Lígia Rocha Nº21500
Considerações Iniciais
O Contencioso Administrativo tem uma dupla função de garantia[1]
por um lado das relações jurídico-administrativas dos interessados, e por
outro, da legalidade da administração.
A tutela de um determinado bem pode incidir sobre
um interesse individual seja um
direito subjectivo ou um interesse específico de um individuo; um interesse público ou um interesse geral, subjectivado como interesse próprio do estado e de outras
pessoas colectivas. Pode por outro lado, consubstanciar um interesse difuso que é que é a refracção em que cada indivíduo de
interesses da comunidade; ou um interesse
colectivo quanto se trata de um interesse particular comum a certos grupos
e categorias.
“O apanágio de uma Boa Administração
deve primar pela Tutela dos Direitos e Interesses dos cidadãos” [2]
Em tempos,
defendia-se a supremacia do interesse público[3]
sobre os interesses privados dos particulares. Foi com a revisão constitucional
de 1982[4]
que surgiu o conceito de acção de reconhecimento de um direito ou interesse
legalmente protegido, destinada a tutelar posições jurídico-materiais dos
particulares, só prevalecendo o interesse público em situações específicas e
dentro de condições definidas e limitadas pelo legislador.
Os direitos
ou interesses legalmente protegidos, respeitam a um conjunto de posições
jurídico materiais de um sujeito a que a lei atribui um determinado regime,
tendo como fundamento reforçar que a posição activa do particular é abrangida
pela norma.
Tradicionalmente,[5]
era exigida uma posição prévia de um acto administrativo, tendo que
obrigatoriamente o particular fazer-se valer de uma impugnação administrativa necessária[6] quando
pretenda impugnar um acto administrativo. Este processo tinha como fundamento
que de outra forma se estaria a violar o princípio da separação de poderes, já
que o Tribunal se substituiria à administração. Na verdade, esta questão era
desfavorável ao particular, já que a Administração se pronunciava sobre uma
matéria na qual tinha intervindo, pondo em causa a imparcialidade, já que se julga a si mesma, comprometendo os
direitos e interesses legalmente protegidos do particular, nomeadamente o
direito a uma tutela jurisdicional
efectiva, art.268.º nº4 CRP[7].
A respeito da distinção entre interesse legítimo e direito
subjectivo, FREITAS DO AMARAL[8]
defende que este último consubstancia um direito à satisfação de um direito
próprio; e no interesse legítimo o que existe é apenas um direito à legalidade
das decisões que versem sobre um direito próprio.
Nos termos do art.55.º nº1 a) CPTA tem legitimidade
para impugnar actos administrativos quem alegue ser titular de um interesse
directo e pessoal, sendo esta uma condição de pronúncia para o mérito da causa.
O carácter pessoal[9]
do interesse exige que a utilidade que o interessado pretende obter com a
anulação ou declaração de nulidade seja uma utilidade pessoal que reivindique
para si próprio, considerando-se o impugnante parte legitima porque alega ser
ele o titula do interesse em nome do qual se move no processo.
O carácter
directo[10]
afasta o interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético e prende-se com
a existência de um interesse actual e efectivo em pedir a anulação ou a
declaração de nulidade do acto que é impugnado. O impugnante tem de se
encontrar numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio
impugnatório.
RUI MACHETE distingue[11]
entre os direitos subjectivos e os interesses legítimos. Segundo este autor, a
defesa dos direitos subjectivos pode
fazer-se sem que preexista um acto administrativo. Diferentemente, no interesse legítimo, o direito à
legalidade do processo que dará origem ao acto, não pode ser feito valer em
tribunal enquanto tal independentemente da actuação da Administração, já que se
a sentença reconhecesse em abstracto o direito do particular à legalidade das
condutas que venham a ser adoptadas a seu respeito, nada acrescentaria aquilo
que já decorre da lei e a que ainda ninguém pôs e causa.
Na acção popular está em causa o
alargamento do direito de agir em juízo para a defesa da legalidade e do
interesse público.
MARCELO CAETANO[12]
definia o interesse público como sendo fundamental para a existência e
conservação da sociedade política.[13].
Para RIVIERO o interesse público representa a esfera das necessidades que a
iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade. Por
outro lado, GIANNINI distingue[14]
interesses públicos primários que
resultam de uma atribuição ou competência da administração; dos interesses
secundários, que correspondem aos restantes interesses públicos e privados.
VASCO PEREIRA DA SILVA salienta que só se está
perante uma acção popular quando a actuação dos indivíduos e dos grupos em
causa se destine à satisfação de um interesse próprio, não podendo os autores
desta acção ter interesse na demanda[15].
O direito de participação e de acção popular reproduzem[16]
um alargamento da legitimidade processual e procedimental, somando-se à
protecção jurídica subjectiva, tornando sujeitos de uma relação
jurídico-administrativa indivíduos e pessoas colectivas que não possuem
interesse directo na demanda.
A respeito
da acção popular, o STA entende que o direito à acção popular deve
reconhecer-se aos cidadãos uti cives
e não uti singuli o direito de
promover, individual ou associadamente a defesa de tais interesses.
Na acção popular, os bens jurídicos[17]
que se pretendem salvaguardar são a saúde pública, a preservação do ambiente,
do património histórico e cultural e a defesa dos bens de entidade públicas
territoriais, ou outros bens similares e constitucionalmente salvaguardados.
Distinguem-se três grupos distintos[18]
que podem ser tutelados mediante a figura da acção popular. O primeiro grupo
respeita aos interesses inerentes ao âmbito do contencioso eleitoral. Um
segundo grupo, respeitante ao interesse público à legalidade, sem qualquer
limitação material no objecto, no caso de verificação de uma conduta ilegal dos
órgãos administrativos locais; e finalmente, os interesses difusos consagrados
pela Constituição.
No que respeita à relação entre o direito de acção
popular com os interesses difusos e colectivos, LEBRE DE FREITAS[19]
entende relacionar-se o interesse
colectivo com a comunidade genericamente organizada, cujos membros são como
tal identificáveis sem que essa organização se processe em termos de pessoa
colectiva. Por outro lado, o interesse
difuso reporta-se a um grupo inorgânico de pessoas cuja composição é
ocasional não permitindo por isso a identificação prévia dos respectivos
titulares.
De acordo VASCO PEREIRA DA SILVA[20]
o art.52.º nº3 CRP faz uma confusão entre a tutela objectiva da legalidade e do
interesse publico que é garantida pela acção popular; e a tutela
jurídico-subjectiva para a defesa dos direitos e interesses individuais.
A prossecução do interesse público pela
administração trata-se de um imperativo constitucional art.266.º CRP. Para
BACHOF[21]
o interesse público é o fundamento e limite da Administração, orientando a sua
aplicação, interpretação e ponderação, materializando os interesses inequívocos
da Comunidade, rumo à existência de uma ordem social pacífica.
Segundo ROGERIO SOARES[22]
o interesse público traduz-se no interesse de justa composição dos conflitos
mediante a repartição de acordo com critérios variáveis dos bens materiais e
imateriais da sociedade. Por outro lado, FREITAS DO AMARAL[23]
refere o conteúdo variável do interesse público, sendo ele o principal motivo
determinante de qualquer acto da Administração. Por exemplo, de acordo com NUNO
ANTUNES[24]
o domínio público não configura um interesse difuso, mas uma protecção fundada
no interesse público, já que se trata de uma situação mais próxima da acção
popular tradicional, cabendo ao Ministério Público a sua defesa e
promoção.
A satisfação do interesse público pressupõe para
VASCO PEREIRA DA SILVA,[25] o devido
enquadramento da relação jurídica Administração-cidadãos, numa identidade de
posições de base.
Em sede de Contencioso Administrativo não se pode
olvidar a presença do interesse público. Contudo, a sua importância não pode
ser levada ao extremo, sob pena de se recair numa administração autoritária[26].
À ideia de Estado de Direito subjaz a eliminação do arbítrio e a exigência de
uma previsibilidade da actuação do Poder Público. Não sendo possível uma
definição a priori dos interesses
públicos a serem perseguidos pelo Estado, a lei desempenha um papel fundamental
na delimitação das necessidades e aspirações colectivas a concretizar, dentro
da moldura definida pela Constituição[27].
Conclusões
Foi um passo significativo a possibilidade de o
cidadão dispor de meios para tutela de interesses difusos, que não podem ser
apropriados por um só individuo, devendo a ampliação da legitimidade processual
deve ser entendida como um reforço da participação política dos cidadãos no
Estado de Direito.
Tendo o Contencioso
Administrativo a função de prossecução e tutela do interesse público, aliado à
tutela dos direitos dos particulares, devem estes dois corolários obedecer a
princípios interpretados numa evolução dinâmica dentro de um contexto de um
Estado de Direito expurgando os
preconceitos outrora ultrapassados[28].
[1]Sobre
a questão, Vide, VIERA DE ANDRADE, A
Justiça Administrativa, Almedina, 2014, Págs.185ss
[2]A.
VIEIRA, O princípio da prossecução do
interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Pág.11
[3]Ibidem, Pág.32ss
[4]SEQUEIRA SANTOS, A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente
protegido, Teses FDUL, Lisboa, 1996, Pág.18
[5]Ibidem, Págs.37ss
[6]Sobre
esta questão, que tem suscitado uma acesa discussão na Doutrina, AROSO DE
ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.303ss
[7]Neste
sentido, Vasco Pereira da Silva, O
Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo
Processo Administrativo, Almedina, 2009 Págs.315ss
[8]
FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito
Administrativo, Vol. II Almedina, 2001, Pág.46ss
[9]Com
mais desenvolvimento acerca da distinção entre interesse directo e pessoal, Vide, AROSO DE ALMEIDA, Manual de
Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.233ss
[10]VIERA DE
ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014, Págs.187ss
[11]Sobre
esta questão, SEQUEIRA SANTOS In, A
acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido,
Teses FDUL, Lisboa, 1996, Pág.18
[12]Ibidem, Págs.30ss
[13]Acerca
deste tema, CARVALHO ROCHA, A
legitimidade activa na acção popular: uma analise comparativa entre Portugal e
Brasil, Teses FDUL, Lisboa, 2006, Pág.40
[14]A.
VIEIRA, O princípio da prossecução do
interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Pág.14ss
[15]Ibidem
[16]In, Verde
cor de direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002,
Pág.110
[17]Neste
sentido, AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014,
Págs.303ss
[18]ANTÓNIO
CAÚLA REIS, O interesse publico o
processo defesa dos direitos dos
particulares: aquisições de uma “infância difícil”?, Teses FDUL, Lisboa,
2009, Págs.77ss
[19]A
respeito da Lei 83/95 de 31 de Agosto, LEBRE DE FREITAS defende que nela
preside uma confusão entre tutela objectiva da legalidade e do interesse
publico e a protecção subjectiva constante nos artigos 20.º e 268.º nº4 CRP. Cfr.
CARVALHO ROCHA, A legitimidade activa na
acção popular: uma análise comparativa entre Portugal e Brasil, Teses FDUL,
Lisboa, 2006, Pág.40
[20]In, Verdes
também são os direitos do homem. Responsabilidade Administrativa em matéria de
ambiente, Cascais, Principia, 2000
[21]ANTUNES
COLAÇO, Para um contencioso
Administrativo de garantia do cidadão e da Administração, Almedina, 2000,
Pág.78
[22]Cfr.
ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Vol. I, Almedina Coimbra,1984,
Págs.45ss
[23]Sobre
esta questão, FREITAS DO AMARAL, Curso de
Direito Administrativo, Vol. II Almedina, 2001, Pág.46ss
[24]Para
um maior desenvolvimento, MARQUES ANTUNES, O
direito de acção popular no contencioso administrativo português, Lisboa,
LEX, 1997, Pág.46, Cfr. CARVALHO ROCHA, A
legitimidade activa na acção popular: uma análise comparativa entre Portugal e
Brasil, Teses FDUL, Lisboa, 2006, Pág.42ss
[25]Neste
sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca
do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998, Pág.127ss
[26]Acerca
desta matéria, ANTÓNIO CAÚLA REIS, O
interesse publico o processo defesa dos direitos dos particulares: aquisições de uma “infância
difícil”?, Teses FDUL, Lisboa, 2009, Págs.77ss
[27]Ibidem
[28]A.
VIEIRA, O princípio da prossecução do
interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Págs.16ss
Visto.
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