domingo, 2 de novembro de 2014

O Velho Paradigma do Contencioso Administrativo - A Tutela dos Interesses Directos e Pessoais dos cidadãos em confronto com a Tutela do Interesse Público: a diferença dos Bens Jurídicos Tutelados

Lígia Rocha Nº21500

Considerações Iniciais
O Contencioso Administrativo tem uma dupla função de garantia[1] por um lado das relações jurídico-administrativas dos interessados, e por outro, da legalidade da administração.
A tutela de um determinado bem pode incidir sobre um interesse individual seja um direito subjectivo ou um interesse específico de um individuo; um interesse público ou um interesse geral, subjectivado como interesse próprio do estado e de outras pessoas colectivas. Pode por outro lado, consubstanciar um interesse difuso que é que é a refracção em que cada indivíduo de interesses da comunidade; ou um interesse colectivo quanto se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias.

“O apanágio de uma Boa Administração deve primar pela Tutela dos Direitos e Interesses dos cidadãos” [2]
  Em tempos, defendia-se a supremacia do interesse público[3] sobre os interesses privados dos particulares. Foi com a revisão constitucional de 1982[4] que surgiu o conceito de acção de reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, destinada a tutelar posições jurídico-materiais dos particulares, só prevalecendo o interesse público em situações específicas e dentro de condições definidas e limitadas pelo legislador.
Os direitos ou interesses legalmente protegidos, respeitam a um conjunto de posições jurídico materiais de um sujeito a que a lei atribui um determinado regime, tendo como fundamento reforçar que a posição activa do particular é abrangida pela norma.
Tradicionalmente,[5] era exigida uma posição prévia de um acto administrativo, tendo que obrigatoriamente o particular fazer-se valer de uma impugnação administrativa necessária[6] quando pretenda impugnar um acto administrativo. Este processo tinha como fundamento que de outra forma se estaria a violar o princípio da separação de poderes, já que o Tribunal se substituiria à administração. Na verdade, esta questão era desfavorável ao particular, já que a Administração se pronunciava sobre uma matéria na qual tinha intervindo, pondo em causa a imparcialidade, já que se julga a si mesma, comprometendo os direitos e interesses legalmente protegidos do particular, nomeadamente o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, art.268.º nº4 CRP[7].
A respeito da distinção entre interesse legítimo e direito subjectivo, FREITAS DO AMARAL[8] defende que este último consubstancia um direito à satisfação de um direito próprio; e no interesse legítimo o que existe é apenas um direito à legalidade das decisões que versem sobre um direito próprio.
Nos termos do art.55.º nº1 a) CPTA tem legitimidade para impugnar actos administrativos quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, sendo esta uma condição de pronúncia para o mérito da causa. O carácter pessoal[9] do interesse exige que a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou declaração de nulidade seja uma utilidade pessoal que reivindique para si próprio, considerando-se o impugnante parte legitima porque alega ser ele o titula do interesse em nome do qual se move no processo.
O carácter directo[10] afasta o interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético e prende-se com a existência de um interesse actual e efectivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado. O impugnante tem de se encontrar numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório.
RUI MACHETE distingue[11] entre os direitos subjectivos e os interesses legítimos. Segundo este autor, a defesa dos direitos subjectivos pode fazer-se sem que preexista um acto administrativo. Diferentemente, no interesse legítimo, o direito à legalidade do processo que dará origem ao acto, não pode ser feito valer em tribunal enquanto tal independentemente da actuação da Administração, já que se a sentença reconhecesse em abstracto o direito do particular à legalidade das condutas que venham a ser adoptadas a seu respeito, nada acrescentaria aquilo que já decorre da lei e a que ainda ninguém pôs e causa.
 Na acção popular está em causa o alargamento do direito de agir em juízo para a defesa da legalidade e do interesse público.
MARCELO CAETANO[12] definia o interesse público como sendo fundamental para a existência e conservação da sociedade política.[13]. Para RIVIERO o interesse público representa a esfera das necessidades que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade. Por outro lado, GIANNINI distingue[14] interesses públicos primários que resultam de uma atribuição ou competência da administração; dos interesses secundários, que correspondem aos restantes interesses públicos e privados.
VASCO PEREIRA DA SILVA salienta que só se está perante uma acção popular quando a actuação dos indivíduos e dos grupos em causa se destine à satisfação de um interesse próprio, não podendo os autores desta acção ter interesse na demanda[15]. O direito de participação e de acção popular reproduzem[16] um alargamento da legitimidade processual e procedimental, somando-se à protecção jurídica subjectiva, tornando sujeitos de uma relação jurídico-administrativa indivíduos e pessoas colectivas que não possuem interesse directo na demanda.
 A respeito da acção popular, o STA entende que o direito à acção popular deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli o direito de promover, individual ou associadamente a defesa de tais interesses.
Na acção popular, os bens jurídicos[17] que se pretendem salvaguardar são a saúde pública, a preservação do ambiente, do património histórico e cultural e a defesa dos bens de entidade públicas territoriais, ou outros bens similares e constitucionalmente salvaguardados.
Distinguem-se três grupos distintos[18] que podem ser tutelados mediante a figura da acção popular. O primeiro grupo respeita aos interesses inerentes ao âmbito do contencioso eleitoral. Um segundo grupo, respeitante ao interesse público à legalidade, sem qualquer limitação material no objecto, no caso de verificação de uma conduta ilegal dos órgãos administrativos locais; e finalmente, os interesses difusos consagrados pela Constituição.
No que respeita à relação entre o direito de acção popular com os interesses difusos e colectivos, LEBRE DE FREITAS[19] entende relacionar-se o interesse colectivo com a comunidade genericamente organizada, cujos membros são como tal identificáveis sem que essa organização se processe em termos de pessoa colectiva. Por outro lado, o interesse difuso reporta-se a um grupo inorgânico de pessoas cuja composição é ocasional não permitindo por isso a identificação prévia dos respectivos titulares.
De acordo VASCO PEREIRA DA SILVA[20] o art.52.º nº3 CRP faz uma confusão entre a tutela objectiva da legalidade e do interesse publico que é garantida pela acção popular; e a tutela jurídico-subjectiva para a defesa dos direitos e interesses individuais.
A prossecução do interesse público pela administração trata-se de um imperativo constitucional art.266.º CRP. Para BACHOF[21] o interesse público é o fundamento e limite da Administração, orientando a sua aplicação, interpretação e ponderação, materializando os interesses inequívocos da Comunidade, rumo à existência de uma ordem social pacífica.
Segundo ROGERIO SOARES[22] o interesse público traduz-se no interesse de justa composição dos conflitos mediante a repartição de acordo com critérios variáveis dos bens materiais e imateriais da sociedade. Por outro lado, FREITAS DO AMARAL[23] refere o conteúdo variável do interesse público, sendo ele o principal motivo determinante de qualquer acto da Administração. Por exemplo, de acordo com NUNO ANTUNES[24] o domínio público não configura um interesse difuso, mas uma protecção fundada no interesse público, já que se trata de uma situação mais próxima da acção popular tradicional, cabendo ao Ministério Público a sua defesa e promoção. 
A satisfação do interesse público pressupõe para VASCO PEREIRA DA SILVA,[25] o devido enquadramento da relação jurídica Administração-cidadãos, numa identidade de posições de base.
Em sede de Contencioso Administrativo não se pode olvidar a presença do interesse público. Contudo, a sua importância não pode ser levada ao extremo, sob pena de se recair numa administração autoritária[26]. À ideia de Estado de Direito subjaz a eliminação do arbítrio e a exigência de uma previsibilidade da actuação do Poder Público. Não sendo possível uma definição a priori dos interesses públicos a serem perseguidos pelo Estado, a lei desempenha um papel fundamental na delimitação das necessidades e aspirações colectivas a concretizar, dentro da moldura definida pela Constituição[27].
               
               
Conclusões
Foi um passo significativo a possibilidade de o cidadão dispor de meios para tutela de interesses difusos, que não podem ser apropriados por um só individuo, devendo a ampliação da legitimidade processual deve ser entendida como um reforço da participação política dos cidadãos no Estado de Direito. 
Tendo o Contencioso Administrativo a função de prossecução e tutela do interesse público, aliado à tutela dos direitos dos particulares, devem estes dois corolários obedecer a princípios interpretados numa evolução dinâmica dentro de um contexto de um Estado de Direito expurgando os preconceitos outrora ultrapassados[28].



[1]Sobre a questão, Vide, VIERA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014, Págs.185ss
[2]A. VIEIRA, O princípio da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Pág.11
[3]Ibidem, Pág.32ss
[4]SEQUEIRA SANTOS, A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, Teses FDUL, Lisboa, 1996, Pág.18
[5]Ibidem, Págs.37ss
[6]Sobre esta questão, que tem suscitado uma acesa discussão na Doutrina, AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.303ss
[7]Neste sentido, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo,  Almedina, 2009 Págs.315ss
[8] FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II Almedina, 2001, Pág.46ss
[9]Com mais desenvolvimento acerca da distinção entre interesse directo e pessoal, Vide, AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.233ss
[10]VIERA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 2014, Págs.187ss
[11]Sobre esta questão, SEQUEIRA SANTOS In, A acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido, Teses FDUL, Lisboa, 1996, Pág.18
[12]Ibidem, Págs.30ss
[13]Acerca deste tema, CARVALHO ROCHA, A legitimidade activa na acção popular: uma analise comparativa entre Portugal e Brasil, Teses FDUL, Lisboa, 2006, Pág.40
[14]A. VIEIRA, O princípio da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Pág.14ss
[15]Ibidem
[16]In, Verde cor de direito, Lições de Direito do Ambiente, Coimbra, Almedina, 2002, Pág.110
[17]Neste sentido, AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2014, Págs.303ss
[18]ANTÓNIO CAÚLA REIS, O interesse publico o processo defesa dos direitos dos  particulares: aquisições de uma “infância difícil”?, Teses FDUL, Lisboa, 2009, Págs.77ss
[19]A respeito da Lei 83/95 de 31 de Agosto, LEBRE DE FREITAS defende que nela preside uma confusão entre tutela objectiva da legalidade e do interesse publico e a protecção subjectiva constante nos artigos 20.º e 268.º nº4 CRP. Cfr. CARVALHO ROCHA, A legitimidade activa na acção popular: uma análise comparativa entre Portugal e Brasil, Teses FDUL, Lisboa, 2006, Pág.40
[20]In, Verdes também são os direitos do homem. Responsabilidade Administrativa em matéria de ambiente, Cascais, Principia, 2000
[21]ANTUNES COLAÇO, Para um contencioso Administrativo de garantia do cidadão e da Administração, Almedina, 2000, Pág.78
[22]Cfr. ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Vol. I, Almedina Coimbra,1984, Págs.45ss
[23]Sobre esta questão, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II Almedina, 2001, Pág.46ss
[24]Para um maior desenvolvimento, MARQUES ANTUNES, O direito de acção popular no contencioso administrativo português, Lisboa, LEX, 1997, Pág.46, Cfr. CARVALHO ROCHA, A legitimidade activa na acção popular: uma análise comparativa entre Portugal e Brasil, Teses FDUL, Lisboa, 2006, Pág.42ss
[25]Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, 1998, Pág.127ss
[26]Acerca desta matéria, ANTÓNIO CAÚLA REIS, O interesse publico o processo defesa dos direitos dos  particulares: aquisições de uma “infância difícil”?, Teses FDUL, Lisboa, 2009, Págs.77ss
[27]Ibidem
[28]A. VIEIRA, O princípio da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, Teses FDUL, Lisboa, 2005, Págs.16ss

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