo pleno da vinculação, um controlo restrito ou limitado da discricionariedade. No entanto, os meios de controlo judicial que verdadeiramente parecem "colocar em risco" a autonomia administrativa são aqueles em que o tribunal pode praticar sentenças substitutivas. Ou seja, aqueles casos em que o tribunal pode exercer directamente um poder que, em primeira linha, se encontra atribuído a um órgão administrativo. No direito do urbanismo, que já estudámos, no âmbito do curso, existe pelo menos um exemplo emblemático: a sentença substitutiva de alvará, prevista no nº 7 do artigo 113º do Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro (regime jurídico da urbanização e da edificação). O urbanismo corresponde, precisamente, a uma área material em que a emissão de considerações administrativas (inserção no ambiente urbano, estética da povoação, beleza das paisagens) mais significado assume. Do ponto de vista geral, salienta-se a possibilidade do tribunal administrativo, no âmbito das providências cautelares, poder tomar decisões e conteúdo tipicamente administrativo, ainda que de natureza provisória. É assim com as admissões e autorizações previstas nas alíneas b) a d) do nº 2 do artigo 112º. Trata-se, claro está, de decisões judiciais provisórias. No entanto, face à conhecida morosidade dos tribunais administrativos, a prática pode transformar decisões provisórias em definitivas. Em conclusão, a jurisdição administrativa encontra-se limitada pela autonomia administrativa. Tal limitação não significa uma exclusão da apreciação de litígios, mas um enfraquecimento do controlo. O modo concreto como os tribunais aplicam os meios de controlo ao seu dispor, pode alterar significativamente as fronteiras de tal limite.
Bibliografia: Parejo Alfonso, Luciano - Administrar y juzgar: dos funciones constitucionales distintas y complementarias, Tecnos, Madrid, 1993. Queiró, Afonso Rodrigues – O poder discricionário da Administração, in Estudos de Direito Público, vol. I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1989, páginas 177 e ss. Sánchez Morón, Miguel – El control de las Administraciones Públicas y sus problemas, Instituto de España-Espasa Calpe, Madrid, 1991. Schmidt-Assmann, Eberhard – La teoria general del Derecho Administrativo como sistema (tradução do original alemão), INAP-Marcial Pons, Madrid, 2003. Sérvulo Correia, José Manuel – Direito do Contencioso Administrativo, I, Lex, Lisboa, 2005. Vieira de Andrade, José Carlos – A Justiça Administrativa, Lições, 11ª edição, Almedina, Coimbra, 2011.
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